20 Mai 2021
"Uma nova liturgia em uma estrutura eclesial concebida e administrada de maneira antiga permanece isolada e é facilmente marginalizada. Todos estes, que fique claro, são apenas instrumentos para renovar a relação com Cristo, do qual vive a fé. Mas sem um solícito ato de atualização de todos os três níveis - litúrgico, eclesial e jurídico - a secularização não será apenas um álibi externo, mas também um produto interno da Igreja", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 19-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Num debate que se abriu no Osservatore Romano, uma série de intervenções centrou-se na questão da "perda de presenças" (de adultos e jovens) na vida da Igreja. Obviamente, a crise pandêmica, por sua vez, acentuou um fenômeno que já estava presente com maior ou menor força em muitas partes da igreja universal. Aberta por uma reflexão de Pier Giorgio Gawronski, a discussão foi retomada no dia 15 de maio passado por Massimo Borghesi, que escreveu sobre As igrejas vazias e o álibi de secularização. A análise que ele propõe apresenta uma série de considerações importantes. A crise tem raízes longínquas e encontra num defeito cultural - no antimodernismo - a sua razão fundamental: uma doutrina reduzida a "passividade ao dogma" e "redução da ética sexual" são um freio perigoso. A reação a essa condição de entrave, segundo Borghesi, determinou uma polarização, entre tradicionalistas e progressistas, que não ajudou a sair da crise, mas a aprofundou. Para Borghesi, a resposta a essa condição só acontece - e poderia acontecer inclusive amanhã - com a contribuição de "movimentos" que reabram o tema central do "encontro" com o Senhor, que não é nem uma doutrina nem uma moral, mas uma "experiência" e um "sentimento".
Parece-me que as evoluções dos últimos 70 anos podem ser consideradas com ulteriores perspectivas. Não há dúvida de que uma recuperação da credibilidade e da confiabilidade da Igreja Católica depende essencialmente da possível renovação do ato de fé no Senhor Jesus. Isso permanece o centro inevitável de toda questão. Fugas para trás e fugas para a frente nunca são resolutivas. Nem uma identificação do ato de fé com as estruturas do ancien régime, nem a pretensão de que somente a democracia política possa garantir o espaço da fé são remédios plausíveis. As formas dos “regimes” - antigo ou novo - não são garantia de fé, embora tenham relações não irrelevantes com ela. Mas, precisamente no plano teológico, uma investigação sobre os desenvolvimentos do século passado é capaz de mostrar a delicadeza e a função decisiva das "mediações" da experiência e do sentimento no encontro com Cristo. A recuperação desses "recalques" vivenciais e afetivos, que é realmente importante, deve ser cuidadosamente mediada. Vou tentar fazer aqui um pequeno quadro.
O sujeito que crê, crê no Senhor Jesus e no encontro com Ele desenvolve sua vida cristã, suas prioridades e suas consolações. Mas a característica "moderna" desta relação, no plano teológico, é a descoberta da presença de delicadas mediações necessárias para esse encontro decisivo. A "neoescolástica", que Borghesi justamente identifica como uma das causas da nossa crise, revelou-se uma resposta que o século XIX deu à crise da época (e é sempre útil recordar que os "tempos difíceis" para a Igreja não começam nem com o Vaticano II, nem com o século XX, mas com o século XIX!). Ora, justamente a Neoescolástica contribuiu para transformar o tratado teológico e conduziu, ainda que a seu modo, a enriquecer as "mediações" entre o cristão e Cristo. Se na Summa Theologiae depois da Cristologia começam logo os sacramentos e depois, novíssimos, os manuais a partir do século XIX introduzem sempre novas "mediações" que se colocam entre Cristo e os sacramentos: eclesiologia, direito, litúrgica estruturam a experiência e o sentimento de relação com Cristo! Isso pode se tornar um obstáculo intransponível, e tem sido por muito tempo, mas também pode ser uma ocasião auspiciosa. Vamos ver por quê.
Precisamente estes três níveis de mediação (eclesial, jurídico e litúrgico) com o Concílio Vaticano II encontraram uma passagem decisiva, que inaugura um novo paradigma. Aqui, como é evidente, não se trata de entrar na polarização entre "tradicionalistas" e "progressistas", mas de assumir de novo, graças ao Concílio, o "legítimo progresso" como modalidade ordinária da tradição. A abertura inaugurada pelo Concílio permite redescobrir que o acesso à "pessoa de Jesus", e o encontro com Ele - que é "Lumen Gentium", que é "Dei Verbum", que é "Auctor Sacramentorum" - dependem de novos formas da mediação eclesial, jurídica e litúrgica. As reformas eclesiais, jurídicas e litúrgicas são condições necessárias, embora não suficientes, para um renascimento da força vital da fé. Uma Igreja que pensasse em substituir as reformas estruturais necessárias por experiências e sentimentos imediatos seria vítima de uma ilusão: existem condições institucionais de relação pessoal com Cristo, que nunca esgotam as suas possibilidades, mas que favorecem a sua orientação estrutural, o seu respiro e a comunicação.
Poderíamos dizer que a polarização entre tradicionalismo e progressismo deriva de uma avaliação oposta desse desenvolvimento: por um lado, o tradicionalismo acredita que o ato de fé só seja possível no Ancien Regime. Que o "mundo de antes" seja uma condição necessária da fé. De alguma forma, faz das estruturas uma condição absoluta de fé. É por isso que facilmente se torna uma forma de fundamentalismo perigoso. O progressista, por sua vez, inverte o modelo e tende a pedir à fé um "sistema de direitos e deveres" que a torne possível e aceitável. É certo, porém, que o caminho para reabrir a relação de cada sujeito com Cristo passa por um adequado repensamento e reestruturação desses três "pontos-chave" da reforma: a Igreja, a sua liturgia e a sua estrutura jurídica. O que é mais evidente hoje do que há 50 ou 10 anos é que uma "irrupção jurídico-sanitária" como a imposta pela pandemia nos mostrou bem como as "condições objetivas" podem incidir profundamente sobre as formas da fé cristã. Entender que os direitos do corpo, pessoal e eclesial, não se deixam traduzir facilmente no registo do sentimento, permite-nos compreender ainda melhor quão decisivos são os percursos de repensamento e de atualização institucional.
No texto que inaugurou este debate, Gawronski se detém longamente sobre a “centralidade eucarística” e seu “isolamento” em relação à vida. Não é por acaso que o Concílio quis começar o seu ofício de tradição precisamente a partir daí: de um profundo repensamento das "formas rituais" que implica, inevitavelmente, uma redefinição da forma eclesial e da forma jurídica. O sistema depois travou, porque fez imediatamente as reformas litúrgicas, mas quase nada fez para as reformas eclesiais e jurídicas. Uma nova liturgia em uma estrutura eclesial concebida e administrada de maneira antiga permanece isolada e é facilmente marginalizada. Todos estes, que fique claro, são apenas instrumentos para renovar a relação com Cristo, do qual vive a fé. Mas sem um solícito ato de atualização de todos os três níveis - litúrgico, eclesial e jurídico - a secularização não será apenas um álibi externo, mas também um produto interno da Igreja.
A Igreja seculariza-se não só "cedendo ao espírito dos tempos", mas interrompendo o processo de repensamento iniciado pelo Concílio Vaticano II, que a reforma litúrgica desenvolveu e que o papado de Francisco relançou significativamente. Como dizia Gawronski na conclusão, é necessário que os cristãos voltem a "explorar, refletir e falar", para dar uma figura adequada às condições formais de um ato de fé que pode redescobrir a profundidade da experiência e da emoção somente se as condições eclesiais, litúrgicas e jurídicas, não o obstaculizarem estruturalmente. É a índole pastoral do Concílio que nos persuadiu de que "a substância da antiga doutrina do depositum fidei" - que preserva a possibilidade do encontro direto com o Senhor - prevê que a "formulação do seu revestimento" possa e deva mudar.
As mudanças eclesiais, litúrgicas e jurídicas são ocasiões preciosas para renovar a experiência, o sentimento e a emoção. Não devemos esperar tudo nem muito deles, mas apenas o certo: isto é, que possam ser condições estruturais – necessárias, mas não suficientes - do ato de fé. Para isso, um caminho sinodal é o primeiro movimento de que realmente precisamos.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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Movimento, instituição e Vaticano II. A fé e o legítimo progresso da tradição. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU