Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, 2 de março de 2023 (Mateus 26,14-27,66). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A liturgia deste domingo da Paixão do Senhor, também chamada de Ramos, prevê a leitura do relato da paixão segundo Mateus. O evangelista não nos entrega principalmente uma “crônica”, mas nos fornece a interpretação, que brotou da fé da Igreja, daqueles fatos que constituíram o fim da vida de Jesus, o Cristo.
O evangelho é escrito por aquele que confessa a ressurreição de Jesus e, portanto, lê os eventos anteriores à luz daquele evento que explica, dá sentido, ilumina a paixão e a morte. Por isso, Mateus insiste no “cumprimento das Escrituras”, ritmando o relato com este refrão: “Como está escrito...”, “isso aconteceu para que se cumprissem as Escrituras...”.
Lendo a paixão segundo Mateus, assistimos, como a multidão convocada, ao processo de Jesus, no qual se confrontam a vontade de Deus e a dos homens, em um drama que é pascal não só pela sua colocação temporal, mas também pela sua dinâmica.
Podemos distinguir o relato em três grandes partes:
- o prelúdio (Mt 26,1-46);
- o processo religioso (Mt 26,47-75);
- o processo político, a morte e o sepultamento (Mt 27,1-66).
No prelúdio, após o complô (cf. Mt 26,1-5), lemos como abertura a unção de Jesus por parte de uma mulher anônima em Betânia (casa do pobre), verdadeira introdução à paixão (cf. Mt 26,6-13). Derramando óleo perfumado sobre a cabeça de Jesus, a mulher profetiza aquela unção real e sacerdotal que Jesus receberá na cruz. Ela “discerne” Jesus como “o Pobre”, aquele que vai à morte na solidão, no abandono e sem defesa; Jesus aprova seu gesto, que não é desperdício, mas verdadeiro dom feito ao Pobre.
Não compreender isso significa – como fará Judas (cf. Mt 26,14-16) – vender Jesus a um preço em dinheiro, porque se estima o valor do dinheiro como mais importante do que a atenção a ser dedicada ao próprio Jesus. Por isso, como Jesus afirma com solenidade: “Em verdade, eu vos digo: por toda a parte, onde este Evangelho for anunciado, no mundo inteiro, também contarão o que ela fez, e ela será lembrada” (Mt 26,13) pelo seu gesto de amor.
Segue-se o relato da ceia (cf. Mt 26,17-35), que, de acordo com o evangelista, é uma ceia pascal, e justamente nela ocorre a denúncia do pecado do traidor: um dos Doze entrega Jesus, os outros todos fugirão, e Pedro, a rocha, tremendo como uma vara verde, dirá que não conhece Jesus.
Essa é a comunidade de Jesus, à qual ele dá seu corpo e seu sangue, sua própria vida. Sim, os convidados para aquela ceia são pecadores, infiéis, uma assembleia que nós julgamos indigna de receber o dom da vida mesma do Senhor. Mas esse dom é para a remissão dos pecados, o cálice é sangue da aliança derramado para a remissão dos pecados, começando por aqueles dos Doze.
Depois da ceia, Jesus desce com sua comunidade ao Getsêmani, para além da torrente Cedron, no vale abaixo do templo, onde, em uma intensa oração, ele assume até o fim aqueles eventos que já estavam se precipitando (cf. Mt 26,36- 46). Ele poderia ter fugido, renegando o que tinha feito e dito; poderia ter assumido o estilo de quem combate também com a violência, impondo resistência: ao invés disso, ele opta por viver até o fim fazendo o bem, acolhendo sobre si o mal, em vez de fazê-lo.
Essa é a vontade de Deus para todos, para cada ser humano! Portanto, Jesus está pronto, faz dos eventos que se sobrepõem um ato em sua liberdade e devido a seu amor. Houve uma luta, podemos dizer que Jesus sofreu novamente a tentação (cf. Mt 4,1-11), mas, mais uma vez, como sempre, colocou seu destino nas mãos do Pai.
Segue-se a captura na escuridão, por indicação de Judas, mediante um beijo, e a firme confissão por parte de Jesus de que o que está acontecendo está de acordo com o que as Escrituras haviam anunciado: agora, mais do que nunca, ele cumpre a vocação recebida (cf. Mt 26,47-56). Depois, Jesus é conduzido pelo sumo sacerdote Caifás para o processo religioso (cf. Mt 26,57-68): lá, estavam reunidos alguns escribas e alguns anciãos do povo, convocados às pressas no meio da noite por Caifás.
Com esse processo, quer-se condenar Jesus, identificando em suas ações e em suas palavras contradições à Lei, blasfêmias contra Deus, traição à comunidade de Israel. Testemunhas compradas intervêm para relatar palavras de Jesus contra o templo, a morada de Deus.
Embora Mateus não nos forneça um relato preciso, um “depoimento verbal”, entendemos que a causa desse processo está totalmente na identidade de Jesus em relação a Deus. Assim, o sumo sacerdote lhe pede para confessar se ele é o Cristo, o Messias, o filho de Deus. E Jesus respondeu remetendo Caifás às suas palavras e à sua consciência (“Tu o dizes”: Mt 26,64), mas revelando também que, justamente naquela morte já próxima, haveria a revelação do Filho do homem sentado como Juiz à direita de Deus na glória. Palavras que causam indignação e assustam Caifás, levando-o até a rasgar suas vestes, sinal de que o sumo sacerdócio que julga Jesus já acabou, foi esvaziado.
Paralelamente ao processo religioso de Jesus pelo sumo sacerdote, há o interrogatório de Pedro por parte de algumas servas, de pessoas anônimas e sem poder. Pedro renega, não reconhece Jesus como Messias sofredor e nem consegue reconhecê-lo como aquele do qual havia sido discípulo (cf. Mt 26,69-75).
E Judas? Tendo preferido o dinheiro a Jesus, não consegue dar sentido à própria vida e, assim, decide se suicidar (cf. Mt 27,3-10).
O processo religioso podia emitir condenações, mas não infligir uma pena a Jesus. Por isso, ele é enviado de volta à autoridade política romana, Pôncio Pilatos, governador da Judeia naqueles anos (cf. Mt 27,1-3.11-26). Para Pilatos, Jesus só é um caso interessante se representa uma ameaça ao poder político de César. Por isso, pergunta-lhe: “Tu és o rei dos judeus?” (Mt 27,11). Ou seja: “Tu és um concorrente ao poder imperial? Reconheces o poder político de Roma ou o queres para ti?”. Mais uma vez, porém, Jesus não responde com um “sim” ou com um “não”, mas remete Pilatos às suas palavras: “Tu o dizes, tu fazes essa afirmação, eu nunca a fiz!” (ibid.). Pilatos compreende, então, que Jesus não é um perigo, mas apela às acusações que as autoridades religiosas judaicas moviam contra ele. Mas Jesus não responde, cala-se (cf. Mt 26,14), com um silêncio que, se fosse escutado, gritaria a verdade com mais força do que qualquer palavra.
Pilatos, então, tenta uma troca entre Jesus e um prisioneiro famoso, um sedicioso, Barrabás, mas as pessoas, incitadas pelos chefes religiosos, preferem a morte de Jesus e chegam a gritar: “Crucifica-o!” (Mt 27,22). Aqui, o poder totalitário mostra seu rosto: vendo que o tumulto cresce, tendo compreendido que Jesus não importa nada e não é defendido por ninguém, Pilatos prefere consentir com a vontade da massa, em sua maioria nas garras da vertigem da raiva, do rancor e da violência (cf. Mt 27,20-26). Mas, antes da execução da condenação, a violência encontra a possibilidade de se desafogar contra um justo indefeso, até o desprezo e a tortura.
Jesus é coroado Rei dos judeus, de acordo com a acusação apresentada, e é celebrado em uma paródia: é revestido com um manto escarlate, coroado de espinhos e lhe é dada uma vara como cetro, ícone que os cristãos nunca esquecerão. “Até esse ponto” trataram Jesus, o Filho do homem, o homem vítima da injustiça e do abuso... O processo político se encerra com a entrega de Jesus aos soldados por parte de Pilatos, a fim de que executem a crucificação fora da cidade, no lugar chamado Gólgota (cf. Mt 27,27-37).
Jesus é crucificado entre dois delinquentes (cf. Mt 27,38), contado até na morte entre os pecadores, os malfeitores, e a paródia continua com um cartaz que o despreza: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus” (Mt 27,37), um Messias fracassado, condenado pela autoridade religiosa como blasfemador e pela política como malfeitor, posto em uma cruz, o suplício ignominioso reservado aos escravos e aos malditos por Deus e pelos homens (cf. Dt 21,23; Gl 3,13).
Na cruz, Jesus continua ouvindo ultrajes, além do último eco das tentações vividas no início e depois sempre em sua missão (cf. Mt 27,39-44). Descer da cruz manifestando sua onipotência divina? Salvar a si mesmo assim como salvou a tantos outros? Ter fé em Deus somente se o libertar daquele fim?
Não, Jesus permanece fiel à sua missão até o fim, por isso faz ao Pai uma última pergunta: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Sl 22,2). Não é uma contestação, mas uma oração, um pedido de luz na escuridão, uma confissão: “Ó Deus, permaneço fiel a ti mesmo naquilo que eu vivo como abandono, teu silêncio, afastamento de ti!”. Nenhum dos presentes pode compreender, mas apenas um centurião pagão, debaixo da cruz, vendo aquela morte, chega a confessar: “Ele era mesmo Filho de Deus!” (Mt 27,54).
Assim, enquanto a noite cai e o corpo de Jesus é deposto em um sepulcro por discípulos e discípulas (cf. Mt 27,57-61), em um pagão é gerada a fé em Jesus: naquela morte tão atroz, o centurião vê que Jesus tem esperança, que permanece fiel a Deus, que vive aquele fim como dom, como amor por todos os seres humanos.
Aquela morte já começa a se manifestar como ressurreição, como vida, até que, no terceiro dia, se manifestará em plenitude como o grande mistério da Páscoa de Jesus (cf. Mt 28,1-10).