"Até hoje, ainda não elaboramos a fundo essas mudanças substanciais. Das "potestates" aos "munera" há uma diferença categorial que implica um novo paradigma de pensamento e de ação", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 18-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enrico Mazza, em seu artigo "Sacramentais e sacramentos: uma questão teológica mais que pastoral"[1], identifica de imediato o modo com a qual a teologia escolástica distinguiu os sacramentos dos sacramentais: enquanto os primeiros agem “ex opera operato”, os segundos “ex opera operantis”; portanto, os primeiros são eficazes “pelo próprio fato que se realiza o rito”, enquanto os segundos dependem da “oração da Igreja”. Tudo isso depende de uma terceira distinção, que é decisiva: os sacramentos são "instituídos por Cristo", enquanto os sacramentais são "instituídos pela Igreja". Essas evidências teóricas, amadurecidas ao longo dos séculos, no entanto, encontram dificuldades para serem coordenadas com os dados históricos. Se lemos a história, aprendemos nuances novas e talvez inesperadas.
De fato, a compreensão da categoria de "sacramental" ocorre apenas a partir de Guilherme de Aurillac, em seu De sacramentis, por diferença em relação à categoria de "sacramento". Assim, pode-se afirmar como uma "categoria residual" na qual são encerradas “coisas e ações que a Igreja, de algum modo à imitação dos sacramentos, por sua impetração, costuma usar para obter alguns efeitos especialmente espirituais" (CJC 1917, cân. 1166). No código sucessivo, de 1983, "sinais sagrados" são substituídos a coisas e ações e se acrescenta "obter", tornando passivo o verbo "significar", mas fora isso a definição permanece substancialmente a mesma.
Podemos observar, na definição, três aspectos:
- a analogia com os sacramentos;
- a leitura em termos de "eficácia";
- certa dimensão sígnica, recuperada recentemente;
Mas há um aspecto que a diferença não traz luz e que Mazza, em seu artigo, ressalta claramente: toda alteração da sequência sacramental determina uma mudança paralela da sequência dos sacramentais. Com o enrijecimento do número de sacramentos em "não mais nem menos que sete" a questão parece resolvida, mas na realidade trata-se de um efeito "de perspectiva". O tema do "sacramental" permanece interessante por vários motivos. Se os sacramentos, depois de Trento, adquiriram um número fixo, o seu entendimento acabou sofrendo grandes transformações. Essa mudança de perspectiva de leitura dos "sete" também trouxe grandes novidades para os sacramentais.
Na iniciação cristã, por exemplo, a redescoberta do catecumenato reinterpretou a sequência dos três sacramentos, e o processo para chegar a isso, como um conjunto de “coisas e ações” que se tornam relevantes para o sacramento, constituindo um seu componente estrutural. Descobrimos assim, de certa forma, que existem “sacramentais internos aos sacramentos”.
O sacramento da ordem, em particular, sofreu um verdadeiro terremoto depois do Vaticano II. A forma anterior previa um "cursus" que atravessava quatro "ordens menores" e alcançava as três "ordens maiores" das quais apenas o "sacerdócio" era, de fato, o sacramento. Naquele modelo ficava na região do "sacramental" não só o que estava entre tonsura/leitorado e subdiaconato, mas também, para nossa surpresa, a "consagração do Bispo".
É precisamente o citado Gerbert, em seu “De sacramentis”, que abre a história dos sacramentais lendo justamente a “consagração do bispo” como “santificação” e exemplo máximo de sacramental: não sacramento, mas sacramental. A teologia escolástica produz essa "dessacramentalização" do episcopado, evidentemente muito distante da concepção antiga. O quanto o "sistema" é modificado pela história é demonstrado pelo fato de que a categoria entra em campo para "valorizar" o efeito de santificação da "consagração" do bispo, das virgens, do abade: "sacramentalia sunt ut adiumenta sacramentorum". Este incipit da história do conceito é singular e instrutivo: no momento em que o caso principal do "sacramental" – ou seja, a "consagração episcopal" - se torna, após a reforma litúrgica do Vaticano II, a pedra angular do sacramento da ordem, toda a categoria sofre uma releitura radical, que merece uma definição nova e mais específica. Com a reforma litúrgica, esta relação entre o único sacramento da ordem - o presbiterado/sacerdócio - e uma luxuriante sequência de sacramentais antes e depois dele, é profundamente reescrita: o sacramento assume "três graus" - isto é, diaconato, presbiterado e episcopado - e os outros ritos (sacramentais) são reduzidos a dois: leitorato e acolitato.
Um específico "observatório" a partir do qual observar o fenômeno histórico é o Caeremoniale episcoporum, que dedica uma parte específica a esse tema, precisamente como competência própria do Bispo[2]. A reformulação do livro ocorre precisamente como consequência da grande redescoberta da liturgia como "linguagem elementar" da Igreja. Vamos ver essa novidade com mais detalhes.
Certamente o tratamento mais amplo dos "sacramentais", que podemos encontrar na tradição teológica, é bastante recente. Ocorre depois da Reforma litúrgica e passou a constituir o Caeremoniale episcoporumem em 1984. É um volume "isolado", que pode guardar grandes surpresas. Paolo Tomatis ofereceu recentemente uma leitura surpreendente3. Antes de examiná-la, no entanto, gostaria de considerar brevemente quão diferente é a forma atual do Cerimonial da forma anterior.
O que existia “antes” correspondia perfeitamente a uma ideia de “cerimônia” – que permanece no título do texto inclusive hoje – entendida justamente através da “distinção” entre culto e santificação. O "cerimonial" era o instrumento para as "cerimônias" que cabiam à pessoa do Bispo. Como o Bispo foi, durante pelo menos um milénio, identificado pela "potestas iurusdictionis" e não pela "potestas ordinis" (que derivava a ele por ser presbítero-sacerdote), o "livro das cerimônias do bispo" tinha um carácter todo peculiar . O Concílio percebeu imediatamente que, modificando a "teologia do episcopado" - isto é, teologizando e sacramentalizando uma função jurisdicional – teria que abrir um processo de modificação profunda do "ritual episcopal". Duas coisas eram claras: que isso seria feito apenas "no final", e que, no entanto, era necessário intervir imediatamente para os pontos mais urgentes. Assim aconteceu em 1968: ao mesmo tempo em que foram aprovados os "novos ritos de ordenação", eram modificadas as normas do cerimonial dos bispos, com a Instrução "Pontificales ritus". Mas a intervenção definitiva ocorreria somente após um longo trabalho que só terminou em 1984.
Para entender a novidade do sistema, dentro do qual encontram lugar os sacramentais, devemos considerar o” sistema" anterior. Uma inteligência sistemática aqui se revela decisiva. Já considerando o índice do Cerimonial Tridentino (cuja última edição é de 1886) vemos uma enorme diferença. Estamos diante de um paradigma diferente. O texto está estruturado em três livros:
a) O primeiro livro apresentava as normas para o Bispo no espaço: vestes, ações, colaboradores, cerimônias ordinárias;
b) O segundo livro apresentava as normas para o Bispo no tempo da oração cotidiana e no ritmo do ano litúrgico, com descrição pormenorizada;
c) O terceiro livro era inteiramente dedicado a cerimônias ligadas às relações entre autoridades. Um livro que, com o fim do poder temporal de 1870, de fato já havia entrado numa espécie de limbo.
Essa estrutura trata das "cerimônias episcopais", ordenando-as conforme indicado. Obviamente, carece completamente tanto da consciência de que o Bispo expressa a "plenitude do sacramento da ordem", quanto da relação estrutural com os diversos sacramentos, exceto a celebração da Missa.
A estrutura do texto de 1984 é totalmente repensada. Alguns elementos do primeiro e segundo livros foram transferidos para os apêndices, enquanto a estrutura aparece da seguinte forma:
Proêmio, de natureza histórica
Parte Primeira: A liturgia episcopal em geral
Parte Segunda: A Missa
Parte Terceira: A Liturgia das Horas e as Celebrações da Palavra de Deus
Parte Quarta: As celebrações dos Mistérios do Senhor durante o Ano Litúrgico
Parte Quinta Os Sacramentos
Parte Sexta: Os Sacramentais4
Parte Sétima: Dias memoráveis na vida de um Bispo
Parte Oitava: Celebrações Litúrgicas relacionadas com os atos solenes do Governo Episcopal
Nunca, ao longo da história da Igreja, houve tal reformulação do perfil das ações episcopais, uma plena atestação da relação eclesial com as vocações, com o espaço, com tempo, com as pessoas. Isso foi possível com base em uma dupla mudança decisiva, que ressoa como um duplo limiar de reforma do ministério:
- A consagração episcopal saiu do âmbito dos sacramentais e tornou-se a plenitude do sacramento da ordem;
- O exercício da "potestas ordinis" do Bispo, recuperada em plenitude e não mais separada da "potestas iurisdictionis", estendeu-se não só ao âmbito dos sacramentos, mas também a toda a "liturgia da Igreja".
Até hoje, ainda não elaboramos a fundo essas mudanças substanciais. Das "potestates" aos "munera" há uma diferença categorial que implica um novo paradigma de pensamento e de ação.
[1] E. Mazza, Sacramentali e sacramenti: una questione teologica prima che pastorale, “Rivista di pastorale liturgica”, 307(2014), 4-18..
[2] No entanto, trata-se de um desenvolvimento bastante tardio, do final do século XX. Trata-se de um arranjo que merece ser observado em perspectiva, com uma comparação entre esse “instrumento” e o anterior. O desenvolvimento do Cerimonial, como "ordo" que assume a perspectiva da diferença entre sacramentos e sacramentais, decorre de uma releitura da tradição em que - sobretudo no episcopado - a recuperação da "dignidade sacramental" coincide com uma grande diferença entre "ação litúrgica" e "cerimônia pública ".
[3] Cf. P. Tomatis, Le Cérémonial des Eveques du Vatican II. Un 'précipité' de la Réforme Liturgique,“La Maison-Dieu”, 296/2 (2019), 123-138.
[4] Que incluem: Bênção do Abade, Bênção da Abadessa, Consagração das Virgens, Profissão Perpétua de Religiosos, Profissão Perpétua de Religiosas, Instituição de Leitores e Acólitos, Exéquias presididas pelo Bispo, Colocação da Primeira Pedra ou Início da Construção de uma Igreja, Dedicação da Igreja, Dedicação de Igreja onde já se costuma celebrar o Culto, Dedicação de Altar, Bênção de uma Igreja, Bênção de Altar, Bênção de Cálice e de Patena, Bênção de um nova Fonte Batismal, Bênção de uma nova Cruz que se vai colocar à Veneração Pública, Bênção de Sino, Rito de Coroação de Imagem da Bem-Aventurada Virgem Maria, Bênção de um Cemitério, Preces Públicas a fazer quando uma Igreja tiver sido violada, Procissões, Exposição e Bênção da Eucaristia, Bênçãos dadas pelo Bispo.