"Olhando com admiração para o excelente trabalho realizado em favor das vítimas de abusos na França, só podemos auspiciar que uma homenagem semelhante à verdade possa vir à luz também na Itália", escreve Alessandra Pozzo, em artigo publicado por Settimana News, 27-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um relato ao vivo de como a Comissão Anti-Abuso na França (CIASE) operou. A contribuição da autora para o trabalho da Comissão.
Em seu artigo publicado no Le Monde de 19 de setembro de 2021, algumas semanas antes da apresentação pública do relatório CIASE de Jean-Marc Sauvé, Cécile Chambraud relata que “em setembro de 2018, quando a comissão alemã tornou pública uma avaliação da violência sexual na Igreja Católica na Alemanha, ele disse à sua esposa: ‘Agora os bispos franceses não poderão evitar a criação de sua própria comissão. E você verá que eles vão me chamar’”. De fato, um mês depois, Olivier Ribadeau-Dumas, secretário-geral da Conferência Episcopal francesa (CEF), o chamou [1].
A decisão de colocar Jean-Marc Sauvé, ex-vice-presidente do Conselho de Estado, à frente da “Comission Indépendante sur les Abus Sexuels dans l'Eglise” (CIASE) deriva de seu perfil e reputação de independência. Uma personalidade íntegra e de alto nível como a sua garantiu a execução de um projeto sério e excluiu qualquer manobra destinada a encobrir o escândalo que já se podia adivinhar em perspectiva.
O próprio Jean-Marc Sauvé formou a Comissão, escolhendo profissionais com uma ampla gama de competências nas áreas do direito (penal, cânone e proteção das crianças), psiquiatria e psicanálise, medicina e saúde, educação e trabalho social, história, sociologia e teologia.
Os membros foram escolhidos porque adquiriram legitimidade real em seus respectivos campos de competência. Um fato que reuniu as condições para um trabalho interdisciplinar aprofundado. A única regra é que Sauvé não quis que nenhum sacerdote ou religioso fizesse parte da CIASE, para não ter que lidar com problemas de pertencimento à estrutura posta em questão.
Os membros da CIASE eram pessoas com diferentes visões filosóficas e religiosas: incluindo crentes de diferentes denominações, bem como não crentes, agnósticos e ateus.
A Comissão era composta por 12 homens e 10 mulheres de diferentes gerações. A média de idade foi de 57 anos [2]. Diante dos trabalhos da Comissão, estava um groupe miroir, um grupo “espelho”, formado por vítimas de abusos sexuais, operadores sociais, associações de vítimas ou das famílias das vítimas, psicólogos e psiquiatras que assistiram as vítimas. Tratava-se, portanto, de pessoas que atuavam no "campo" dos abusos, com atribuições diferentes.
Foi disponibilizado online um apelo dirigido às testemunhas e às vítimas de abusos sexuais durante 17 meses, todos os dias, inclusive aos domingos, de 9 a 21.
2.700 vítimas e testemunhas de abusos sexuais cometidos por ministros da Igreja ou leigos e pessoas com missão eclesiástica responderam ao convite.
Graças ao estudo dos documentos presentes nos arquivos diocesanos de todas as dioceses da Igreja Católica francesa, foram descobertas outras 4.800 vítimas e testemunhas de abusos cometidos por padres diocesanos ou por membros de institutos religiosos.
O INSERM (Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale) já havia realizado um estudo sobre as vítimas de abuso sexual na sociedade francesa. O estudo mostra que 4% das vítimas vêm da Igreja Católica. Esse número, quando comparado com aquele referente aos abusos perpetrados na família (3,7%), no ambiente desportivo, na escola, orfanatos, outros cultos, etc., revela que a Igreja é a instituição em que foi cometido o maior número de abusos sexuais na sociedade francesa. A contagem revelada pelo INSERM corresponde aproximadamente àquele estabelecida pela CIASE.
Até que os confinamentos exigidos pelo coronavírus a impediram, a CIASE também se deslocou por toda a França para encontrar pessoalmente as vítimas nas principais cidades do Hexágono. Em seguida, as audiências foram organizadas online.
As audiências foram organizadas segundo duas modalidades. Aquelas que interessavam às vítimas foram conduzidos por profissionais da escuta de pessoas ainda traumatizadas, como psicólogos, vitimologistas e psiquiatras, bem como por membros da CIASE que passaram por uma formação adequada para esse mandato.
Também houve audiências em sessão plenária em que toda a comissão se reunia para ouvir especialistas de diferentes áreas que poderiam esclarecer alguns pontos-chave de sua investigação. Durante uma dessas audiências também foi consultada a autora deste artigo, como especialista em estratégias de dissimulação e manipulação, instrumentos comunicativos aos quais os abusadores, sem dúvida, recorreram.
A conselho e com o apoio de Marie-Jo Thiel e Véronique Margron, ambas engajadas há décadas no campo dos abusos cometidos por pedocriminais, propus a Jean-Marc Sauvé minha candidatura a uma apresentação motivando-a com argumentação breve, mas circunstanciada.
Com base em minhas competências, a secretária da Comissão formulou uma série de perguntas sobre os pontos da minha competência que poderiam ter sido do interesse da CIASE e pediu-me que organizasse a minha apresentação articulando as respostas a tais perguntas. Desta forma, não havia razão para se dispersar: o objetivo era a eficácia.
A audiência durou pouco mais de uma hora. Meu interlocutor foi Jean-Marc Sauvé, mas às vezes outros membros da CIASE me fizeram perguntas.
Minha apresentação focava o fato de que o agressor constrói uma realidade fictícia da mesma forma que escreveria um romance, só que depois aplica o seu conto à realidade e acredita firmemente que essa seja a realidade. O fato tem sido objeto de estudo de psiquiatras que descobriram a faculdade mitopoética do inconsciente: pessoalmente tentei explicar como esse fenômeno ocorre, isto é, criando "imaginários".
Por “imaginário” entendo um conjunto de argumentos, retóricas, práticas e produtos culturais, concebidos para expressar uma porção da realidade. Propus que uma espécie de "encenação" era planejada pelo abusador. De fato, criava um roteiro composto por uma narrativa, um espaço, personagens e palavras compatíveis com o imaginário fictício construído para atingir seus objetivos, às custas de suas presas. Elas são habilmente manipuladas para serem integradas, contra sua vontade, ao script. Os abusadores substituem essa nova organização da realidade àquela fornecida pelas regras ordinárias da vida social e àquela da moral cristã.
Propus que nos questionássemos como esse cenário não só não foi sancionado, mas possibilitado pelo funcionamento geral da instituição eclesial. Propus o exemplo do "script" criado por Marcial Maciel Degollado para abusar dos pequenos seminaristas da Legionários de Cristo.
Ele recebia a sua presa na enfermaria e transformava o estupro em um remédio para a própria doença. A enfermaria era o "teatro" escolhido para a sua encenação: um lugar necessário para a construção do imaginário para justificar as suas ações aos olhos da vítima, para que ela "consentisse" com o jogo perverso.
Se ele não tivesse concebido e adotado esse imaginário artificial para interpretar a realidade, decorado como uma "realidade fictícia", ou seja, um imaginário onde todos os detalhes de suas ações encontram uma justificativa, o abusador provavelmente teria percebido sua incoerência. Provavelmente, o imaginário perverso, construído como uma forma pessoal de modelar a realidade, serve ao abusador para autojustificar o crime cometido. Ele constrói aquilo que, no léxico da análise de texto, é chamado de "programa narrativo" e com ele substitui as relações normais entre os indivíduos.
No programa narrativo perverso, cada pessoa, cada ato, cada lugar, assume um papel bem específico, útil para a estratégia de controle da vítima. O abusador conduz o jogo (como o narrador onisciente nas técnicas de análise de texto), fazendo com que as vítimas assumam um papel que acabam por aceitar devido à estratégia manipulativa, ao estado de sideração (= não poder reagir, ndr) e à autoridade que o abusador exerce sobre a vítima.
Também destaquei o perigo representado pela transferência de propriedade entre a alteridade da esfera divina e a figura do sacerdote como mediador, que assim se sacraliza e se coloca acima dos outros crentes. Esse status de autoridade instaura-se em relação aos fiéis que não têm meios para interpretar criticamente, pessoalmente e autonomamente essa transferência simbólica.
A sacralização do status do sacerdote aos olhos dos fiéis também atua como um "homologador" de qualquer tipo de discurso do padre, incluindo o discurso perverso.
O tema da apresentação passou então à questão dos usos mais ou menos pertinentes da comunicação secreta na Igreja. A pergunta permitiu expressar-me sobre um dos hábitos muito difundidos em alguns âmbitos da Igreja francesa, aquele dos "testemunhos pessoais" em que o crente revela, perante um grande público, do qual alimenta as tendências a um voyeurismo espiritual, suas próprias experiências espirituais que deveriam competir exclusivamente ao seu foro interno. Nesse caso, o recurso à discrição evitaria promover a busca de emoções religiosas exageradas que distorcem o percurso espiritual ordinário do cristão.
Percebi uma escuta atenta por parte da Comissão: estabeleceu-se um diálogo que espero tenha sido produtivo para os trabalhos da CIASE, apesar da exiguidade representada pela minha competência em relação à complexidade desta tragédia.
É de 216.000 o número aproximado de vítimas de abusos sexuais cometidos por ministros da Igreja na França entre 1950 e 2020. Aumenta para 330.000 vítimas se contarmos também os abusos cometidos por leigos em missão eclesial. A investigação que revelou os abusos cometidos no passado também mostra que o processo ainda está em andamento.
Jean-Marc Sauvé comparou os resultados franceses com pesquisas semelhantes feitas em outros países do mundo e com os materiais ainda não analisados seriamente em países onde a Igreja ainda nega a natureza sistemática dos abusos sexuais cometidos em seu contexto.
Segundo uma primeira estimativa, Sauvé afirma que, apesar do fenômeno desastroso constatado na Igreja francesa, a França deveria ser colocada na parte de baixo da eventual "lista" dos países onde foram cometidos abusos sexuais na esfera eclesiástica.
O relatório comporta uma série de recomendações sobre as precauções a serem tomadas pelos responsáveis da Igreja francesa para evitar que a catástrofe se repita no futuro.
Entre as observações que nela aparecem, parece-me importante destacar aquela que enfatiza que a Igreja não conseguiu fazer uma distinção clara e adequada entre a ordem da misericórdia e do perdão dos pecados e aquela da sanção.
Na Igreja francesa, as novas normas contra os abusos enunciadas pelo magistério em 2000, anunciando a regra da “tolerância zero”, e que levaram ao processo de Mons. Pican - primeiro bispo julgado por um tribunal civil depois da Revolução Francesa por não ter denunciado um padre pedocriminoso - não foram aplicadas com eficácia. Esse fato provocou a reação das vítimas do Padre Preynat, que abusou de vários jovens escoteiros na diocese de Lyon na década de 1980.
Foi criada uma associação de vítimas sob o nome de La parole libérée que agiu concretamente a favor do reconhecimento dos crimes cometidos por Preynat e da omissão de denúncia dos mesmos pelo card. Barbarin, que foi pressionado a renunciar. No direito canônico é possível impedir a prescrição, fato que permitiu o afastamento do estado clerical de Preynat. Mas a hierarquia eclesiástica deve agora submeter-se às regras da prescrição civil e penal e denunciar o crime de abuso sexual.
Outro enorme problema levantado pelo relatório foi o da justiça retributiva. No que diz respeito a uma eventual indenização das vítimas, parte-se do princípio de que o prejuízo sofrido pelas vítimas é irreparável, pelo que se deve evitar uma reparação fixa. O que se quer evitar é o fato de dispor de um valor equivalente à gravidade do abuso. Em vez disso, toma-se em consideração o prejuízo ligado ao sofrimento psicofísico, ao comprometimento da saúde de pessoas vítimas de abuso que tiveram que recorrer - e pagar do próprio bolso – a uma psicoterapia ou outros tratamentos durante décadas.
Uma relação de causa e efeito entre abuso sexual e o celibato dos padres não é comprovada pelo trabalho da Comissão. Os predadores - conclui a CIASE - apresentam uma estrutura patológica e escolheram deliberadamente a carreira eclesiástica porque permitia a proximidade com as presas desejadas: as crianças. Infelizmente, a Igreja [3], em vez de denunciá-los, protegeu os predadores e, seguindo as recomendações do decreto Crimen sollicitationis (1922-1962, mas precedido por decretos semelhantes que datam de séculos anteriores em que a tutela dos direitos da vítima nunca é evocada), impôs o sigilo sobre os crimes sexuais para não criar escândalos e proteger a instituição, limitando-se a transferir os abusadores para outro local, onde estes puderam recomeçar a praticar sua perversão.
Ora, dados os resultados desta situação, a CIASE declarou que o problema do abuso sexual na Igreja depende de um defeito sistemático inerente especificamente às regras internas da Igreja.
Outra questão candente levantada pelo trabalho da CIASE é a do segredo profissional em relação ao segredo da confissão. A Comissão espera que, no futuro, qualquer um que venha a saber, na confissão ou fora dela, que crimes sexuais são perpetrados contra um menor ou uma pessoa vulnerável, os denuncie às autoridades civis, sob pena de incorrer na lei de omissão de socorro de pessoa em perigo.
Esse tema suscitou discussões intermináveis nas redes sociais e em diversos artigos publicados nos jornais nas últimas semanas [4], bem como uma convocação do Ministro dos Cultos dirigida ao presidente da Conferência Episcopal francesa, Mons. Eric de Moulins-Beaufort, em resposta à sua afirmação pública sobre a inviolabilidade irrevogável do segredo da confissão, apesar das recomendações da CIASE [5].
Entre as outras lamentáveis afirmações de Eric de Moulins-Beaufort [6], também vale a pena mencionar um apelo lançado no dia seguinte à entrega do relatório da CIASE no qual pedia aos fiéis que contribuíssem com suas ofertas para a indenização das vítimas. Afirmação que causou reações muito violentas não só dos leigos, mas também dos fiéis, que não veem exatamente por que deveriam pagar do seu próprio bolso pela má gestão dos abusos sexuais cometidos pela Igreja francesa.
Numerosas reações a esse estado das coisas a que teólogos, sociólogos, professores de ética e especialistas no campo dos abusos argumentam tentando raciocinar sobre a indizível dor que agora se transmite a todos os espectadores dessa desolação podem ser lidas todos os dias na França em revistas e jornais [7].
Quem deseja ter um excelente relato da situação atual e do que se espera num futuro próximo na França após a tomada de conhecimento da catástrofe, deveria dar uma olhada no discurso de Jean-Marc Sauvé na Assembleia Nacional, a Câmara dos deputados franceses, em que durante três horas todos os problemas inerentes ao relatório foram examinados e comentados pelo Presidente Sauvé e pelos deputados presentes [8].
Em novembro, se reúne a Conferência Episcopal francesa (CEF) e a Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (CORREF), que encomendaram a investigação da CIASE. Eles determinarão como aplicar concretamente as recomendações sugeridas pelo relatório da Comissão de Jean-Marc Sauvé.
Olhando com admiração para o excelente trabalho realizado em favor das vítimas de abusos na França, só podemos auspiciar que uma homenagem semelhante à verdade possa vir à luz também na Itália.
[1] Disponível aqui.
[2] Disponível aqui.
[3] A solicitação, sollicitatio em latim, corresponde ao ato criminoso cometido por um clérigo que abusou sexualmente de uma pessoa que se dirigiu a ele para receber o sacramento de confissão ou em contexto de acompanhamento espiritual.
[4] Disponível aqui.
[5] Disponível aqui.
[6] Disponível aqui, aqui, aqui e aqui.
[7] Disponível aqui, aqui, aqui e aqui.
[8] Disponível aqui.