17 Agosto 2021
“A mentalidade relacional se dirige primeiro ao que está ocorrendo na dinâmica humana da situação. Se isso não for atendido, se as necessidades e preocupações dos participantes da situação não forem resolvidas (ou pior, conflitantes), toda a correção legal do mundo será inútil. Para aqueles de mentalidade canônica, por outro lado, questões de interações humanamente satisfatórias, de empoderamento genuíno e respeito mútuo, são, na melhor das hipóteses, uma reflexão tardia, uma distração. A ordem estrutural é oferecida como resposta a questões que não são estruturais, mas relacionais”, escreve George Wilson, jesuíta, professor aposentado de eclesiologia, residente em Baltimore, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 13-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A história a seguir realmente aconteceu. Apenas os nomes são fictícios. Nós começamos com a história do bispo Matthew.
Ele está em reunião com os padres do seu conselho. (Eu estou presente como um observador).
Dom Matthew está sentado à mesa, seus adereços brilhantes estão em evidência.
Um gravador dá a certeza que cada palavra do diálogo poderá ser recuperada depois, caso seja necessário esclarecer algum mal-entendido. No início da reunião uma votação ocorre. O tema não é importante. O ponto importante é o resultado: 24 sim, 17 não, 8 abstenções.
A moção é aprovada.
No meio da reunião, depois de outros itens serem debatidos, um dos padres levanta a sua mão e faz uma pergunta: “eu tenho uma preocupação sobre a decisão que nós tomamos mais cedo. O que nosso estatuto diz sobre o que constitui a aprovação de uma moção? O estatuto requer apenas uma maioria simples de votos, ou requer a maioria absoluta? Se for este, então a moção recebeu menos e então não passou”.
Como presidente da reunião, dom Matthew responde: “Esse é um bom ponto. Alguém tem alguma cópia do nosso estatuto?
Por outro lado, interessantemente, ninguém realmente sabe o que o estatuto requer. E não há cópias disponíveis ali. Esse é um dilema.
O bispo vem com uma solução salomônica.
“Quando eu retornar da chancelaria eu checo o estatuto. Se ele diz que nós precisamos apenas a maioria os votos, nós temos a decisão aprovada; se requer a maioria absoluta dos votos, a moção debatida na próxima reunião”.
Isso é interessante: um livro determinará se um grupo de agentes humanos tomará ou não uma decisão (a qual, presumivelmente, é um compromisso coletivo). Suas palavras permanecem gravadas na minha memória mesmo depois de anos.
O segundo conto envolve o bispo Luke.
Ele tem um conselho diocesano de pastoral recém-formado e me pediu para dar treinamento para alguns dos membros.
Nós estamos explorando seu papel enquanto um conselho e sua relação com ele como ordinário.
Dom Luke não se senta à ponta da mesa. Ele está no círculo como todo mundo.
Quando divido o grupo em pares para compartilhar algumas histórias pessoais, ele compartilha sua jornada de fé com o parceiro que lhe foi designado.
Mais tarde, após algumas sugestões sobre o papel do conselho, um dos participantes perguntou: “Bispo, estamos sendo solicitados a dividir a responsabilidade com você, oferecendo nossos conselhos sobre assuntos importantes. Você terá o poder de veto sobre nossas recomendações?”.
Esses membros do conselho são pessoas comprometidas com o bem da Igreja, mas sua pergunta indica algum ceticismo: eles não estavam interessados em ser usados como um carimbo para o que o bispo pretendia fazer em qualquer caso.
O bispo Luke responde: “Deixe-me responder da seguinte forma: se Roma me pergunta se eu retenho o poder de ser o decisor final, é claro que devo dizer que sim. Sempre terei a responsabilidade final por qualquer decisão que tomemos como um conselho. Mas acredito que sempre seremos capazes de chegar a uma escolha que todos possamos apoiar. Portanto, não quero mais ouvir a palavra ‘veto’”.
E, ao longo de quatro anos, o corpo tomou muitas decisões importantes, colegialmente. O bispo manteve sua autoridade como o responsável final pelas decisões. A palavra ‘veto’ nunca mais foi mencionada.
Tenho refletido sobre essas duas experiências diferentes e muitas outras semelhantes ao longo dos meus anos como facilitador de processos em muitos níveis da vida da Igreja, paroquial, diocesana e nacional.
Gradualmente, um insight foi tomando forma em minha mente. Acredito que isso explica as diferenças entre as abordagens dos dois bispos. E sugere a difícil tarefa que temos pela frente.
Pode ajudar citar primeiro algumas coisas que não estão acontecendo aqui:
1) Embora tenham abordagens muito diferentes, nenhum desses bispos está desempenhando seu cargo de má-fé.
Ambos são eclesiásticos honrados, sinceros em sua intenção de fazer o que é melhor para a Igreja.
Que alguém tenha de levantar a possibilidade de má-fé é um triste comentário sobre nosso clima atual de desconfiança e até de ataque pessoal mordaz.
Quando as avaliações de desempenho por funcionários humanos imperfeitos passam rapidamente a acusações de abuso intencional de seu cargo, todos ficamos feridos.
O problema em nossos dois contos não é “malícia contra virtude”, e é um desserviço colocá-lo nesses termos;
2) Nem Matthew, nem Luke são arrogantes quanto à autoridade da lei canônica, muito menos a desprezam.
Ambos sabem que a Igreja, como qualquer outra organização, precisa de normas aceitas que governem suas decisões.
Se a questão não for entre fidelidade e má-fé, também não será “obediência contra desconsideração da autoridade”. Ambos os bispos são obedientes.
Eles diferem, não na legitimidade das leis, mas no lugar a ser atribuído aos próprios processos jurídicos na vida e no crescimento da comunidade dos batizados na vida de Jesus.
Insistir na integridade moral de cada bispo não significa, entretanto, que suas duas abordagens sejam igualmente louváveis, ou mesmo igualmente consoantes com o Evangelho.
Em cada uma das duas histórias, a escolha específica em jogo teve, sem dúvida, consequências para os participantes.
Coisas como padrões claros para determinar a mentalidade de um conselho (no caso do conselho presbiteral de dom Matthew), ou expectativas claras sobre o papel e os limites de um corpo consultivo (no caso de dom Luke), não são assuntos triviais.
Acontece, porém, que essas duas questões de conteúdo são menos importantes do que o que é revelado pelas diferentes abordagens que cada bispo fez da situação em questão.
Seu comportamento revela duas mentalidades fundamentalmente incompatíveis em ação.
A questão não reside no conteúdo, na substância, do direito canônico ou nos procedimentos estabelecidos para assegurar sua aplicação válida a casos particulares.
Está no espírito humano.
A diferença entre Matthew e Luke está na atitude que cada um traz para o difícil processo humano de negociar diferenças e fazer escolhas humanas.
Falo de diferentes atitudes, de diferentes mentalidades, de algo que reside no nível do espírito humano.
Outra palavra em voga pode chamá-los de sensibilidades diferentes.
Tais expressões requerem delineamento adicional, para que não percam seu potencial analítico e se tornem uma desculpa para moralizar.
Como as duas mentalidades diferentes se manifestam? Quais indicadores comportamentais apontam para sua presença?
Quando dom Matthew depara-se com a questão de saber se seu conselho havia tomado uma decisão, sua resposta imediata e instintiva foi buscar um padrão jurídico abstrato que abordaria a situação e resolveria o dilema.
Ele não questiona a dinâmica humana em ação.
Para ele, uma decisão não é um compromisso humano de agir.
Em vez disso, o ato de tomada de decisão humana foi identificado com um indicador quantitativo de sua possível presença.
E mais, mesmo que o indicador falível seja totalmente desconectado do espírito humano daqueles que estão votando: isso tem de ser encontrado de um tomo em uma estante.
Eu sugeria que nós caracterizemos isso como uma “mentalidade canônica”. (Esta não pode ser considerado um julgamento negativo aos canonistas. Eles prestam um importante serviço à nossa Igreja. O termo se aplica à orientação mental ou espiritual, não à ocupação.)
A mentalidade canônica privilegia estruturas pré-definidas sobre as relações humanas.
Questões entre seres humanos de carne e osso, que são realmente questões de relacionamento humano, são tratadas como se fossem, antes de tudo, questões de adjudicação legal.
A questão em jogo na reunião que ele liderava era: os padres de seu conselho estão realmente se comprometendo com um determinado curso de ação, ou não?
Mas sua orientação básica transmuta essa questão real e a torna uma de validação numérica: qual número representa uma decisão?
A abordagem de dom Luke, por outro lado, representa um extremo oposto.
Ele foi questionado sobre uma questão que parece, superficialmente, ser sobre a lei: qual é o sentido do conselho se um veto sempre ameaça anular seu efeito?
Vindo de uma mentalidade totalmente diferente da de seu irmão bispo, o instinto de Luke é reconhecer que a preocupação humana levantada é mais significativa do que as legalidades em jogo.
Ele reconhece o desejo muito apropriado do questionador de envolvimento e colaboração genuínos.
Se ele simplesmente reafirmasse que a lei canônica lhe atribui poder de veto sobre qualquer conselho do conselho, ele estaria contornando a preocupação humana subjacente à questão.
Portanto, ele aborda essa preocupação básica de frente. Sua resposta diz, com efeito: “respeitaremos o direito canônico, é claro, mas é assim que nos relacionaremos”. Eu proporia que chamássemos isso de “mentalidade relacional”.
A diferença entre as duas mentalidades é de prioridade atitudinal.
A mentalidade relacional se dirige primeiro ao que está ocorrendo na dinâmica humana da situação.
Se isso não for atendido, se as necessidades e preocupações dos participantes da situação não forem resolvidas (ou pior, conflitantes), toda a correção legal do mundo será inútil.
Para aqueles de mentalidade canônica, por outro lado, questões de interações humanamente satisfatórias, de empoderamento genuíno e respeito mútuo, são, na melhor das hipóteses, uma reflexão tardia, uma distração.
A ordem estrutural é oferecida como resposta a questões que não são estruturais, mas relacionais.
Paradoxalmente, a própria mentalidade canônica frequentemente subverte a intenção original dos próprios cânones.
Pegue o termo ‘consultivo’, por exemplo.
Quando um conselho, seja em nível de paróquia, diocese ou nação, é considerado “conselheiro” ou “consultivo”, a intenção clara da lei é que as pessoas que estão sendo convidadas a servir em tal órgão irão receber uma nova forma de empoderamento.
Suas preocupações e ideias devem ser recebidas com uma seriedade que não está ao alcance dos fiéis que não foram escolhidos.
Alguém poderia razoavelmente concluir que tal empoderamento cria uma nova obrigação correspondente ao líder: o pastor ou bispo ou corpo de bispos. Infelizmente, nem sempre é esse o caso.
Em vez disso, por um processo sutil (ou não tão sutil), os líderes com a mentalidade canônica transmutam a linguagem de ‘conselheiro’ ou ‘consultivo’ em ‘meramente conselheiro’ ou ‘meramente consultivo’.
Essa tradução então se torna, na verdade, “não preciso me preocupar com o que eles estão dizendo – é apenas um conselho”. A intenção mais profunda da lei é subvertida.
Essa mentalidade, então, produz um efeito pernicioso em todo o sistema. É uma questão frustante, para que os membros até desconsiderem a possibilidade de servir em um conselho.
O comentário é ouvido com muita frequência: “Por que se preocupar? Ele (ou eles) já estão decididos. Eu me preocupo com nossa Igreja. Mas não vale a pena meu tempo; não quero ser tratado como um carimbo”.
Essa resposta apropriadamente razoável dá origem ao comentário egoísta frequentemente ouvido dos lábios das lideranças: “Conselhos são uma perda de tempo. Meu pessoal não quer se doar para o bem da comunidade”.
Não é preciso muita análise para entender por que detentores de cargos inseguros adotam a mentalidade canônica. Isso os protege da confusão do envolvimento humano genuíno.
Viver com uma mentalidade relacional não é fácil. Requer vulnerabilidade pessoal.
Quando um grupo de indivíduos se engaja na busca por uma base comum, por um compromisso compartilhado com cursos de ação que inerentemente carregam riscos e custos, diferenças de perspectiva rapidamente surgem.
Que é uma boa maneira de falar de paixões e preconceitos e frustrações reprimidas e esperanças de longa data, ou talvez até mágoas enterradas, mas ainda fervendo por erros percebidos que ocorreram décadas atrás.
Em suma, todo o pacote de diferenças humanas, o que nos caracteriza como pessoas distintas.
É comum nos cursos de liderança exortar os ocupantes de cargos a ouvir.
Com muita frequência, a mentalidade canônica traduz isso em ‘prestar atenção ao que está sendo dito’.
Vulnerabilidade é outra questão. Sua própria derivação envolve deixar-se ferir, ser invadido ou ocupado por ideias ou emoções que podem ser bastante perturbadoras.
Essa é uma antítese direta de autoproteção incorporada na mentalidade canônica.
Para ‘ficar à mesa’ com alguém comprometido profundamente a um propósito diferente é muito exigente.
Apenas pergunte isso a qualquer casal.
Em uma interação genuinamente relacional, posso me ver tendo que desafiar convicções sustentadas há muito tempo sobre assuntos importantes.
Se eu sair do meu lugar seguro para encontrar o outro, a experiência de insegurança pode ser bastante perturbadora.
O próprio processo de se envolver em uma troca genuinamente humana – mesmo se eu sair disso mais firmemente convencido de minha posição – vai me mudar, independente da vontade.
O bispo Luke foi capaz de entrar em contato com as pessoas de seu conselho porque estava baseado na convicção de que eles sempre seriam capazes de encontrar uma base comum, mas essa convicção foi ampliada enquanto eles lutavam com decisões reais. A vulnerabilidade custa caro.
A mentalidade canônica de dom Matthew, por outro lado, evita tensões desconfortáveis no momento presente, com certeza.
Mas evitar a conexão relacional acaba gerando desconfiança e até mesmo cinismo sobre a possibilidade de compartilhar responsabilidades como pares. Quando o ‘líder’ tem todas as respostas desde o início, por que se preocupar?
O mal-estar atual em relação a uma Igreja perdida no emaranhado de sutilezas canônicas – e não se engane, é generalizado – não surgiu ontem.
O Evangelho de Mateus coloca nos lábios de Jesus um protocolo ordenado para lidar com as tensões dentro da comunidade cristã. Alguns passos devem ser dados antes de recorrer a outros.
“Se o seu irmão pecar, vá e mostre o erro dele, mas em particular, só entre vocês dois. Se ele der ouvidos, você terá ganho o seu irmão. Se ele não lhe der ouvidos, tome com você mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Caso ele não dê ouvidos, comunique à Igreja” (Mt 18: 15-17).
É verdade que o contexto imediato da passagem é de correção fraterna, e não de tomada de decisão coletiva.
Mas esse fato não deve nos distrair do princípio mais profundo que está sendo exemplificado.
O primeiro passo para a resolução de situações que envolvem tensão interpessoal é envolver a parte com a qual não estou em paz.
O recurso a terceiros, muito menos a normas que exprimem um juízo prévio coletivo da comunidade eclesial, só entra em ação depois de quebrado o esforço de engajamento relacional.
Antes de todas as outras distinções na política da Igreja, somos irmãs e irmãos, pares em nossa dignidade batismal. Nossa dignidade comum como membros batizados de Jesus exige de nós um esforço incansável para permanecermos abertos à mudança.
Que tal mentalidade relacional era mais do que um ideal piedoso entre os primeiros seguidores de Jesus fica claro no comportamento de Paulo: “Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público” (Gal 2, 11).
Ele aceita totalmente o status ‘canônico’ de Pedro e Tiago como líderes credenciados na Igreja.
Ele submete a avaliação de seu ministério ao julgamento deles, com certeza, mas só depois de tê-los acusado diretamente de hipocrisia, referindo-se a eles como “os chamados pilares” cuja alta reputação nada significava para ele.
Sua linguagem é dificilmente imaginável para nós em uma Igreja que passou a identificar caridade com polidez, mas é a linguagem do relacionamento: de carinho, convicção e honestidade – e vulnerabilidade.
Claro que o modelo mais poderoso, neste como em tudo, é Jesus. Ele não vem para destruir a lei, mas para cumpri-la.
Para esse fim, ele não hesita em chamar os guardiões da tradição de sepulcros caiados. Mas apenas porque ele simpatiza com as pessoas a quem são chamados a servir.
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Por que eles não escutam? Um conto de dois bispos, um conto de duas mentalidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU