Uma nova história dos sacramentos na Idade Média: o manual de Claudio Ubaldo Cortoni. Artigo de Andrea Grillo

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17 Mai 2021

 

"Gostaria de dizer que, em cada tratado sobre cada um dos sete sacramentos, o parágrafo deste volume dedicado ao sacramento correspondente torna-se um ponto de referência obrigatório, tanto em termos de informação como de discussão crítica. Sem esquecer os deleitosos esquemas “em sinopse”, onde se pode descobrir pelo confronto coisas tão díspares e tão estranhas, mas que resultam profundamente convincentes e esclarecedoras", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 15-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Hoje mesmo recebi o exemplar do livro que desejo apresentar aqui. Há, nisso, uma coincidência muito singular. Hoje mesmo foi celebrada a última oração que acompanhou o Pe. Ghislain Lafont ao enterro. No livro que apresento começa-se justamente com uma distinção formidável que Lafont ensinou ao autor, que assume a herança e a usa para ler a história dos sacramentos na Idade Média. As categorias elaboradas por Lafont tornam-se eficazes na obra de Cortoni. A relação entre mestre e aluno funciona assim em plenitude. E de grandes obras nascem grandes obras. Publico aqui a apresentação que o autor me solicitou para a abertura do livro.

 

A história medieval dos sacramentos e seu impensado

Muitas vezes acontece que o historiador dos sacramentos não esteja bem alicerçado de boa teologia, e que o teólogo dos sacramentos, por sua vez, seja um historiador apenas ocasional, para não dizer de segunda mão. Acontece que o primeiro se deixa impor as categorias sistemáticas sem pleno conhecimento, e o segundo "usa os fatos" sem muito critério. Essa condição de pesquisa frequentemente gera grandes ilusões e, mais vezes ainda, cai em graves ingenuidades. O historiador, portanto, usa com desenvoltura esquemas sistemáticos maiores do que ele, que ele "impõe acriticamente" aos dados do estudo. Enquanto o teólogo assume as “histórias” de forma igualmente ingênua, levantando a palavra da fácil e constrangedora liberdade dos “fatos documentados”. Quando, ao invés, acontece, como neste caso, que o historiador tenha elaborado uma questão sistemática forte e articulada, e que o teólogo seja dotado de uma cultura filológica e histórica "como pesquisador", e que, além disso, as duas figuras coexistem, mais ou menos harmoniosamente, na mesma pessoa, então o resultado só pode ter grande importância e o texto se revela capaz de conduzir a conhecimentos muito consistentes no plano científico e pedagógico. Desejo apresentar, de forma sintética, as vantagens que decorrem desta bendita “conjunção” de métodos e linguagens, tal como a encontramos exposta pelo autor deste manual.

 

A história medieval e perguntas modernas e contemporâneas

Desde as primeiras linhas de sua Introdução Claudio U. Cortoni mostra as "cartas" com que quer jogar: isto é, oferece um resumo dos "quatro limiares da modernidade" (um a mais que o três indicados por Ghislain Lafont) que permitem - a ele e a nós - entender o que procurar na história medieval dos sacramentos. Trata-se, portanto, de um olhar “a partir do fim da história”, ou seja, da inauguração de uma compreensão “moderna” (e contemporânea), da qual as condições de possibilidade, oposições e contradições polares. Em outras palavras, buscamos na Idade Média sacramental as "formas" - mentais e práticas - para compreender o que, desde o século XV, se tornou cada vez mais evidente e, portanto, também incompreendido. A história medieval dos sacramentos torna-se assim uma forma de radical questionamento das categorias modernas e contemporâneas do conhecimento sacramental e litúrgico, de suas luzes e sombras. Os 4 limiares, sobre os quais se deter no estudo, são apresentados pelo autor com as seguintes palavras:

a passagem de um pensamento alegórico a um pensamento filosófico ou da libelística à dialética; os modelos eclesiológicos que se sucederam; a forte tensão escatológica que animava o homem medieval, a ponto de modelar sua própria ordem social sobre ela; as novas heterodoxias ligadas, por um lado, às controvérsias sobre a encarnação da segunda Pessoa da Trindade e, por outro, à tentativa de reformar a Igreja nas instâncias evangélicas“.

Como é evidente, esses quatro pontos emergem de questionamentos contemporâneos, cuja elaboração é típica dos séculos XIX e XX. Respondem, em certo sentido, a uma busca que, desde meados do século XIX, deu origem a “movimentos” de redescoberta do patrimônio bíblico, patrístico, litúrgico e ecumênico, que depois no século XX atuou, mais ou menos em concordância, com uma "reforma da Igreja". Que, de fato, teve que elaborar "formas de linguagem", "modelos de Igreja", "recuperações da escatologia" e "repensamento de doutrina e disciplina" entre si estreitamente relacionados.

Cavando os séculos VII-XIV, C. Cortoni traz à luz, sobre este "tema sacramental", uma elaboração preciosa e estrutural, subjacente ou evidente, bem conhecida ou coberta de pó, que só pode aparecer completamente límpida à luz destas “perguntas sistemáticas”, que percorrem todas as páginas do volume. Sua estrutura é, de fato, de caráter não simplesmente "cronológico", mas "sistemático".

 

O índice do livro

O livro, intitulado Christus Christi est sacramentum, desenvolve-se de acordo com uma ordem muito convincente. Está estruturado em quatro partes que são, ao mesmo tempo, o desenvolvimento histórico do sistema teológico e a articulação sistemática da história eclesial. Aqui estão as quatro etapas:

I) Uma igreja "quase pessoa". Eclesiologia e sacramentos medievais

II) os sacramentos na manualística medieval

III) O sacramento em geral

IV) O setenário sacramental

Em cada uma dessas partes, é desenvolvida uma obra de documentação apurada, que atesta a pluralidade de perspectivas e a diferença de olhares, não só cronologicamente distinta, mas também articuladas de acordo com as escolas, as influências e os problemas a serem enfrentados. Bastante interessante é também, na última parte, a apresentação pontual de todo o setenário sacramental, com a utilização de categorias e perspectivas verdadeiramente originais.

Limito-me a indicar, de forma puramente rapsódica, algumas das ideias mais significativas de cada parte, em relação à questão sistemática que as alimenta.

 

A redescoberta do horizonte eclesiológico dos sacramentos

O ponto de partida do livro é a passagem de uma leitura "tripartida" (leigos, monges, clérigos) do corpo eclesial à afirmação do modelo das "duas ordens" (clérigos/leigos). Este é o horizonte institucional no qual se desenvolve a reflexão sacramental, lematizando-a apenas parcialmente. Assim, poderíamos dizer, há um "pressuposto eclesial" para o conhecimento litúrgico e sacramental que merece um olhar inicial. Nesse espaço, a compreensão da Igreja como corpo místico traduz-se, ao longo dos séculos, na leitura do corpo sacramental no corpo eclesial. O surgimento de uma nova mediação jurídica, que reinterpreta a tradição litúrgica e sacramental, permite uma reconstrução do saber e do fazer eclesial do qual a modernidade será herdeira apenas parcialmente inconsciente.

 

A construção do manual sobre os sacramentos

A segunda etapa que é estudada com atenção é o surgimento da forma "sistemática" de entender os sacramentos. Muitos são os fatores a considerar: por um lado, a introdução do “saber dialético”, que vai substituindo gradativamente, ainda que nunca completamente, o saber epistolar, homilético ou alegórico; por outro lado, também evolui o “saber litúrgico” que, embora mantendo sua autonomia, acabará em grande parte traduzido nas categorias escolásticas. Alguns esquemas sinópticos, que mostram a evolução dos "índices" das obras mais relevantes entre os séculos IX e XIII, permitem considerar as mudanças de acento, perdas e ganhos que a idade moderna e contemporânea receberam e por sua vez elaboraram, superaram ou traíram.

 

O sacramento como "gênero" de saber teológico

O terceiro momento do texto é a lenta elaboração, estudada cronologicamente, do "gênero sacramental", que se realiza em estreita relação com a compreensão do sacramento eucarístico. Uma afinação da noção, que se formalizaria apenas no início do século XIII, atravessa a primeira e a segunda controvérsias eucarísticas, chegando finalmente a uma reelaboração por meio das categorias dialéticas da escolástica e da nova ciência canônica. Também neste caso, o conhecimento detalhado dos entrelaçamentos entre herança agostiniana, seu reaproveitamento nas controvérsias em torno de Pascásio e Berengário, e o desfecho escolástico, preparam um material que a recepção moderna e contemporânea poderá discernir com lucidez, ora mais ora menos adequada.

 

O desenvolvimento sistemático de cada um dos sete sacramentos

A identificação dos "sete sacramentos" - ligada por um lado à formulação da categoria "genérica" do sacramento e, pelo outro, à contraposição às novas heresias - é apresentada em duas momentos:

- o primeiro é a estruturação do setenário e sua “lógica interna”. Os principais entendimentos sistemáticos (Hugo de São Vítor, Abelardo e Pedro Lombardo) são apresentados sucessivamente para depois confrontá-los com a versão de Guilherme Durando. Uma “lógica complexa” emerge, tanto na sucessão dos 7, quanto na identificação da lógica de “necessidade”, de “dignidade” e de “vontade” que eles comportam.

- o segundo é o desenvolvimento da compreensão de cada um dos sete, que é proposto com uma riqueza de referências e sempre com uma atenção vigilante ao desenvolvimento da sistemática do século IX ao XIV. As teorias prevalentes são estudadas para cada um dos sacramentos. A análise da transformação do saber eucarístico parece muito clara nessas passagens. É um quadro bastante sugestivo de teorias, influências, sínteses e conflitos, que ilustra a grande liberdade de debate e os verdadeiros temas de confronto. Assim, as controvérsias eucarísticas respondem a questões que não dizem respeito principalmente à Eucaristia, mas à cristologia, à soteriologia e à eclesiologia.

Cada um dos sete sacramentos é relido numa multiplicidade de perspectivas, que dependem das escolas teológicas e das questões (clássicas ou novas) que deviam ser abordadas. Assim, na sequência estabelecida por Pedro Lombardo, mas integrada pelas categorias de Guilherme Durando, uma série inumerável de leituras enriquece o testemunho da elaboração nos sete séculos da Idade Média. Gostaria de dizer que, em cada tratado sobre cada um dos sete sacramentos, o parágrafo deste volume dedicado ao sacramento correspondente torna-se um ponto de referência obrigatório, tanto em termos de informação como de discussão crítica. Sem esquecer os deleitosos esquemas “em sinopse”, onde se pode descobrir pelo confronto coisas tão díspares e tão estranhas, mas que resultam profundamente convincentes e esclarecedoras.

Tudo isso leva a uma grande renovação sobre as formas modernas e contemporâneas de reflexão sobre o sacramento. Visto que a Idade Média atesta, ainda que na afirmação de uma tendência que mais tarde será assumida como prevalecente, tamanha liberdade de reflexão e tamanha parrésia de confronto, que a sua leitura hoje só pode favorecer o debate eclesial e para a formação dos estudantes e ministros. E assim, a partir de um livro que é realmente um "manual", mas que propicia o sabor da pesquisa por ser fruto de leituras diretas e em primeira mão, pode-se aprender muito não só sobre a Idade Média, mas sobre a Igreja moderna, e também do nosso tempo atual. Aliás, esta leitura da Idade Média oferece-nos a chave para apreender, com surpreendente riqueza, o "impensado da tradição" e, portanto, uma condição de possibilidade da sua continuação hoje, mesmo sob outra espécie. À escola de teologia carecia um instrumento como este. Agora será difícil prescindir dele, tanto para um estudo acadêmico verdadeiramente fundado e crítico, quanto para uma formação de base adequadamente aberta e sensível.

 

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