30 Julho 2021
"Para consolar os desiludidos e iludidos devemos usar as palavras de Traditiones Custodes, não aquelas de Summorum Pontificum: caso contrário, a ferida não será curada e as pontes serão apenas a denominação oportunista com a qual continuaremos a chamar e a construir novos muros intransponíveis", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 29-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O cansaço pela "batalha litúrgica" transparece nas palavras do Abade Pateau OSB, de Fontgombault. E é bastante curioso encontrar, no mesmo texto, a preocupação mais evidente pela paz e pela reconciliação eclesial, mesclada em profundidade com os preconceitos mais arraigados, que ao contrário alimentam a suspeita, a desconfiança e o conflito. Já que o Padre Abade teve a aventura de me citar em seu texto, de forma não propriamente lisonjeira, mesmo que com respeito, achei justo responder-lhe, de todo o coração, em nome daquela "comunidade beneditina" da qual derivam tanto as suas preocupações de pacificação, quanto as observações de método e estilo sobre o projeto de reconciliação. Faço isso de forma epistolar, enviando-lhe uma "carta de paz" na qual procuro conversar com ele sobre o que me convence e o que não me convence de seu texto.
“Caro Padre Abade, na entrevista publicada pela ‘Famille Chrétienne’ em 19/7, retomada anteontem pelo blog Messainlatino em tradução italiana, descobri primeiramente um espírito beneditino de reconciliação e paz. Isso me deixa totalmente em sintonia com o senhor. No ano passado, com um grupo de teólogos europeus e estadunidenses, escrevemos um ebook sobre o tema da ‘reconciliação litúrgica’, algo que também o senhor considera absolutamente decisivo. As suas palavras são também muito claras ao indicar a tarefa de ‘não rejeitar’ o texto do novo MP do Papa Francisco, que revoga o ‘Summorum Pontificum’. O senhor foi corajoso ao pronunciar essa palavra forte, forte sobretudo para os seus ambientes, e nisso encontro um sinal da grande tradição beneditina que caracteriza não só a sua Abadia, mas também as Abadias nas quais aprendi a conhecer e reconhecer a força de liturgia: S. Giustina em Pádua, S. Anselmo em Roma, Camaldoli no Casentino, Dominus tecum em Pra’d Mil, junto com as numerosas abadias femininas (Grandate, Fabriano, Tarquinia…).
Estamos de acordo em duas necessidades absolutamente centrais: construir pontes tornou-se um imperativo e pôr fim às batalhas litúrgicas revela-se uma prioridade incontornável, para todos. O senhor tenta encontrar os tons mais adequados para dar ao novo texto uma visão não dilacerante, não intolerante, não frontal. Esta é uma intenção nobre e que lhe faz honra.
Ao mesmo tempo, porém, o seu texto parece ficar completamente surdo ao conteúdo do MP ‘Traditiones Custodes’ (= TC), o que me surpreende bastante. Desde o título, que talvez o senhor não o tenha determinado, mas que, no entanto, parece fiel ao conteúdo de suas palavras, é mal colocada a relação entre o texto de Francisco e a construção das pontes: o que Francisco pede, com o TC, é construir pontes ‘entre as pessoas’ no único rito comum e ordinário, não ‘pontes entre duas formas do rito romano’. Este equívoco inicial, que encontra muitas confirmações ao longo da sua detalhada entrevista, manifesta uma espécie de ‘ponto cego’ que vou tentar esclarecer, numa série de breves observações, que lhe apresento de bom grado:
a) Em linha geral, a sua opção de ‘não rejeitar o texto de Francisco’, se observado com atenção, parece um tanto singular. Pelo fato de que, ao avaliar o texto do TC, o senhor o preenche continuamente com conteúdos do SP. Mas o TC revogou o SP e a lógica com que o SP pretendia trazer a paz. Se a intenção é ‘trazer a paz’, é preciso dar às palavras seu verdadeiro significado. O senhor continua a referir-se em seu discurso a ‘duas formas do mesmo rito’, às quais os batizados ‘teriam direito’. Mas esta é a visão que o SP tentou introduzir de uma forma não linear e através de princípios dos quais a tradição nunca teve conhecimento. O jogo de palavras com o ‘missal tridentino’ - que o senhor não é o primeiro a repetir e que teve seu início em declarações do cardeal Giuseppe Siri em 1951 e de M. Lefebvre após o Concílio Vaticano II - segundo o qual não teria eliminado ‘outras formas’ do rito romano, é uma elucubração sem fundamento: o senhor deveria bem saber que as ‘outras formas’, com as quais Trento se confronta, tinham determinações geográficas ou pessoais estritamente particulares. Nem o rito ambrosiano nem o rito dominicano são ‘ritos universais’, mas são ordines condicionados por dimensões geográficas ou pessoais que delimitam estruturalmente o seu impacto. Trento nunca concebeu nem remotamente ‘duas formas’ do mesmo rito vigentes na mesma unidade de espaço, de tempo e de pessoas. Apenas o SP tentou sugerir a validade simultânea de duas formas diferentes e conflitantes do mesmo rito romano. Esse ‘truque’ - porque se trata de truque sistemático - trouxe ‘batalha’, não ‘paz’. Por isso o TC revogou o SP: porque não é possível construir ‘pontes’ entre formas diferentes do rito romano, mas apenas pontes entre pessoas diferentes que usam a mesma forma comum de rito romano.
b) Sempre no início, e depois muitas vezes nas suas respostas, o senhor ressalta a ‘dureza’ e a ‘severidade’ de TC, que se resumem na percepção que o senhor expressa do seguinte modo: ‘O texto do Papa sugere que se deve fazer de tudo para que a modalidade de celebração na Forma Extraordinária desapareça o mais rápido possível. Isso preocupa justamente os fiéis apegados a este módulo’. De certa forma, o senhor parece estar avaliando essa história de um ângulo privilegiado. Alguns mosteiros beneditinos, incluindo o seu, já tinham antecipado de alguma forma, em uma forma particular e não desprovida de elementos de rigidez e de obstinação, a solução que em 2007 se pensou transformar em ‘lei geral’. Dura e severa foi a aceleração imposta em 2007, que criou ilusões, distorções de perspectivas, miragens e pesadelos. A invenção - que beira a mistificação - de uma ‘forma extraordinária’ que se juntava 50 anos depois à forma ordinária elaborada por indicação do Conselho e a torna ‘opcional’ é uma manobra demasiado dura e severa. Diante dessa ‘dura aceleração da nostalgia’, o TC aparece mais como um ato de moderação e de retomada orgânica da verdadeira história comum. Não é uma ‘pretensão absurda de Francisco’ que a VO desapareça: é toda a tradição que sabe desde sempre - pelo menos até a amnésia institucional de 2007 - que uma reforma geral do rito romano substitui o novo rito ao rito anterior. E o rito romano se encontra no resultado da reforma. Como sempre foi, para todo o sempre.
c) O senhor acredita que alguns liturgistas ‘desprezam’ a forma extraordinária do rito romano e que a única via para a paz seria o reconhecimento mútuo entre as duas ‘formas’: aqueles que celebram a NO deveriam reconhecer a VO e aqueles que celebram a VO deveriam reconhecer a NO. Também aqui, porém, as coisas não podem funcionar assim, nem no plano teológico, nem no plano espiritual, nem no plano pastoral. Quanto aos liturgistas, só posso falar por mim e não me permito expressar-me em nome de terceiros. Mas, no que me diz respeito, eu não tenho nenhum desprezo pela VO: simplesmente não a conheço e não posso conhecê-la: é o Concílio Vaticano II que quer que seja assim. Porque é a forma do rito romano que o Concílio quis reformar e que chegou até mim na única forma que sempre celebrei: a posterior a 1969. Considero curioso que eu, que nasci em 1961, possa dizer isso com plena consciência, enquanto o senhor, que nasceu 5 anos depois de mim, possa celebrar ordinariamente com a forma extraordinária. Claro, eu sei muito bem que aqui fala a sua identidade francesa, as suas origens na Vendeia, a história da Igreja da França, que recebeu a reforma litúrgica de uma forma muito mais lenta e menos difundida do que na Itália. Na Itália, com todas as suas limitações, realmente recebemos e aplicamos a reforma. O acesso ao rito romano deu-se na nova forma que logo se tornou ordinária e única, como sempre aconteceu na história da Igreja. É a minha experiência, desde o início, que me fala do rito romano na única forma vigente, visto que cheguei à idade da razão. Não por desprezo pessoal, mas por estranheza tradicional.
d) O senhor fala, ao mesmo tempo, de ‘não rejeitar o texto de Francisco’ e de ‘apego à forma extraordinária’. A primeira é uma ‘norma’, a segunda um ‘afeto’. Aqui, creio, está o lado mais delicado da questão, que não pode ser resolvido nem com ‘decretos do vértice’ nem como ‘populismos de baixo’. Com o TC, a maneira de ver a questão mudou. Já não existe mais uma ‘forma extraordinária’ do rito romano (que foi inventado em 2007 pelo SP e que não tem outra confirmação no passado eclesial), mas uma forma única do rito (aquela chamada ‘ordinária’) e algumas concessões ao uso do rito ‘não vigente’, destinadas com o tempo a se reduzirem a nada. Esta é a fisiologia eclesial, não a patologia de Francisco. Assim, o desafio de trazer a paz passa das ‘pontes entre duas formas rituais’ às pontes ‘entre os fiéis que usam a única forma comum’. Muitas das coisas que o senhor indica como ‘irrenunciáveis’ da VO devem ser descobertas, introduzidas ou reconhecidas na Ordo desejada pelo Concílio Vaticano II. E não seria um pequeno sinal de paz se uma Abadia beneditina como a sua, que alimentou não pouca hostilidade ao Vaticano II, se entregasse gradativamente à descoberta dos tesouros litúrgicos da NO e os colocasse em comum, na experiência monástica e na experiência eclesial. E ajudasse toda a Igreja a viver a continuidade da substância do depositum fidei na nova formulação de seu revestimento.
e) As palavras dos jovens que dizem ‘a reforma não está completa’ são importantes e totalmente verdadeiras. A reforma apenas começou. No entanto, isso não justifica uma resposta decepcionante: seja porque os ilude que possam ficar aquém da reforma, em um rito artificial que não tem mais fundamento; ou porque os decepciona numa falta de estilo e no desleixo de uma rotina sem cuidados e sem viva experiência. O trabalho comum, transgeracional, sobre o único rito comum é o horizonte que o Papa Francisco com autoridade quis colocar de volta no centro das atenções. Contra a distração introduzida na igreja pela teoria da ‘forma dupla’, que iludiu e amargurou a todos. No plano estritamente teológico, houve, nestes 14 anos, uma espécie de ‘loucura coletiva’ da qual Francisco nos despertou, com palavras de grande clareza, em vista de uma verdadeira reconciliação. Para este trabalho de reconciliação não pode contribuir a invenção de uma ‘concorrência’ entre duas formas rituais, a segunda das quais foi criada para corrigir e emendar a primeira.
Caro Padre Abade, o senhor bem diz: ‘É hora de construir pontes’, retirando as leituras ideológicas. Em primeiro lugar, aquelas que criam artificialmente um regime de ‘concorrência desleal’ entre formas rituais que não nasceram para esse fim e que não podem conviver senão excepcionalmente, apenas por indulto. Eu entendo a labuta de quem teve a ilusão de poder viver ‘universalmente’ com essa contradição embaraçosa. Mas para consolar os desiludidos e iludidos devemos usar as palavras de TC, não aquelas de SP: caso contrário, a ferida não será curada e as pontes serão apenas a denominação oportunista com a qual continuaremos a chamar e a construir novos muros intransponíveis”.
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Caro Padre Abade, vamos construir pontes entre pessoas, não entre ritos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU