18 Abril 2022
"Francisco interpreta a necessidade de uma recomposição internacional. E ele não quer ser o capelão militar do Ocidente", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 15-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco enfrenta a Páscoa mais dramática do seu pontificado. E o faz com uma clara indicação geopolítica. A "Terceira Guerra Mundial em pedaços", que desde o início indicou claramente como um sinal de contemporaneidade, transbordou de forma inimaginável e horrenda na Europa, com a brutal invasão da Ucrânia desencadeada por Putin. No entanto, um salto qualitativo ocorreu entre o final de março e o início de abril. Até aquele momento, duas linhas se enfrentavam em Washington: uma destinada a encontrar uma saída através da negociação, a outra orientada a mostrar à Rússia a "superioridade" dos Estados Unidos.
O massacre de Bucha e o fracasso do exército russo em tomar Kiev fez pender a balança a favor daqueles que querem uma guerra total contra a Rússia. No Vaticano, registraram os passos da virada.
A afirmação do presidente estadunidense Biden em Varsóvia de que Putin não pode ficar "em seu lugar". A acusação de "genocídio" dirigida por Biden à Rússia. E agora o afundamento do principal navio da frita russa no Mar Negro, uma ação que por sua complexidade tecnológica implica o envolvimento direto dos Estados Unidos.
Chamar a guerra na Ucrânia de "genocídio" é simplesmente insustentável. No jornal Domani, não propriamente a favor de Putin, consta que o número de vítimas civis apurado pela ONU até hoje é de 1964. Mesmo que seja multiplicado por três ou quatro, não se pode em boa-fé evocar o genocídio. Porém ao usar o termo, fica claro que não se pretende sentar-se para negociar com o destinatário de uma acusação tão infame. Em Kiev afirma-se agora que negociará após a "vitória". A aberta agressividade com que o embaixador ucraniano na Alemanha acusou o presidente federal Steinmeier de ter uma "teia" de relações com a Rússia e o insulto ao presidente ucraniano Zelensky que rejeitou a visita de Steinmeier a Kiev, revelam a vontade de atingir as capitais europeias, que poderiam não compartilhar a perspectiva de uma guerra total contra a Rússia. O mesmo vale para as declarações do primeiro-ministro polonês Morawiecki, que acusa a França e a Alemanha de criarem muitas vezes dificuldades durante as reuniões europeias. A intenção é intimidar qualquer possível objeção à linha propagada pelo governo de Kiev e dirigida por Washington.
As críticas ucranianas à presença de uma mulher ucraniana e uma russa na Via Sacra liderada por Francisco - juntas vão sustentar a cruz esta noite - vão na mesma direção. O embaixador ucraniano na Santa Sé se manifestou, acenando em um tuíte sobre suas perplexidades e "possíveis consequências". O arcebispo-mor greco-católico ucraniano, Shevchuk, interveio com um ataque frontal ao Vaticano, falando de uma "ideia inoportuna e ambígua" e praticamente pedindo o cancelamento da iniciativa. O próprio núncio do Vaticano na Ucrânia, Monsenhor Kulbokas - lituano – de alguma forma se distanciou, explicando que não teria organizado assim o rito da Sexta-feira Santa, porque primeiro a agressão deve ser interrompida e "a reconciliação ocorre quando o agressor admite a culpa e pede desculpas".
Francisco não se deixará silenciar. Condenou com palavras inequívocas a "agressão violenta contra a Ucrânia", denunciou o "massacre sem sentido", classificou em termos duríssimos as "crueldades cada vez mais horrendas, também cometidas contra civis, mulheres e crianças indefesas" em solo ucraniano. No entanto, como João Paulo II, ele nunca perde de vista a perspectiva geopolítica global. Mesmo no dia em que mostrou a bandeira ucraniana de Bucha numa audiência geral, não deixou de ressaltar a urgência de que "se coloque um fim a esta guerra!". Inclusive, disse na última segunda-feira, à custa de algum sacrifício.
A posição de Francisco é autônoma e intercepta as preocupações e questionamentos – muitas vezes não ditos – de uma parte considerável da opinião pública. A guerra em curso não é um evento regional e não é mais o confronto entre Davi e Golias. Tornou-se uma guerra por procuração entre os Estados Unidos (junto com a OTAN) e a Rússia. Uma guerra "que ameaça o mundo inteiro", adverte o pontífice, um evento em que o "mundo é um tabuleiro de xadrez, onde os poderosos estudam as jogadas para estender o domínio em detrimento dos outros". Ao denunciar com espírito religioso a fúria fratricida do espírito de Caim, Francisco explicita uma posição de realismo totalmente laico, que nada tem a ver com um pacifismo genérico ou uma suposta neutralidade. (Entre as narrativas postas em circulação para intimidar a Santa Sé, há também aquela que Francisco, ao não nomear Putin, corra o risco de acabar como Pio XII e seus silêncios. Mesmo Wojtyla, condenando frontalmente a invasão estadunidense do Iraque, nunca mencionou G.W. Bush).
Bergoglio coloca o dedo no divisor de águas político de hoje: se quer fechar a ferida da guerra na Ucrânia antes que ela degenere em resultados catastróficos ou, com fanatismo nacionalista, se está perseguindo a miragem de uma "vitória"? O pontífice argentino lembra que a guerra não terminará com uma escalada de "mostrar os dentes". Não se sai disso apontando in crescendo sobre “outras armas, outras sanções, outras alianças político-militares”. O objetivo – esclarece a respeitada revista jesuíta Civiltà Cattolica - não pode e, em nome da racionalidade, não é desejável que seja a "perspectiva de uma Rússia enfraquecida e humilhada... considerada um estado pária ou uma superpotência nuclear vilã, tomada por impulsos revanchistas”, semelhantes aos dos alemães após a Primeira Guerra Mundial. À narrativa típica da Guerra Fria, que no campo ocidental vê em Putin o "mal absoluto" e sua queda como prenúncio de uma aurora democrática em Moscou, a Civiltà Cattolica replica que "não devem ser apoiados os teóricos que dizem que uma nova Rússia sem Putin seria um nação democrática pró-ocidental: isso não acontecerá, pelo menos, num curto prazo".
Francisco coloca o objetivo de iniciar "negociações sérias e verdadeiras". Algo que não parece interessar Washington por enquanto, enquanto Putin fala em "beco sem saída". Mas a Europa não está fechando questão sobre esse ponto. A médio prazo, o Papa estabelece outro objetivo inteiramente político: uma "forma diferente de governar o mundo agora globalizado", em palavras concretas a busca de um novo pacto de Helsinque multipolar. A ideia de uma nova guerra fria entre o Ocidente, por um lado, e o eixo China-Rússia, por outro, é arrepiante. À diplomacia do Vaticano não escapou ao fato de que a primeira votação da ONU sobre a condenação da Rússia teve 141 votos a favor e 40 entre contrários e abstenções. A votação subsequente pela suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos mostrou uma notável mudança no equilíbrio: 93 a favor do afastamento e 82 contra e abstenções. Mais da metade da população mundial é contra o confronto no tabuleiro de xadrez ucraniano. Francisco interpreta a necessidade de uma recomposição internacional. E ele não quer ser o capelão militar do Ocidente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Papa enfrenta a sua Páscoa mais dramática, mas não se deixará silenciar. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU