O escândalo dos padres abusadores devastou milhares de vidas e expôs uma crise de fé. Em uma conferência internacional sobre essa questão em Varsóvia, na Polônia, no mês passado, Tomáš Halík, um dos principais intelectuais católicos da Europa, defendeu que somente uma reforma profunda pode salvar a Igreja institucional.
Halík é professor de Sociologia da Religião na Charles University, em Praga, cidade onde nasceu em 1948. É presidente da Academia Cristã Tcheca e pároco da Igreja Acadêmica de São Salvador. É doutor honoris causa em Teologia pelas universidades de Erfurt e Oxford. Seus livros já foram traduzidos para 19 idiomas e receberam diversos prêmios literários.
Sob o regime comunista, ele foi ordenado padre secretamente em Erfurt e atuou na Igreja clandestina enquanto trabalhava como psicoterapeuta. Foi um dos colaboradores mais próximos do cardeal Frantisek Tomasek. Após a queda do regime comunista em 1989, ele foi secretário-geral da Conferência Episcopal Tcheca e conselheiro de Vaclav Havel. O Papa João Paulo II o nomeou conselheiro do Pontifício Conselho para o Diálogo com os Não Crentes em 1990; Bento XVI o nomeou prelado pontifício honorário em 2008.
Recebeu inúmeros prêmios internacionais pela sua contribuição à Igreja em tempos de perseguição e pelo diálogo entre religiões e culturas. Também foi contemplado com o Prêmio Templeton em 2014.
O artigo foi publicado por The Tablet, 29-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com espírito de humildade e com o coração contrito – in spiritu humilitatis et in animo contrito – quero tocar em uma das feridas mais dolorosas da Igreja. Até mesmo o corpo místico do Cristo Ressuscitado carrega feridas, e se nós ignorássemos essas feridas, se não quiséssemos tocá-las, não teríamos o direito de dizer com o apóstolo Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”.
De acordo com uma antiga lenda, o próprio diabo apareceu a São Martinho na forma de Cristo. Mas Martinho lhe perguntou: “Onde estão as suas feridas?”. Um Cristo sem feridas, uma Igreja sem feridas, uma fé sem feridas é apenas uma ilusão diabólica. Com coragem, no poder de cura e libertação da verdade, queremos tocar nas feridas infligidas pelo clero católico e autoridades da Igreja aos indefesos, especialmente às crianças e adolescentes, e, portanto, à credibilidade da Igreja no mundo de hoje.
Para entender essa crise e aceitá-la como um kairós, como um desafio e uma oportunidade para amadurecer a nossa Igreja e a nossa fé, precisamos ver e abordar o fenômeno do abuso clerical em um contexto mais amplo. Os sobreviventes e as vítimas de abuso devem estar no centro da nossa preocupação. Devemos lhes dar todo o apoio legal, psicológico e espiritual de que precisam. O culpado deve ser punido e ajudado no caminho do arrependimento e da cura. Devem ser tomadas medidas práticas para minimizar o risco de crianças e adultos vulneráveis serem abusados no futuro. Mas todos esses passos importantes são apenas uma pequena parte daquilo que somos obrigados a fazer.
Tanto Bento XVI quanto o Papa Francisco mostraram o caminho certo: precisamos perguntar o que aconteceu com a nossa Igreja, o que aconteceu com a nossa fé, que possibilitou que algo assim ocorresse. Em muitos lugares do mundo, a Igreja tornou-se um “aparato político” em vez de uma comunidade de fé, como Bento XVI observou. A Igreja deve se livrar da doença de clericalismo, porque os casos de abuso são, acima de tudo, casos de abuso de poder e autoridade na Igreja, como repete o Papa Francisco.
Não é apenas uma questão de indivíduos; é uma doença perigosa do sistema inteiro. Minimizar o problema do abuso, alegar que o problema é ainda maior fora da Igreja ou defender que o problema diz respeito apenas a algumas Igrejas locais mostra cegueira espiritual, hipocrisia e orgulho.
Esta conferência internacional sobre a crise dos abusos sexuais está sendo realizada em Varsóvia, porque é no mundo pós-comunista que frequentemente vemos essas atitudes. Devemos rejeitar radicalmente a tentação diabólica de afirmar que os problemas de abuso sexual, psicológico e espiritual são doenças do “Ocidente corrupto”. Ignorar a trave no próprio olho impossibilita ver fenômenos sérios de forma realista e enfrentá-los efetivamente.
Há uma série de razões para a tendência nos países pós-comunistas de negar o problema do abuso clerical. É verdade que, em muitos países sob o regime comunista, os padres tiveram menos oportunidades de abusar de menores, porque, ao contrário do mundo livre, quase não havia instituições religiosas dedicadas ao cuidado de crianças e jovens. E os regimes totalitários, tanto nazista quanto comunista, muitas vezes tentaram desacreditar a Igreja e os padres em particular, acusando-os falsamente de abuso sexual (talvez seja por isso que o Papa João Paulo II, por muito tempo, não acreditou em muitas das acusações contra os padres).
Hoje, com acesso aos arquivos da polícia secreta, podemos ver que os regimes comunistas estavam bem cientes de casos reais de abuso e de outros aspectos sombrios da vida dos padres, como alcoolismo ou corrupção; eles frequentemente chantageavam esses padres, e alguns se tornaram informantes.
Quando havia perseguição estatal à Igreja, a coesão interna e a solidariedade eram fomentadas. Mas o outro lado era uma relutância em ver as sombras escuras dentro das suas próprias fileiras. Após a queda do comunismo, os católicos conservadores do Ocidente vieram aos nossos países, querendo retratar a Igreja como a Bela Adormecida que dormia alegremente durante o Concílio Vaticano II; como um príncipe de um conto de fadas, eles a despertariam com um beijo em sua beleza pré-moderna. A Bela Adormecida, é claro, não deve ter feições feias – portanto, nenhum escândalo de abuso.
Essa imagem falsa é endossada e internalizada com gratidão por alguns católicos na Europa pós-comunista: nós somos a Igreja dos Mártires, purificada pela nossa perseguição, que agora ensinará lições morais ao “Ocidente corrupto”, incluindo os católicos das nossas Igrejas irmãs na Europa ocidental e na América do Norte. Ex Oriente lux, ex Occidente luxus (“Do Oriente vem a luz, do Ocidente vem o luxo”)!
Essa ideologia precisa da imagem do “Ocidente corrupto” como um mundo de consumismo, materialismo e liberalismo, em contraste com o “Santo Oriente”, a heroica Igreja perseguida. A realidade de uma Igreja que, por si mesma, causa sofrimento não se ajusta à imagem de uma sofredora Igreja de mártires. Mas a verdade raramente é preta e branca.
Essa sedutora autoilusão de uma Igreja do Oriente mais pura tomou conta da Europa pós-comunista por muitas razões. Após a queda do comunismo, alguns cristãos não podiam viver sem um inimigo. O “Ocidente liberal e corrupto” tornou-se o substituto ideal para o velho inimigo. Os católicos, antes perseguidos pelos comunistas, agora começaram a usar a retórica antiocidental deixada em seu subconsciente pela lavagem cerebral da propaganda comunista.
O messianismo de algumas nações e Igrejas locais, legado do romantismo (não apenas na Polônia e na Rússia), também desempenhou um papel. O conceito de serem “os escolhidos” (as imagens do Messias sofredor e de um povo sofredor) ajudou as Igrejas a sobreviver em tempos de perseguição; mas, após a queda do comunismo, quando as tristes consequências da perseguição e do isolamento se tornaram aparentes, essas autoimagens se tornaram uma compensação para o complexo de inferioridade sentido em relação ao Ocidente.
A suposição de que a Igreja havia dormido durante o Concílio Vaticano II e as suas reformas durante o comunismo era apenas parcialmente verdadeira. Lembro-me com gratidão dos meus mestres na fé, que passaram longos anos em prisões e campos de concentração nazistas e depois comunistas ou em trabalhos forçados em minas de urânio. Lá eles experimentaram um “ecumenismo concreto” – proximidade e fraternidade não apenas com cristãos de outras Igrejas, mas também com humanistas seculares e até mesmo com marxistas não conformistas.
Alguns deles, no espírito dos profetas, abraçaram os anos de perseguição como uma lição divina, uma purificação da Igreja em relação ao seu triunfalismo inicial. Na prisão, eles sonharam com uma futura forma da Igreja – uma Igreja ecumênica, aberta, pobre e servidora. Quando foram libertados da prisão no fim dos anos 1960, eles abraçaram as reformas do Concílio com entusiasmo e as entendendo como um desafio dado por Deus. Eles introduziram a mim e a muitos outros no espírito do Concílio Vaticano II. Eu me sinto pessoalmente obrigado a ser fiel ao testemunho deles.
A grande maioria dos padres e bispos, no entanto, não teve acesso à literatura teológica contemporânea e não teve essas experiências. Não conhecendo o contexto intelectual, eles não podiam entender completamente a mensagem e o significado do Concílio. As reformas frequentemente permaneceram superficiais e puramente formais – o altar foi virado, a língua nacional foi introduzida na liturgia. Mas a mentalidade não mudou.
Os esforços do Concílio para passar “do catolicismo à catolicidade”, para acabar com a fútil guerra cultural com o mundo moderno e, acima de tudo, para abandonar uma compreensão clerical da Igreja permaneceram incompreendidos e não realizados em grande parte da Igreja sob o domínio comunista. Convinha aos regimes comunistas preservar o modelo clerical da Igreja: em muitos países, os padres eram funcionários do Estado comunista e podiam ser manipulados pelo Estado mais facilmente do que os leigos.
A situação em cada país era e é diferente. A secularização dura durante o comunismo e a “secularização suave” na era pós-comunista ocorreram e estão ocorrendo com intensidade variável. Em alguns países, paradoxalmente, a perseguição comunista trouxe à tona um renascimento da religiosidade, embora de curta duração.
Na Boêmia, a parte ocidental da República Tcheca de onde eu venho, a secularização cultural vinha ocorrendo desde o fim do século XIX como resultado da industrialização, da urbanização e de um bom sistema educacional; durante o comunismo, os stalinistas escolheram a Boêmia – provavelmente por causa da sua dramática história religiosa e tradição de anticlericalismo – como um terreno adequado para uma tentativa de criar uma sociedade totalmente ateia.
Mas, depois de um breve renascimento religioso antes e depois da queda do comunismo, quando a Igreja gozava de uma grande simpatia na sociedade, a Igreja se mostrou incapaz de responder adequadamente aos desafios da nova era. Outra onda de “secularização suave” chegou.
Na vizinha Polônia, a situação era bem diferente. Até recentemente, a religiosidade popular – a Volkskirche – tinha sua biosfera sociocultural em uma sociedade predominantemente agrária. O catolicismo era entendido – ao contrário da Boêmia – como parte da identidade nacional. Durante a primeira visita de João Paulo II à sua terra natal em 1979, após sua eleição como papa, ficou claro que a Igreja tinha uma influência moral, psicológica e política muito maior na Polônia do que o governo comunista.
O momento crucial ocorreu apenas no momento da morte de João Paulo II – a Igreja agora enfrentava a tarefa de redescobrir Cristo e o Evangelho por trás do ícone do santo papa polonês. A infeliz aliança de alguns bispos com o atual governo populista e nacionalista prejudicou a Igreja na Polônia muito mais do que meio século de perseguição comunista.
A atual onda de revelações de uma pandemia de abusos na história distante e recente causou um terremoto na Igreja polonesa. O abuso sexual era apenas um aspecto do problema. A menos que a Igreja polonesa consiga agora entender a crise atual como um kairós e um chamado a reformas profundas, a menos que a Igreja revele à sociedade polonesa – e especialmente à geração mais jovem – uma faceta diferente do cristianismo, o processo de secularização na Polônia será ainda mais radical do que na Espanha e na Irlanda.
A crise dos abusos sexuais não é marginal. Hoje, o escândalo do abuso está desempenhando um papel similar ao desempenhado pelos escândalos das indulgências que aceleraram a Reforma na Alta Idade Média. O que em princípio parecia um fenômeno marginal, revela hoje – como então – um problema muito mais profundo. O sistema inteiro está doente: as relações entre a Igreja e o poder político e as relações entre o clero e os leigos, entre muitas outras.
A situação da Igreja Católica hoje se assemelha fortemente à situação pouco antes da Reforma. A Igreja precisa de uma reforma profunda. Se a limitarmos a mudanças institucionais, a reforma permanecerá superficial e poderá levar ao cisma. Precisamos nos inspirar na Reforma católica do século XVI – a sua essência foi um aprofundamento da espiritualidade em toda a Igreja (pensemos no papel desempenhado por místicos como Teresa d’Ávila, João da Cruz e Inácio de Loyola), mas esse período também viu o surgimento de um estilo mais pastoral de ministério episcopal e presbiteral (pensemos em Carlos Borromeu e muitos outros). É necessário não apenas mudar as estruturas, mas também mudar a mentalidade, mudar a cultura das relações dentro da Igreja.
Muitas reformas na Igreja no passado ocorreram apenas após trágicos atrasos. No século XIX, a Igreja perdeu a classe trabalhadora. No início do século XX, cometeu uma autocastração intelectual em uma luta contra o chamado “Modernismo”, que levou à perda de grande parte da intelectualidade e de muitas personalidades proféticas. Nos anos 1960, ela perdeu uma grande parte da geração mais jovem. E agora – na era de uma nova autocompreensão da dignidade das mulheres – ela está perdendo as mulheres. Os esforços do Concílio Vaticano II para chegar a um acordo com o mundo moderno também chegaram tarde demais. Embora a modernidade tenha atingido o seu pico nos anos 1960, ela acabou logo depois.
O Concílio não preparou as Igrejas para a era pós-moderna. Hoje, todo o contexto sociocultural mudou. As Igrejas perderam o seu monopólio sobre a religião. A secularização não destruiu a religião, mas a transformou. O principal concorrente da Igreja hoje não é o humanismo secular, mas as novas formas de religião e espiritualidade que se emanciparam da Igreja.
A Igreja está tendo dificuldade para encontrar o seu lugar em um mundo radicalmente pluralista. E as Igrejas marcadas pelo seu passado comunista estão tendo dificuldade para se orientar nesse mundo.
A Igreja reagiu à revolução sexual dos anos 1960 com um pânico moral. A ênfase na moral sexual tornou-se o tema dominante da pregação, e uma lacuna se abriu entre a doutrina da Igreja e a vida de muitos católicos, incluindo padres. Nenhum tema era tão frequentemente discutido pela Igreja quanto o sexo. O Sexto Mandamento muitas vezes vinha em primeiro lugar nos sermões.
O Papa Francisco teve a coragem de chamar isso pelo nome: “obsessão neurótica”. E à medida que o escândalo dos abusos se desenrolava, a reação dentro e fora da Igreja a essas leituras morais foram, naturalmente, um furioso e indignado: “Enxerguem-se!”. A Igreja chegou tarde – talvez tarde demais – para começar a enfrentar essa hipocrisia e esse escândalo dentro das suas fileiras, e muitas vezes apenas em resposta à exposição por parte da mídia secular do abuso e do seu encobrimento.
O que me preocupa é que muitos seminários (especialmente em países pós-comunistas) não oferecem aos candidatos ao sacerdócio uma preparação espiritual e psicológica suficiente para uma vida de celibato. Esta deve incluir uma discussão honesta sobre a homossexualidade, incluindo a orientação homossexual de muitos padres.
Alguns padres lidam com a sua sexualidade por meio de um mecanismo de projeção: as vozes mais beligerantes contra a homossexualidade no sacerdócio frequentemente são de padres de orientação homossexual. A Igreja pagou o preço por ter resistido por muito tempo às intuições da cosmologia, da teoria da evolução e da crítica literária e histórica na exegese bíblica; ela não deveria repetir esses erros, ignorando as intuições da neurofisiologia em sua abordagem à homossexualidade e da antropologia cultural em sua compreensão do desenvolvimento da vida familiar.
“Este tempo não é apenas uma época de mudança, mas uma mudança de época”, disse o Papa Francisco. Os papéis da religião e das Igrejas nas sociedades e culturas estão mudando radicalmente. A secularização não causou o fim, mas sim a transformação da religião. O processo culminante da globalização está encontrando resistência: populismo, nacionalismo e fundamentalismo estão em ascensão.
O nosso mundo está cada vez mais interconectado e, ao mesmo tempo, dividido. A comunidade cristã global também está cada vez mais dividida – mas as maiores divisões hoje não são entre as Igrejas, mas dentro delas. Eu vi as igrejas fechadas e vazias durante a pandemia do coronavírus como um sinal de alerta profético: em breve, esse pode ser o estado da Igreja, se ela não passar por uma reforma profunda.
A crise dos abusos é apenas um aspecto da crise do clero como instituição, da crise da Igreja e da crise da fé. Essa crise só pode ser superada por uma nova compreensão do papel da Igreja na sociedade contemporânea – a Igreja como “povo peregrino de Deus” (communio viatorum), a Igreja como “escola de sabedoria cristã”, a Igreja como “hospital de campanha” e a Igreja como lugar de encontro, partilha e reconciliação.
Devemos enfrentar essa crise sem medo ou pânico, com confiança no Senhor da história. A solução pressupõe uma análise espiritual calma e abrangente, um discernimento espiritual.
De acordo com uma antiga lenda tcheca, o construtor de uma igreja gótica em Praga ateou fogo à estrutura de madeira quando a construção foi concluída. Quando o fogo foi acendido, e os andaimes caíram no chão em chamas com um rugido, o construtor sucumbiu ao pânico e cometeu suicídio, acreditando que o seu edifício havia desabado.
Penso que muitos cristãos que estão em pânico neste tempo de mudança estão cometendo um erro semelhante. O que está desabando pode ser apenas um andaime de madeira; quando ele queimar, o edifício da igreja certamente ficará chamuscado pelo fogo, mas o essencial, que há muito tempo estava encoberto, será revelado.
Em meus 43 anos de ministério presbiteral, ouvi dezenas de milhares de confissões. Durante muitos anos, além do Sacramento da Penitência, eu tenho oferecido “aconselhamento espiritual”, que é mais longo e profundo do que a forma ordinária do sacramento permite. Essas conversas também são solicitadas muitas vezes por “buscadores espirituais” não batizados.
Eu expandi a minha equipe de colaboradores para esse ministério, para incluir leigos formados em Teologia e Psicoterapia. Acredito firmemente que o “acompanhamento espiritual” será a tarefa pastoral mais importante da Igreja nos tempos vindouros.
É também o ministério no qual eu mesmo mais aprendi, no qual houve uma certa transformação da minha teologia e da minha espiritualidade, da minha compreensão da fé e da Igreja. Quando meu bispo, o arcebispo de Praga, se recusou resolutamente a falar com as vítimas de abuso sexual clerical (incluindo membros do mosteiro do qual ele era superior na época) e as encaminhou à polícia, eu tive longas conversas noturnas com muitos deles.
Depois disso, muitas vezes eu mesmo não conseguia dormir até de manhã. Eu não ficava sabendo muito mais do que já havia sido denunciado. Mas olhava para esses homens e mulheres nos olhos e segurava as suas mãos quando eles choravam. Era muito diferente de ler as suas declarações nos documentos dos tribunais.
Eu trabalhei durante anos como psicoterapeuta e sei da proximidade e da interação da dor mental e espiritual, mas isso era algo diferente da mera psicoterapia; eu sentia ali a presença de Cristo com todo o meu coração, de ambos os lados: nos “pequeninos, nos doentes, nos presos e nos perseguidos” e também no ministério da escuta, da consolação e da reconciliação que eu podia oferecer a eles.
Costumo voltar a um breve relato, que é uma espécie de minievangelho no meio do Evangelho de Mateus, a história de uma mulher que sofria de uma hemorragia durante 12 anos, buscou muitos médicos, gastou toda sua fortuna em tratamentos, mas nada ajudava.
De acordo com as autoridades religiosas da época, uma mulher sangrando estava ritualmente impura, não tinha permissão para participar de um rito religioso, e ninguém tinha permissão para tocá-la. O desejo compulsivo da mulher pela intimidade humana, pelo toque humano, levou-a ao ato de quebrar o isolamento obrigatório: ela tocou Jesus. Ela o tocou anonimamente, por trás, tentando permanecer escondida na multidão.
Mas Jesus não queria que ela fosse curada dessa forma. Ele procurou o rosto dela. A mulher se apresentou e, após anos de esconderijo e isolamento, ela pôs em prática aquilo que o seu corpo vinha dizendo – na linguagem do sangue e da dor – prostrando-se diante dele e “contando toda a verdade” diante de todos. E, naquele momento de verdade, ela foi libertada da sua doença.
Eu sonho com uma Igreja que crie um espaço seguro – um espaço de verdade – que cure e liberte. A minha sincera esperança é que esta conferência contribua para a realização desse sonho.