"Para Halík, a Igreja ajudou na Revolução de Veludo porque proporcionou o ímpeto espiritual e instituições educativas para uma conversão cultural. A revolução não criou uma utopia, e hoje a República Tcheca e a Eslováquia sofrem dos mesmos problemas que afligem o resto da Europa. Mas ela pôs em marcha uma nova e esperançosa visão do mundo e permitiu uma apreciação renovada pela verdade e justiça", escreve Santiago Ramos, em resenha do livro From the Underground Church to Freedom (Da Igreja clandestina à liberdade, tradução livre), de Tomáš Halík (Editora da Universidade de Notre Dame, EUA, 2019), publicada por La Croix International, 06-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A Revolução de Veludo, revolta de 1989 que levou ao fim do regime comunista na Tchecoslováquia, foi um dos grandes eventos da era pós-guerra. A geração tcheca e eslovaca que fomentou esta revolução viveu um meio século agitado que chegou a assumir dimensões dramáticas.
Podemos dizer que o primeiro ato desse drama começou com a instalação de um regime stalinista em Praga, em 1948. Ele terminaria em meados da década de 1960, durante o breve porém rico momento de renovação cultural e democrática, conhecido como a Primavera de Praga.
O segundo ato poderia começar em 1968, com os tanques soviéticos pondo um fim violento à Primavera de Praga, e mostra a era sombria conhecida como a era da “normalização”, quando um regime soviético de marionetes tentou desfazer o progresso da década anterior.
Um ato final feliz poderia ser traçado entre 1976 e 1989. O ano de 1976 viu a publicação da Carta 77, carta aberta que denunciava os abusos dos direitos humanos cometidos pelo regime comunista. (Muitos dos signatários acabaram exilados, presos ou perderam o emprego.)
As coisas pareciam realmente difíceis, mas, numa reversão impressionante, as esperanças de um povo marcado pelo stalinismo e pela “normalização” finalmente prevaleceram em novembro de 1989, quando uma série de protestos pacíficos levou à queda do regime comunista.
Revolução de Veludo, Praga, 1989. Foto: ŠJů | Wikicommons
Parafraseando um dos principais revolucionários, o escritor que viria a ser presidente Václav Havel: a verdade e o amor devem prevalecer sobre as mentiras e o ódio.
A Revolução de Veludo era o produto da arte e da cultura, não apenas da política. Diz a lenda que seu nome derivou de “The Velvet Underground & Nico”, álbum de rock nova-iorquino, lançado em 1967 e distribuído secretamente por trás da Cortina de Ferro.
A prisão banda The Plastic People of the Universe, grupo de rock local, foi um dos incidentes relatados na Carta 77. Václav Havel já havia se tornado conhecido como dramaturgo e ensaísta antes de entrar na política eleitoral.
O renomado filósofo Jan Patočka era o porta-voz dos signatários da Carta 77 e uma espécie de consciência mais velha e sábia do grupo.
"From the Underground Church to Freedom", de Tomáš Halík (Ed. Universidade de Notre Dame
EUA, 2019)
É como um testemunho dessa história que a autobiografia recentemente traduzida de Tomáš Halík, intitulada From the Underground Church to Freedom, é de interesse dos leitores.
Padre tcheco, escritor e ganhador do Prêmio Templeton de 2014, Halík serviu de porta-voz da Igreja durante a Revolução de Veludo.
Halík se converteu ao catolicismo e discerniu sua vocação para o sacerdócio durante a Primavera de Praga. Em 1989, ele surgiria como um dos líderes intelectuais da Checoslováquia pós-comunista e (depois da divisão) da República Tcheca.
Grande parte do livro parece ser um cruzamento entre uma história de conversão e um suspense: um conto de santos e livros, vigilância estatal e reflexões espirituais, diários clandestinos e liturgias clandestinas, palavras secretas trocadas entre dissidentes em paradas de ônibus ou sussurradas nas pontes do Velho Mundo à noite.
O suspense não se desfaz com a última e penosa terça parte do livro, que traz um relato demorado dos sucessos, dos prêmios, das viagens e dos compromissos acadêmicos pós-1989 assumidos por Halík, entre eles a fascinante história de uma viagem à Antártica.
Dado o seu passado, a conversão de Halík foi inesperada. Muitos tchecos mantêm um relacionamento ambivalente com a Igreja Católica, em parte devido ao desejo nacionalista de se desfazerem de todos os laços com o Império Austro-Húngaro.
Além disso, a história de Jan Hus, reformador tcheco queimado na fogueira pelas autoridades católicas em 1415, nunca saio da memória nacional. (Sua história impressionou o jovem Halík.)
Embora batizaram-no quando criança, os pais de Halík não frequentavam os bancos da igreja. Nutriram, porém, o crescimento intelectual do filho.
O pai de Halík era um respeitado tradutor de obras literárias, com inclinações tácitas contra o regime. Era bibliotecário (“a biblioteca era um repositório para pessoas politicamente não confiáveis”, escreve ele).
Mais tarde, Halík agradeceria ao pai “por me ajudar a descobrir a fé, apesar de ele próprio ser ateu e por me dar uma ótima formação religiosa sendo um bom pai”.
Halík descobriu a vocação para o sacerdócio na casa dos vinte anos, durante o “degelo” pós-stalinista da década de 1950. Vivia-se uma época em que “o regime não era mais ‘o punho de ferro do proletariado’, mas sim um conjunto de burocratas ridículos e inflados, confrontados por intelectuais barbudos e de cabelos longos, vestidos de suéteres pretos com sentimentos de alienação em suas cabeças”.
Esse período era bastante acolhedor para o aprendizado. Muitos padres foram soltos da prisão e se tornaram mestres de Halík.
Halík lia muito, incluindo autores católicos. A sua formação, combinada com um profundo senso de interioridade – “o sentimento expressivo (...) de que no centro da [minha] solidão havia Alguém comigo” – e um encontro com um padre chamado Jiří Reinsberg, contribuíram para sua conversão e o eventual sacerdócio.
Padre Tomáš Halík. Foto: Petr Vodika | Wikicommons
A pregação de Reinsberg comoveu Halík, que “aos poucos, de domingo em domingo (...)me movi da distância segura perto da porta da igreja, de pilar em pilar, para cada vez mais perto do púlpito e do altar”.
Sob o regime comunista, o sacerdócio assumiu uma forma especial: os padres da Igreja Católica clandestina na Tchecoslováquia trabalhavam em total anonimato.
De maneira parecida com o movimento dos padres operários franceses da década de 1940, estes padres clandestinos adotaram outras profissões e viram que sua vocação exigia que vivessem imersos no mundo secular.
Halík trabalhou como psicoterapeuta, sem nunca dizer a ninguém de seu status de ordenado, a menos que fosse absolutamente necessário. Sua mãe e o cardeal de Praga não sabiam que ele era padre. (Halík foi ordenado por um bispo alemão.)
A vida de Halík mudou definitivamente em 1968 enquanto estudava em Oxford, ao se sentir impotente enquanto tanques soviéticos chegavam a Praga. (Como todos da sua geração, Halík se viu profundamente afetado pelo protesto de Jan Palach, que fez uso da autoimolação no final daquele ano.)
Em breve, as viagens de estudo a países ocidentais não mais seriam possíveis.
Apesar da experiência em Oxford ter sido uma das mais felizes que teve na vida, Halík decidiu que precisava voltar a Praga e se juntar à resistência.
Ele pegou um trem, pensando que provavelmente nunca mais receberia um visto de saída. Halík não saiu da Tchecoslováquia, exceto em algumas poucas viagens sancionadas pelo Estado, até 1989.
Entre 1968 e 1989, Halík envolveu-se em atividades clandestinas de toda espécie. Como padre, rezou missas, ensinou a seminaristas e trabalhou de diretor espiritual.
Com companheiros intelectuais dissidentes como Havel e Patočka, participou de seminários universitários clandestinos, escreveu artigos publicados no periódico secreto Samizdat e ajudou a distribuir a Carta 77 (embora não a tenha assinado, porque seu bispo acreditava que subscrevê-la colocaria em risco o seu status secreto de padre).
A vida intelectual fazia parte integrante do trabalho de resistência.
Mestres como Patočka formaram Halík no pensamento moderno de Arendt, Heidegger, Rahner e outros; professores ocidentais convidados, com variações ideológicas desde Jacques Derrida a Roger Scruton, conduziram seminários secretos.
Mas foi a escola filosófica conhecida como “fenomenologia” que acabou sendo particularmente importante. Halík escreve sobre ter ficado “chapado de fenomenologia” após uma das palestras de Patočka.
Entre outras coisas, a fenomenologia buscava desfazer a noção iluminista de que as ciências empíricas podem explicar toda a realidade. Em vez disso, a fenomenologia tenta descobrir a primazia da experiência em primeira pessoa, que precede toda e qualquer coleta de dados científicos; empresta dignidade às realidades diárias – como as de beleza e valor – que as ciências empíricas não podem mensurar.
Jean-Paul Sartre escreveu certa vez que a fenomenologia “reinstaurou o horror e o charme nas coisas”.
A fenomenologia também esteve fundamentalmente em desacordo com o marxismo imposto pelo Estado, ensinado nas universidades do bloco oriental. Ela atribui um papel maior à consciência individual do que aos processos materiais na determinação do curso da história.
Na primeira metade do século XX, a fenomenologia foi adotada por teólogos católicos como o jovem Karol Wojtyła.
Halík enfatiza os elementos católicos da Revolução de Veludo, evento que esteve “marcado por humor, riso e canto”, em vez de violência e ódio.
O religioso prefere chamar de “a Revolução de Santa Inês”. Dizem que a prisão de Havel, em janeiro de 1989, foi o que provocou a revolução.
Mas Halík observa que, segundo a lenda tcheca, com a canonização de Agnes da Boêmia – princesa que se afastou das riquezas para viver de caridade e na pobreza –, “tudo ficaria bem nas terras tchecas”.
Agnes foi canonizada em 12 de novembro, a Revolução de Veludo começou em 16 de novembro e o regime se foi em 29 de novembro.
Halík sustenta que a missa televisionada do Cardeal Tomášek celebrando a canonização de Agnes, durante a qual manifestou o seu apoio aos protestos, foi um momento-chave. Ele afirma que “Praga teve dois heróis: Václav Havel e o Pe. Václav Malý”.
Malý tornou-se herói quando levou milhares de manifestantes a recitar o Pai-Nosso em um momento crítico, quando parecia que a multidão estava prestes a atacar o policial encarregado de suprimir a manifestação: “O jovem policial se desculpou com uma voz vacilante e Václav Malý apelou à multidão por reconciliação e perdão”.
Ao recontar esses eventos, Halík não tenta “batizar” a Revolução de Veludo. Pelo contrário, ele parece se basear na mesma visão geral expressa por outros dissidentes seculares da República Tcheca.
Tomáš Halík (à direita) com Václav Havel (esquerda). Foto: Arquivo de Tomáš Halík
“A consciência precede a existência, e não o contrário, como afirmam os marxistas”, declarou Václav Havel em um discurso de 1990 diante do Congresso americano.
Não é uma crítica à economia socialista, mas uma teoria, inspirada na fenomenologia, sobre a reforma política.
Não se consegue fazer progresso material algum sem uma renovação cultural e sem a transformação das consciências dos indivíduos: “A salvação deste mundo humano não está em nenhum outro lugar senão no coração humano, no poder humano de refletir, na modéstia humana e na responsabilidade humana”.
Halík mantém a mesma convicção quando afirma que, após o Pai-Nosso de Malý, a revolta de 1989 “não era mais uma luta política, mas algo muito mais significativo: uma cura espiritual. A situação de repente se transformou em um momento sagrado, com uma dimensão terapêutica”.
Para Halík, a Igreja ajudou na revolução porque proporcionou o ímpeto espiritual e instituições educativas para uma conversão cultural.
A revolução não criou uma utopia, e hoje a República Tcheca e a Eslováquia sofrem dos mesmos problemas que afligem o resto da Europa. Mas ela pôs em marcha uma nova e esperançosa visão do mundo e permitiu uma apreciação renovada pela verdade e justiça. Essa epifania cultural pode não ser suficiente para reformas de longo prazo; mas as reformas de longo prazo, diria Halík, não podem vir sem ela.