02 Junho 2020
Os cenários a partir dos quais o sociólogo Boaventura de Sousa Santos fala são diversos. Assim como pode oferecer uma conferência sobre as perspectivas de paz na Colômbia, diante de vários líderes sociais e estudantes da Universidade Autónoma Indígena Intercultural, em Popayán [Colômbia], também pode conversar sobre o colonialismo no principal auditório da Universidade da Califórnia, Irvine, ou pode dar uma aula sobre as consequências nefastas do patriarcado na Universidade de Barcelona.
Porque seu trabalho vai além dos livros. Uma parte fundamental de suas pesquisas consiste em ir até as comunidades mais vulneráveis e escutá-las frente a frente. Por isso, não é estranho vê-lo nas vilas miséria de Buenos Aires, nas favelas do Rio de Janeiro, em um campo de refugiados na Europa ou se reunindo com as comunidades indígenas do Brasil, no Amazonas. Ainda que agora, por causa da pandemia, precise fazer vários destes encontros pela internet: “O que está acontecendo com muitas destas comunidades é terrível e não podemos nos esquecer delas neste momento”, disse.
De Sousa Santos é um dos pensadores que buscaram explicar o que está acontecendo com a covid-19. Em momentos de notícias falsas, de nacionalismos em alta e de crises sanitárias, pensar nas consequências deste vírus é uma tarefa que exige tempo: “Assim como os políticos, os intelectuais, em geral, também deixaram de mediar, entre suas ideologias, as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns [...]. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo”, disse Santos em seu ensaio A cruel pedagogia do vírus. Por isso, faz um chamado a que se pense a partir das pessoas e seus problemas e não das bolhas do privilégio de onde vem os apontamentos de muitos especialistas.
Nasceu em 1940, em Coimbra, Portugal, cidade onde vive a metade do ano (de janeiro a julho) e onde é professor aposentado da Faculdade de Economia e diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Também é doutor em Sociologia pela Universidade Yale e distinguished legal scholar na Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison, Estados Unidos, onde passa a outra metade do ano (de agosto a dezembro).
Alguns de seus livros mais importantes são: Epistemologias do sul, Democracia al borde del caos. Ensayo contra la autoflagelación, O fim do império cognitivo, Esquerdas do mundo, uni-vos! e o recente ensaio A cruel pedagogia do vírus, um primeiro esboço que elaborou para buscar algumas explicações sobre essa pandemia.
Seu trabalho é reconhecido na Europa e na América, tanto que o jornal El País, da Espanha, o catalogou como: “O principal pensador dos movimentos sociais”, algo que as longas filas para ver suas palestras na Feira do Livro de Bogotá, em 2017, certificam. Além disso, De Sousa Santos é membro do Comitê Consultivo da Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição, uma organização criada após a assinatura dos Acordos de Paz, e também é consultor da Justiça Especial para a Paz (JEP). Sua relação com o país não é nova. O português estuda os conflitos sociais colombianos há mais de cinco décadas e visita o país com bastante frequência.
Na mesma linha de intelectuais como Paul B. Preciado, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben e Byung-Chul Han, Boaventura de Sousa Santos buscou compreender e explicar o que está acontecendo e como podemos entender as consequências dessa pandemia em nossas vidas.
A entrevista é de Diego Felipe González Gómez, publicada por El Tiempo, 31-05-2020. A tradução é do Cepat.
Como sociedade, aprendemos alguma coisa com essa pandemia?
A história não é muito favorável quando se trata de aprender, porque houve outras pandemias no passado e as sociedades não aprenderam muito com elas. Esta talvez seja um pouco diferente, na medida em que é um produto da globalização, pois uma pandemia nunca se espalhou tão rapidamente como agora. Além disso, diante da maneira como a economia está organizada e como não havia vacina para isso, a solução foi parar a economia por um tempo. Isso nos permitiu ver uma série de coisas que eram menos visíveis para a maior parte da sociedade.
Por isso, penso que a oportunidade de aprender é enorme. O problema é saber se vamos aprender algo dela, se o sistema político e os movimentos sociais realmente vão aprender algo com tudo isso. Não é fácil, realmente, porque, em geral, o que acontece é que as classes sociais e as pessoas afetadas por uma pandemia, a primeira coisa que querem, quando isso acontece, é voltar à normalidade, retornar ao passado.
No entanto, essa normalidade foi responsável pelo desencadeamento dessa crise pela pandemia, certo?
Essa normalidade para a qual alguns querem voltar é muito violenta para muitas pessoas. Sobretudo, para as pessoas que estão morrendo por estar em situações vulneráveis do ponto de vista econômico, racial, até de exclusão social. Para dar um exemplo: em São Paulo, Brasil, em um bairro ou favela pobre, a taxa de mortalidade pode chegar a 60%, enquanto em outro bairro de classe média alta, é possível haver uma taxa de apenas 2% de mortalidade pelo vírus. Ao contrário do que nos disseram, o vírus não mata indiscriminadamente, tem seu critério, que se rege pela vulnerabilidade das pessoas.
Então, voltar à normalidade é retornar às condições que fizeram com que grande parte da população seja muito vulnerável às pandemias e que, além disso, devido a todas as políticas das últimas décadas, não podem assumir o confinamento recomendado por organizações como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais ainda em um lugar como a América Latina, onde a informalidade dos trabalhadores pode chegar a 60%. Isso significa que um dia sem ir trabalhar é o dia em que talvez não se possa comprar comida para o seguinte, assim, é muito difícil se confinar, não é?
O privilégio do teletrabalho é isso, um privilégio que muitas pessoas nem sequer podem optar. Portanto, o que esta crise permitiu ver é que as exclusões sociais e a discriminação certamente irão se agravar. Vemos isso, por exemplo, nos povos indígenas da Colômbia e em outros países. As pessoas se esquecem que eles foram os primeiros afetados por uma espécie de guerra biológica, quando os colonialistas europeus chegaram. Eles foram os corpos mais vulnerabilizados e foram infectados por pessoas que vieram de fora, não pela comunidade.
O que você considera que significará essa nova normalidade que os governos tanto falam?
Os governos são um pouco oportunistas quando falam sobre isso. É preciso observar, porque eu também digo que haverá uma nova normalidade no sentido de que estaremos em um período de pandemia intermitente, com picos de infecções e mortes, até que a vacina universal chegue. O que os Estados fazem - quando falam sobre isso - é buscar um consenso, uma obediência da sociedade, sem conflito político. Quando a verdade é que eram Estados com muitos conflitos antes da pandemia, como Piñera, no Chile, Duque, na Colômbia, e querem aproveitar essa ideia para promover um consenso baseado na obediência dos cidadãos, porque existe uma pandemia. O curioso é que normalmente são os governos de direita que falam desta nova normalidade.
Que outros problemas essa pandemia nos permitiu ver ou quais provocaram que não podem mais ser ignorados?
A pandemia torna mais visível todas essas injustiças presentes na sociedade e, a partir daí, algo pode ser aprendido. Coisas concretas como a que os países mais vulneráveis - e que não resolvem tão bem a pandemia - são os que mais privatizaram os sistemas de saúde ou que nunca tiveram um sistema público, como é o caso dos Estados Unidos. Outro aprendizado seria que os serviços públicos de saúde não são um custo para o Estado, são um investimento. E que os países pagam muito mais durante uma pandemia, quanto menos recursos investiram na saúde pública.
Isso também implicou um novo papel para o Estado.
O Estado voltou a ter uma centralidade, sobretudo em países da América e Europa. Nos últimos quarenta anos, muitos “analistas” disseram que o Estado é um predador, que o Estado é ineficiente, que tudo deve ser privatizado e, agora que a pandemia chegou, esses mesmos mercados, que supostamente eram os melhores reguladores da vida social e econômica, desapareceram. Isso fez muitas pessoas olhar para o Estado novamente, mas para um Estado que as proteja, não um que faça vigilância ou que as reprima. O problema é que o Estado não é capaz de protegê-las porque, nos últimos quarenta anos, uma teoria e uma prática política foram produzidas para incapacitá-los.
Todos os cortes que ocorreram nas políticas sociais e na administração pública - para desacreditar e desmoralizar os servidores - se tornaram um problema maior. Segundo, neste modelo de desenvolvimento, foi demonstrado, por toda a plataforma intergovernamental para políticas científicas e biodiversidade da ONU, que as pandemias estão intimamente ligadas a esse modelo de desenvolvimento de exploração sobre a terra, de contaminação da água, desmatamento e de tudo aquilo que interfira violentamente nos ecossistemas naturais.
Quanto mais invasivos formos, mais sofreremos com essas pandemias. Isso significa que o Estado será um Estado permanente de emergência e isso traz um problema, porque, por definição, não são democráticos, segundo muitos pensadores. Mas eu acredito que o Estado de emergência pode ser democrático se for por um curto período, talvez quinze dias, e que isso seja renovado duas ou três vezes, como foi feito em Portugal.
Sem uma mudança de modelo econômico, essas pandemias continuarão existindo?
A pandemia está relacionada a problemas como o aquecimento global e a crise climática. Isso significa que, por exemplo, não teríamos que centrar as atividades produtivas em atividades extrativas, como acontece em vários países do continente americano. E para observar alternativas de mudança, temos ótimos mestres que podem nos ensinar a nos relacionar de maneira diferente com a Terra, como são os povos indígenas e afrodescendentes. São eles que nos dizem, há muito tempo, que esse modelo é ruim, não apenas para eles, mas para todos. Acabamos sendo vítimas desse modelo quando chega às cidades, como agora. Isso implicaria uma revisão da matriz econômica dos países e talvez isso consista em desglobalizar parte da economia. Passou-se de falar em globalização para relocalização, mas por que isso acontece?
Por quê?
Em primeiro lugar, por uma questão de soberania alimentar. Existem países que nem estavam preparados para alimentar as pessoas todos os dias, agora - de repente – fica claro que a soberania alimentar é necessária. Por outro lado, fala-se em soberania industrial, por quê? Porque o país mais rico do mundo, o país que pode destruir vários mundos com o seu poder militar, não produz luvas, máscaras ou respiradores, coisas simples, e tudo tem que ser importado da China e da Índia. No caso de medicamentos e vacinas, certamente serão produzidos na Índia e não em outros lugares.
Aqui está uma cadeia de produção global baseada em uma lógica de alto risco em um mundo de pandemias, porque desde que ocorra um corte ou um distúrbio em alguma parte da cadeia, que é global, você fica paralisado. Outro exemplo: não se pode continuar financiando ou subsidiando a indústria de energia ou a produção de automóveis particulares, porque, ao fazer isso, se está financiando a ocorrência de pandemias, estamos produzindo as pandemias. Porque é a energia fóssil, é o transporte privado que está por trás do aquecimento global. Mas vou mais longe, há outras coisas que a pandemia está nos ensinando, uma delas, que as pessoas não percebem, é a educação ou o nosso comportamento.
Como a educação é influenciada pelo comportamento que se tem diante dos riscos da pandemia?
Diz-se que os países asiáticos são mais autoritários, como Coreia, Cingapura, Taiwan e China, mas há países como o Vietnã - com milhares de quilômetros de fronteira com a China – em que os efeitos da pandemia não foram tão letais, por quê? Não é pela repressão, é porque as pessoas seguem um sistema coletivo no qual entendem que, para se proteger, precisam seguir certas regras e não é necessário vigiar. Ao passo que na Europa, se você deseja que as pessoas fiquem em casa ou usem máscaras, você deve ameaçar com a punição ou com uma multa. No Vietnã, isso não foi necessário por causa de sua educação.
A educação no sistema ocidental não é para a solidariedade, nem para o mutualismo, mas para o empreendedorismo ou para a livre iniciativa ou para o êxito a todo custo, um individualismo possessivo. E as pessoas estão reagindo dessa maneira. Basta ver nos Estados Unidos as organizações de direita, como Americans for Prosperity, que dizem: “Para que todas essas limitações de liberdade aos cidadãos [?],é a nossa liberdade”, mas essa é uma liberdade assassina, porque não só podem morrer, como também podem contagiar muitas pessoas. Nossa educação não nos ensinou a valorizar os bens comuns ou a valorizar o destino comum de todos nós ou a valorizar a comunidade.
Uma das consequências dessa pandemia é que desnudou a lógica do hipercapitalismo, essa ideia de que não há alternativa fora dele. Em que sentido sentidos a desnudou?
Desnudou-a porque se fosse verdade que os mercados são o melhor regulador das relações sociais e que tudo o que pode ser privatizado deveria ser privatizado, como se explica que durante a pandemia os mercados desapareceram? O que vamos ver é que os empresários vão pedir apoio ao Estado, de uma maneira totalmente oportunista. Passaram as últimas quatro décadas dizendo que não queriam regulamentações, que o Estado deveria sair da economia, que eles próprios queriam regular, uma desregulamentação total, ou seja, não queriam o Estado, mas vem uma crise e aí, sim, querem um Estado que os defenda, que pague os layoffs [demissões], como muitos países estão pagando.
Desnudou-se que o neoliberalismo é uma mentira, algo sobre o qual eu já havia escrito durante a crise de 2011 a 2016 que afetou países como Espanha, Grécia e Portugal. O neoliberalismo só serve para concentrar a riqueza, e essa política está dominando a Colômbia hoje, com Iván Duque. Os colombianos devem ter muito claro que suas decisões não serão para favorecer a economia no futuro, mas para concentrar a riqueza. Isso é o que essa pandemia desnudou.
Outra consequência da pandemia foi uma virtualização da vida. Que efeitos isso poderá ter na vida cotidiana ou em atividades como a educação?
Um desastre. Vejo e estou vivendo isso. Agora que dou minhas aulas pelo Zoom, posso apenas dizer que uma das pessoas cuja riqueza aumentou consideravelmente durante essa pandemia é o criador de tal plataforma. O capitalismo vê em todas as crises uma oportunidade de renda, de lucro, e aqui está presente neste caso.
Eu penso o seguinte, por um lado, vejo a oportunidade, e nesta área estratégica é onde vejo mais claramente a contradição entre a boa oportunidade e o alto risco. A boa oportunidade é que podemos nos comunicar de uma maneira que nos permite permanecer em total isolamento durante uma pandemia. O grande risco é que o capitalismo educacional, em geral, entre fortemente nesse campo, dizendo: “Nós não precisamos de campus, nem de nada, para a educação, só precisamos da Internet e da distribuição de computadores”. Isso aumentará a infoexclusão, porque nem todo mundo tem smartphones, nem todos têm computadores.
Há pouco tempo, conversei com um grupo de indígenas brasileiros que moram em Tabatinga, na fronteira com a Colômbia, e quando estava falando com eles, o sinal da internet era muito fraco e caía o tempo todo, o que mostra que a internet não é um veículo para comunicação igual para todos. O problema em relação à educação é que não se trata apenas de transmitir conhecimento, a educação é socialização.
A universidade e a escola são formas de sociabilidade, de convivência, de sair da família para uma comunidade mais ampla, porque se você se educa apenas no círculo da sua família, não conhece o mundo. Os educadores estão preocupados com o fato de isso abrir uma nova fronteira para a privatização da educação, algo semelhante ao que aconteceu com a saúde. E para finalizar, com o teletrabalho, podemos ver que isto é um ensaio para a revolução - que está por vir - da inteligência artificial, 5G e toda a estratégia da impressão 3D.
Falando em futuro e educação, qual o papel dos intelectuais neste momento?
Os intelectuais deveriam ser bastante humildes agora, porque esta é uma situação muito excepcional. Por exemplo, vemos que em vários países se recorre aos cientistas, epidemiologistas, e é muito bom que eles falem, mas devemos saber que eles não sabem muito sobre a dinâmica da pandemia. Disfarçamos nossa ignorância com gráficos e estatísticas, mas não sabemos a dinâmica do que está por trás disso. As conexões entre essa pandemia e a crise climática nunca são tocadas nesse momento.
Há muito desconhecimento e muitos problemas invisíveis, por isso penso que os intelectuais devem abrir o campo da reflexão, mostrar quais são os diferentes problemas e as diferentes feridas que se abrem em nossa sociedade, essas veias abertas na América Latina estão mais abertas do que nunca. Os intelectuais têm que olhar com muito cuidado para a situação, é por isso que sempre digo que não sou um intelectual de vanguarda, mas um intelectual de retaguarda.
Um problema que muitos países enfrentam é como resolver o dilema entre fome e proteção contra o vírus.
É um tremendo dilema social. Por um lado, é necessário entender que as pessoas confinadas estão com fome e a fome que já existia se acentua mais. Em muitos países se está vendo isso que chamam de os novos pobres, que são as mesmas pessoas da classe média - que eram autônomos ou trabalhadores independentes – que trabalhavam em setores de serviços presenciais, como os advogados, por exemplo. Da noite para o dia, ficaram sem seguridade social, nem sistemas de proteção e ficaram sem nenhuma renda.
Também existe todo o comércio informal, como é o caso dos vendedores ambulantes, que precisam sair e que as pessoas saiam às ruas para poder sobreviverem. Claramente, há um risco que precisará ser enfrentado, porque, como diz meu amigo, o escritor William Ospina, o confinamento tem limites. Colocar as pessoas em casa por meses e meses pode causar um problema maior, pode causar problemas mentais ou de sobrevivência ou, como se viu, um aumento da violência contra as mulheres, outro dos grupos sociais mais afetados por essa crise. Portanto, deve haver uma negociação entre dois bens que devem ser muito bem administrados.
Em seu ensaio ‘A cruel pedagogia do vírus’, uma das lições que diz que tudo isso nos deixará será o descrédito da extrema direita e da direita neoliberal. Por que isso pode acontecer?
Os fatos. Basta olhar para os fatos em geral e você verá que a extrema direita e a direita em geral fizeram uma coisa desastrosa. A primeira coisa que fizeram foi minimizar a pandemia. Segundo, criaram uma dicotomia, na minha opinião, fatal entre economia e vida. Quando dizem que precisam proteger a economia e que a vida vem depois, porque precisamos da economia para manter as pessoas vivas, o que dão a entender é que estavam sugerindo um darwinismo social. As pessoas vão morrer, mas quem morre? Segundo eles, os idosos morrerão, os que são menos produtivos para a economia, os que sobrecarregam a previdência social com as pensões e, segundo eles, seria bom se eles desaparecessem, ou as populações mais vulneráveis.
O pior é que se ouve assim, desta forma, de pessoas como Bolsonaro no Brasil, que é a caricatura de tudo isso. Mas Boris Johnson disse isso de alguma forma na Inglaterra e por isso deixaram que as pessoas se contagiassem, tanto que o próprio Johnson acabou se contagiando. O interessante é que ele foi salvo pelo sistema público que queria privatizar, e também por duas enfermeiras, uma portuguesa e uma neozelandesa, que ele queria impedir que entrassem no país. Ou seja, as políticas neoliberais vão contra toda a proteção à vida.
Com Trump ocorre o mesmo, disse que essa gripe iria desaparecer rapidamente, que com o calor desapareceria, e continua dizendo qualquer bobagem todos os dias para impedir que as notícias se concentrem na única verdade: sua incompetência em lidar, tratar e prevenir esta pandemia. O que vimos é que os governos da direita e da extrema direita são muito bons para destruir, mas muito ruins para construir. Bons para destruir o Estado, a economia e os serviços públicos, e quando é necessário construir uma alternativa para proteger as pessoas, não a têm. E acho que isso também é verdade na Colômbia.
Mas, então, como você avaliaria a reação de governos de esquerda como o da Espanha ou do México?
Com o governo da Espanha ocorre o seguinte: o governo acordou tarde porque foram pegos de surpresa. Pedro Sánchez reconheceu que foi um erro agir tão tarde e que o atraso na tomada de medidas de confinamento causou muitos problemas. A partir daí, tomaram fortes decisões para proteger a vida. E AMLO no México é um caso muito especial. AMLO não é um homem de esquerda, mas também não é de direita como Bolsonaro ou Iván Duque. Ele é um cristão muito interessado nas classes populares, e o que AMLO viu foi a realidade econômica do México, com altas taxas de informalidade. Daí que sua primeira reação foi errada, atrasando o confinamento. Mas aqui há uma diferença, ele buscava proteger essa economia informal, não aos grandes empresários. O que estou dizendo é que a esquerda não necessariamente agiu melhor em todos os casos, mas pelo menos colocou a vida acima da economia, algo que a direita não fez.
Como você avalia que essa pandemia afetará a Colômbia?
A pandemia afetará a Colômbia duramente, mas vocês têm o remédio. São o único país do continente que, na segunda década do século, trouxe uma boa notícia: os acordos de paz. Então, o remédio está aí. Caso se olhe para os acordos, basta que haja vontade política para cumpri-los, em todas as suas dimensões, para que a Colômbia avance e supere muito bem essa pandemia. Teria um modelo de desenvolvimento diferente, onde as comunidades seriam protegidas e finalmente terminariam com a concentração da terra, acabar com os atores armados em sua totalidade.
A solução, que chamei de paz democrática nos textos que escrevi sobre a paz na Colômbia, está aí. Essa é a grande tragédia da Colômbia, razão pela qual tenho certeza de que voltaremos ao minuto zero, que era o da paralisação e dos protestos que existiam antes da pandemia. Talvez mais fortemente, porque as condições serão piores se os acordos voltarem a ser um papel que vai para o lixo, apesar de todos os esforços que fazemos na Comissão da Verdade e na JEP para cumpri-los.
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“Os governos da direita e da extrema direita são muito bons para destruir, mas muito ruins para construir”. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU