31 Mai 2021
"O que o Papa Francisco está realmente fazendo com o seu chamado à sinodalidade é uma rejeição radical de toda uma cultura na qual o clero sabe o que é melhor e o papel dos leigos é simplesmente 'rezar, pagar e obedecer'”.
A opinião é de George Wilson, padre jesuíta estadunidense e eclesiólogo aposentado que mora em Baltimore. É autor de “Clericalism: The Death of Priesthood” [Clericalismo: a morte do presbiterado, em tradução livre] (Liturgical Press, 2008).
O artigo foi publicado em La Croix International, 27-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Comentários recentes sobre o apoio do Papa Francisco à sinodalidade me levaram a vasculhar as memórias dos meus anos como consultor/facilitador de muitas dioceses e congregações religiosas para ver com que ideias eu poderia contribuir para a discussão.
Deixe-me começar observando que o próprio termo “sinodalidade” é de origem recente. É uma abstração.
Nos anos imediatamente posteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965), falávamos das estruturas organizacionais que estavam sendo instituídas para promover a responsabilidade compartilhada na Igreja: sínodos, concílios, conselhos e semelhantes.
Em contraste com essas instituições de carne e osso, a palavra “sinodalidade” parece ser uma tentativa de nomear uma atitude ou orientação de abertura para a adoção de tais estruturas.
O papa deseja ver uma Igreja na qual um espectro mais amplo de fiéis tenha voz e compartilhe a responsabilidade pela vida da nossa Igreja.
No uso popular, o substantivo “sínodo” refere-se a uma assembleia do clero e talvez de leigos de uma diocese ou, mais raramente, de uma nação inteira. Mas o papa certamente está se referindo a uma realidade mais ampla ao criar o neologismo.
A assembleia presbiteral diocesana é sinodal por natureza, assim como o conselho paroquial ou o conselho de uma universidade ou hospital católico.
Em essência, a sinodalidade envolve a reunião de pares humanos para alcançar algum propósito religioso que não poderia ser alcançado da mesma forma na ausência de tal reunião. Continua sendo um empreendimento humano, mesmo sendo guiado pelo Espírito Santo.
Isso pode parecer quase autoexplicativo. Mas a experiência mostra que muitas vezes a realidade da interação humana é simplesmente tomada como evidente nos debates sobre o assunto.
Diga “sínodo”, e as pessoas geralmente saltarão imediatamente para as questões estruturais: quem será convidado? Que poder terá o órgão? Quem definirá a pauta? Quem terá permissão para falar – ou para votar?
Tais questões terão de ser resolvidas para que o evento seja um sucesso, é claro. Mas focar toda a atenção em tais questões organizacionais ou operacionais pode ser uma maneira de evitar as realidades – e as armadilhas – humanas envolvidas no fato de reunir um corpo de humanos com todos os tipos de visões de mundo teológicas e culturais (sem falar das personalidades, vieses se tiques de todo o tipo).
Portanto, deixarei para outros a discussão das normas estruturais e operacionais. O que está no centro da discussão aqui são as dinâmicas interpessoais humanas. As estruturas organizacionais podem mudar; a natureza humana, não.
O anúncio de uma estrutura sinodal como um concílio, conselho ou um sínodo real significa, primeiro, aumentar as expectativas. Proclame a criação de tal órgão, e inevitavelmente a psique coletiva da respectiva comunidade mudará.
Como isso afetará as nossas vidas? O que podemos antecipar? O que podemos esperar?
O tipo de expectativas geradas dependerá do contexto imediato. Isso inclui memórias ainda ativas de tentativas anteriores de responsabilidade compartilhada. Se elas foram bem-sucedidas, o novo esforço terá como base um saldo de confiança conquistada.
Por outro lado, os esforços anteriores podem ter se mostrado infrutíferos. Talvez o bispo, pastor ou diretor-executivo controlava a pauta de forma a garantir que as vozes do órgão não fossem ouvidas. Talvez o líder não tenha seguido as conclusões alcançadas.
Em qualquer um dos casos, a resposta predominante ao novo chamado será a desconfiança ou até mesmo o sarcasmo franco e direto. Se os líderes não conquistaram a confiança demonstrando uma escuta e acompanhamento genuínos no passado, o esforço presente pode estar fadado ao fracasso desde o início.
As expectativas são uma forma de poder humano.
Se forem claras e atendidas, a comunidade correspondente experimentará uma maior satisfação e autoestima.
Se não forem claras ou forem até conflitantes desde o início, o resultado será a fragmentação da comunidade ou até a polarização direta.
E se forem claramente declaradas, mas desatendidas, a esperança da comunidade em relação a uma responsabilidade amplamente compartilhada será severamente diminuída.
Um corpo sinodal normalmente será composto de pessoas de diferentes estratos na organização: vários titulares de cargos, ex-dirigentes, membros importantes da comunidade, pessoas com talentos comprovados em outras organizações. Tudo isso é muito bom.
Mas, uma vez em operação, cada membro deve, em teoria, receber a mesma escuta que todos os outros. Esse princípio é válido independentemente dos critérios pelos quais os membros foram originalmente escolhidos.
Essa expectativa razoável de igualdade sinodal é destruída quando o processo de tomada de decisão revela que alguns participantes são ouvidos, enquanto a voz de outros é silenciada.
A triste experiência pode revelar que um círculo informal assegurou os resultados antes que qualquer voz concorrente fosse ouvida. O mais alto órgão eclesial não está imune à manipulação.
Os órgãos sinodais são criados presumivelmente para lidar com questões de preocupação genuína para as suas respectivas comunidades: esclarecimento da visão e da missão; estabelecimento de metas; atribuição de prioridades; desenvolvimento e alocação de recursos humanos e financeiros.
A consideração livre e aberta de tais questões é a marca registrada de um sínodo bem-sucedido.
E isso, por sua vez, requer líderes que sejam internamente livres para permitir que o órgão como um todo encontre o seu caminho rumo a conclusões que possam desafiar os líderes da instituição.
Um dos nossos clientes era uma congregação religiosa que se orgulhava da sua ética democrática. A comunidade levava muito a sério o valor da contribuição de cada indivíduo para a tomada de decisões corporativas.
A minha interação com a pessoa de referência da comunidade com o nosso grupo levou a uma partilha interessante. Por muitos anos, os seus capítulos provinciais haviam sido compostos por membros mais velhos escolhidos ano após ano, durante décadas.
O meu contato me disse que, como um jovem padre, ele finalmente havia sido eleito para o capítulo. Em suas sessões, os membros recebiam a indicação dos assentos em que deveriam permanecer durante os trabalhos. Ele se viu sentado ao lado de um dos velhos “touros”, que se tornou um mentor ao lhe mostrar o funcionamento de tudo.
Certa manhã, o órgão deveria votar alguma questão (o assunto exato não tem significado para a história). O colega mais velho se inclinou para ele e disse: “Somos livres nessa aí”.
Ele perguntou o que isso significava e ouviu como resposta: “Podemos votar do que jeito que quisermos”.
Naturalmente, o jovem padre estava confuso, até que ficou sabendo que um dos antigos estava fazendo sinais com a mão lá da frente, mostrando aos membros como eles deveriam votar uma questão após a outra.
Ele era como um treinador de beisebol dizendo aos jogadores se deveriam roubar uma base ou ficar de pé. Tudo era manipulado do início ao fim.
“Sinodalidade” em ação...
Uma orientação muito diferente foi demonstrada por um bispo recém-empossado.
Seu antecessor tinha sido um administrador “de cima para baixo”, que controlava cada aspecto da vida da sua diocese nos mínimos detalhes. O clero da diocese se perguntava como o novo ordinário governaria. Qual era a sua visão?
Um dos primeiros atos do bispo foi convocar uma reunião dos padres de cinco dias. A sua “visão” envolvia começar o seu serviço perguntando aos seus padres qual era a deles! Fomos solicitados a planejar e facilitar as sessões.
Descobrimos que, depois de serem totalmente subservientes por tantos anos, os padres ficaram perplexos. Eles tiveram que aprender como usar o seu novo empoderamento. Levamos vários dias para que eles nomeassem a sua experiência.
No fim do encontro, eles votaram unanimemente pela criação de um conselho pastoral diocesano que empoderaria os leigos para compartilharem a responsabilidade pela sua Igreja. O bispo imediatamente pôs em ação os passos necessários para criar o conselho.
Depois de ajudá-lo a conceber um método que produzisse um órgão amplamente representativo do clero e dos leigos da diocese, fomos encarregados de fornecer o treinamento que uniria esse grupo de estranhos em um corpo coeso e confiável.
Depois de várias sessões, o nível de confiança havia aumentado consideravelmente, e um dos membros leigos perguntou: “Bispo, apreciamos a sua confiança na criação desse órgão, mas você vai manter o poder de veto sobre as nossas decisões?”.
A resposta, é claro, afetaria substancialmente o senso de empoderamento dos membros. O bispo estava pronto. Sem hesitar, ele respondeu: “É claro que, se Roma perguntasse, eu responderia que retenho esse poder. Mas acredito que sempre seremos capazes de encontrar respostas que todos possamos apoiar. Nunca mais quero ouvir a palavra ‘veto’ de novo.”
Ele percebeu o fato de que a clareza sobre as estruturas operacionais e as expectativas é realmente importante. Mas, em última análise, o que importa é o nível de humanidade e respeito que caracteriza a tomada de decisões do órgão.
Esse primeiro conselho atuou com sucesso por quatro anos sem uma única moção parlamentar, negociando diferentes pontos de vista por meio de um diálogo livre e baseado na confiança.
A liberdade interna que foi gerada revelou a si mesma quando chegou a hora de continuar o trabalho, quando os mandatos dos membros atuais estavam prestes a terminar. Quem vai vir depois de nós? Como o bom trabalho que construímos será mantido quando formos embora?
O método estadunidense normal para dar continuidade a tais órgãos é alguma forma de rodízio; alguns membros permanecem, enquanto são escolhidos os substitutos para aqueles que estão se retirando.
No meio de uma longa discussão sobre várias opções numéricas, um membro refletiu em voz alta: “Como seria se todos nos retirássemos e deixássemos o bispo escolher um novo órgão inteiro?”.
A resposta de todos foi imediata e retumbante: “Desperdiçar tudo o que foi conquistado? Pôr em risco todo esse trabalho? É um absurdo!”.
Mas o órgão cresceu em confiança, a ponto de resistir a um fechamento prematuro. Durante um período de semanas, as opções foram deixadas em banho-maria.
Em certo ponto, alguém disse: “Sabe, no início, nós éramos um grupo totalmente desconhecido, e o bispo depositou a sua confiança em nós e nos nossos facilitadores. Por que devemos negar essa oportunidade para outros? Será que somos todos tão especiais assim?”.
Depois de incorporar algumas salvaguardas menores ao processo de transferência, o órgão e o bispo deram o salto. Todos os membros se retiraram, e novos membros foram escolhidos. Organizamos um fim de semana compartilhado inicial para os grupos que estavam saindo e entrando.
No encerramento do fim de semana de partilha, um dos membros que estava saindo disse: “Eu me opus totalmente a uma mudança tão dramática. Mas, tendo conhecido essas pessoas maravilhosas e altamente comprometidas, estou convencido de que a nossa decisão foi uma inspiração do Espírito Santo”.
Se a sinodalidade é tão atraente, por que não a praticamos antes?
É muito comum que os leigos progressistas culpem os clérigos apegados ao poder por bloquearem o movimento rumo à sinodalidade genuína. E certamente há evidências suficientes para sustentar essa avaliação.
A experiência, no entanto, mostra que aceitar essa resposta sem qualificações é uma simplificação exagerada. Os leigos não estão tão prontos para abraçar todo o sentido de agência – e de responsabilidade – que será necessário para que um sínodo seja bem-sucedido. Um exemplo evidencia esse ponto.
O nosso grupo ajudou um bispo a formar e a treinar um novo conselho diocesano, usando os melhores métodos para descobrir membros que poderiam fazer o trabalho. Depois de algum tempo juntos, o bispo pediu que eles abordassem um assunto delicado: a oferta de bebidas alcoólicas nas festas paroquiais.
Depois de mais de um ano debatendo os prós e contras, e refinando diferentes opções, eles estavam prontos para tomar a decisão. Eu perguntei a cada membro, um de cada vez, como estava se inclinando sobre a questão.
Tudo estava indo bem, até que me deparei com um bom senhor que disse: “Só quero fazer aquilo que o bispo quer...”. A decepção dos seus companheiros era palpável: “É para isso que nos inscrevemos? Onde ele esteve todo esse tempo?”.
Para ser justo com o pobre sujeito, é preciso dizer que ele estava apenas agindo com base em uma mentalidade que havia sido reproduzida durante gerações pelos seus ancestrais.
Esse exemplo é reconhecidamente extremo, mas o padrão de subserviência parece com frequência suficiente para ser seriamente ponderado.
O que o Papa Francisco está realmente fazendo com o seu chamado à sinodalidade é uma rejeição radical de toda uma cultura na qual o clero sabe o que é melhor e o papel dos leigos é simplesmente “rezar, pagar e obedecer”.
Os papéis e os roteiros dessa cultura estão em vigor há muito, muito tempo. Eles vivem na psique coletiva, e a criação de estruturas, por si só, não superará o seu poder.
Os clérigos não são os únicos chamados a abrir mão de comportamentos que os beneficiam; os leigos são chamados a adotar um empoderamento que lhes é conferido pelo batismo.
A questão é esta: será que vamos permitir que as distinções criadas por diferentes status vocacionais silenciem a igualdade básica que vem do batismo?
Um órgão sinodal, qualquer que seja o nome, é uma reunião de peregrinos encarnados – todos iguais – unidos na mútua confiança e respeito, buscando a vontade do Senhor para a Sua Igreja neste momento, à luz dos sinais deste tempo.
Os métodos que um órgão sinodal emprega para organizar as suas operações têm valor apenas na medida em que aumentam a solidariedade dos seus participantes.
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Sinodalidade: um conceito bem-vindo, mas difícil de alcançar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU