524 anos de uma história de supressão e uma narrativa de resistência

Nesse dia dedicado aos povos indígenas, a questão que fica é: como sobreviver num mundo em degradação? A resposta pode estar justamente naqueles que por anos resistem e que por muito tempo tentamos apagar de nossa história

Foto: Ricardo Stuckert

Por: João Vitor Santos | 19 Abril 2024

“Quando vi que Bolsonaro tomou aquela facada, fiquei em desespero. Ali vi que ele estava eleito”. A frase é do antropólogo Orlando Calheiros e foi dita em um evento realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em novembro de 2018 (veja a íntegra da videoconferência abaixo). Na época, como muitos, ele conta que se encontrou atônito quando percebeu que Jair Bolsonaro e todo seu séquito embebido em ódio haveriam de ascender ao comando do Brasil. Estudioso do perspectivismo indígena, Calheiros estava, em 06-09-2018, data em que Bolsonaro levou a facada, entre os indígenas Aikewara, no norte brasileiro. Povo sábio da floresta, não entendiam o desespero do antropólogo. Para ele, havia de ser o fim daquela gente com quem tanto havia aprendido. Só que, novamente, Calheiros e nós não indígenas estávamos errados sobre o modo de vida dos povos originários. Foram os próprios indígenas que o ensinaram: não haveria de ser o fim, e sim um novo capítulo da resistência dessa gente. “É como como diz Ailton Krenak: somos índios e resistimos há 500 anos”, recordou Calheiros.

Publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 19-04-2023.

 

E assim foi. O relatório intitulado Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil de 2021, elaborado pelo Conselho Missionário Indigenista – Cimi, abre afirmando: “O ano de 2021 foi marcado pelo aprofundamento e pela dramática intensificação das violências e das violações contra os povos indígenas no Brasil. O aumento de invasões e ataques contra comunidades e lideranças indígenas e o acirramento de conflitos refletiram, nos territórios, o ambiente institucional de ofensiva contra os direitos constitucionais dos povos originários”. Mas, ainda assim, eles resistiram e resistem. Não há dúvidas de que o governo de Jair Bolsonaro foi um dos piores no tocante à preservação dessas culturas locais. Vide a tragédia do povo Yanomami, escarnada no início deste ano.

 

No entanto, como bem aponta o vídeo acima, a tragédia dos Yanomami se agravou – e muito – no governo anterior. Mas ela não começou no governo Bolsonaro. Sim, podemos remontar ao início dessa história de supressão daqueles que viviam há tempos nessas terras, há 500 anos quando da tomada de posse do Brasil pelos primeiros portugueses e, depois, todo o processo de colonização que ocorreu. Afinal, aprendemos na escola que o Brasil foi descoberto, como uma terra sem donos e que os índios eram sujeitos incivilizados que precisavam ser cristianizados e, logo, civilizados. Felizmente, a história contada no colégio parece que está mudando.

 

Só que não precisamos ir longe, no primeiro contato entre índios e não índios no Brasil. Podemos retroceder apenas seis anos, ainda antes de Bolsonaro. A situação dos Yanomami, Kaiowás e outros tantos povos não era diferente. “Naquele tempo, seis anos atrás, quatro anos atrás, a gente tinha que enfrentar o não indígena que não entendia a ideologia do indígena, o porquê de estarmos aqui”, disse Daniel Kaiowá, liderança e conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, em reportagem reproduzida pelo IHU ainda nesta semana. Daniel era uma das lideranças que estavam em audiência com a ministra Sônia Guajajara e com a presidenta da Funai, Joenia Wapichana. A presença das duas, inédito num governo brasileiro, dá sinais interessantes da abertura àqueles que sempre foram silenciados.

Na mesma reportagem, Daniel e outras lideranças celebram os novos ventos, mas não esquecem que é tempo de cobrança ainda, “para que a gente possa avançar e conquistar as nossas reivindicações”. Ou seja, a demarcação de terras e o fim da guerra para fazer valer o direito dessa terra, pois há muitos casos em que nem a demarcação faz cessar o avanço sobre as comunidades originárias. Novamente, o relatório do Cimi revela em números histórias o tamanho dessa guerra:

(...) pelo sexto ano consecutivo, dos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país. No ano anterior, 263 casos de invasão haviam afetado 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos em 2021 é quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos do tipo. 
(...)
O relatório registrou aumento em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas pela publicação em relação ao ano anterior, e uma quantidade enorme de vidas indígenas interrompidas. Foram registrados 176 assassinatos de indígenas (...)

 

Acesse a íntegra do Relatório (Foto: Giulianne Martins | ComTxae)

 Degradação ambiental, ataque ao planeta, ataque aos indígenas

A violência em torno das terras indígenas, demarcadas ou não, é talvez a face mais aguda de um conflito que tem várias frentes. É por isso que o novo Ministério dos Povos Originários tem essa questão como prioridade número 1. “A demarcação das terras indígenas, o enfrentamento ao garimpo ilegal nesses territórios e a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato serão questões cruciais a serem encaradas”, destacou Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério, em entrevista concedida ao IHU em janeiro desse ano.

Só que essa não é única forma de destituição dos modos de vida originários. Há décadas o Estado brasileiro, mesmo já sob a chamada Nova República, vem sufocando os indígenas. Isso tanto nos desmontes, semelhantes ao que vimos recentemente, como também no não entendimento desse modo de vida, que passa um pouco pela dificuldade sempre vivida na relação com o governo, apontada na reunião dessa semana por Daniel Kaiowá. Ou seja, ainda em novo de desenvolvimentismo, o desejo de produzir mais e mais em nome de um tal progresso, o Estado atropela e dizima populações inteiras.

E sabe o que é mais terrível nisso tudo? A forma silenciosa que vai orquestrando isso, como se fosse apertando a glote de comunidades inteiras bem devagar, com muito sofrimento, até que desapareçam da face da terra. O exemplo mais clássico disso é a construção da Usina de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no norte do Pará. Este empreendimento é bancado pelo governo que parecia não entender o que os indígenas alertavam e falavam. “Belo Monte quebrou a resistência dos povos indígenas”, disse o biólogo Rodolfo Salm, que atua junto a comunidades do Pará, em entrevista concedida ao IHU no início de abril.

 Salm recorda que desde a construção da Usina, os modos de vida da comunidade foram alterados. De um lado, destruição, poluição de rios, realocação de gente e inviabilidade de subsistência. De outro, álcool, abusos sexuais e outras chagas de uma população não indígena doente que são impostas também aos indígenas. “Belo Monte está vencendo essa resistência e ninguém garante que, num próximo governo, seja levado adiante o plano original de construir uma série de barragens no rio Xingu, que funcionariam como grandes caixas d’água. O problema desse plano é que, ao construir hidrelétricas ao longo do rio Xingu, são causadas perturbações ecológicas que vão gerar imensos desmatamentos e terminarão por diminuir a quantidade de água que passa pelo rio Xingu. No final, não vai ter nem floresta nem rio nem geração de energia”, afirmou. 

O mais emblemático é que os alertas foram vários. Além disso, mais do que denunciar a ameaça às próprias vidas, os indígenas vêm há muito tempo bradando a ameaça ao planeta. “Não estamos falando só dos povos indígenas, mas sim de toda humanidade. Precisamos construir um meio ambiente e clima pra toda população”, disse Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas – Apib, em reportagem reproduzida pelo IHU. A entidade está à frente do Acampamento Terra Livre – ATL, que tradicionalmente, em abril, ocupa Brasília para chamar atenção aos ataques a indígenas.

Povos indígenas ocuparam Brasília durante dez dias no ATL 2022.
(Foto: Daniela Huberty | COMIN)

Nesse ano, mais do que marcar suas lutas pela demarcação de terras e pelo fim dos conflitos, os indígenas querem também pautar o debate sobre a emergência climática mundial. A programação do evento acontece entre os dias 24 e 28 de abril em Brasília. Segundo Kleber Karipuna, durante o acampamento será realizada uma “plenária específica sobre a pauta temática. Os povos indígenas vão estar decretando emergência climática global por conta de tudo que está acontecendo. Os povos indígenas estão trazendo alertas sobre a situação insustentável do planeta há anos”.

 

 A comunidade científica e uma outra luz

Se o iluminismo europeu dos séculos XVII e XVIII chegou na América com ideia moderna de que só à luz da ciência se poderia compreender o mundo, varrendo do mapa qualquer saber originário ancestral, a emergência climática – aliás, causada pela mesma sociedade ocidental antropocêntrica que pregou o avanço e desenvolvimento acima de tudo e todos – parece estar fazendo os ventos mudarem. Hoje, a própria comunidade científica tem dito que é preciso escutar e aprender com aqueles que mais viveram e que mais sabem sobre a floresta. “[As comunidades indígenas] nos alertam contra os riscos das mudanças climáticas. Temos de dar todo o apoio técnico e financeiro para a proteção desses povos e, também, ampliar mecanismos que alcancem diretamente as organizações”, propõe Carlos Nobre.

 

Ele, que é referência mundial no estudo das mudanças climáticas, tem defendido a demarcação de terras indígenas. Para ele, isso passa pela proteção destas populações, pela conservação e multiplicação de seus saberes, passa por aprendermos com eles. Mas, agora, no caos climática em que estamos mergulhados, demarcar terras indígenas é uma arma contra o aquecimento global. “Os povos indígenas protegem de 10% a 20% de todo o estoque global de carbono na Amazônia. Funcionam como grande barreira ao desmatamento e à degradação da floresta. Nós temos de tomar o conhecimento dos indígenas e comunidades locais como vozes politicamente muito avançadas e poderosas”, disse Carlos Nobre, em reportagem reproduzida pelo IHU.

A diferença do alerta de Nobre e de outros é que, diante da emergência climática que temos vivido, o apelo parece estar tendo eco. Afinal, esse apelo já existe e vem sendo bradado há tempo por pessoas como o antropólogo e historiador Antonio Brand, falecido em 07-07-2012. Presença frequente no IHU, Brand, de fala tranquila, nascido em 1949 no hoje município de São José do Sul, região do Vale do Caí, no Rio Grande do Sul, foi uma voz potente no indigenismo brasileiro.

 

“Nós estamos numa sociedade em que a propriedade da terra é o que garante prestígio. As elites estão muito apegadas à propriedade da terra, mas também há a questão dos povos indígenas, enquanto povos diferentes cada vez mais insistem em afirmar a sua diferença. Então, certamente, este aspecto do problema aparece claramente na afirmação recorrente de que a demarcação de terras indígenas poria em risco a segurança das fronteiras e a integridade do país”, disse Brand, em entrevista à revista IHU On-Line em março de 2009, numa afirmação que poderia ter muito feita ontem.

Guarani Kaiowá, a resistência viva

Antonio Brand dedicou sua vida à luta dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, onde esteve por cerca de trinta anos. A luta desse povo é uma das muitas batalhas travadas pelos povos indígenas. “São postos à margem dos processos de desenvolvimento que se implantam em cada país, sendo considerados apenas enquanto eventual mão-de-obra e/ou estorvo a ser eliminado pelas mesmas frentes de expansão”, apontou em entrevista ao IHU em 2010. Foi em 2010 e sobre os Guarani Kaiowá, mas poderia ter sido hoje e sobre qualquer outro povo originário.

Na época, nessa mesma entrevista, refletindo sobre a ideia de fronteira, o entrevistado mostrou como esse simples traçado destitui, desestabiliza e divide as nações de povos originários. “A identidade guarani remete, diretamente, para a ideia de pertencimento e para as relações de parentesco. Daí a importância da concepção de território como espaço de comunicação, com as suas marcas referidas e atualizadas pela memória”. É por isso que as fronteiras nacionais representam um problema para os guarani, pois “dificultam essa comunicação”. Mas, como todos os povos, eles seguem resistindo. Afinal, são muitos os conflitos ainda sobre essa etnia, como o caso da Fazenda do Inho, com mais um capítulo agora em março. “Eles seguem com noções e conceitos próprios de fronteira, uma ideia mais sociológica e ideológica, que inclui, exclui e define quem pertence e quem não pertence à determinada coletividade”, conclui Brand.

Lideranças Guarani Kaiowá em protesto no ano passado  (Foto: Katie Mahler/Apib)

Em 2008, Brand já previa:

“Há um largo caminho a ser percorrido para que possamos falar em respeito à diferença e em interculturalidade, pois não há como falar em respeito à diferença enquanto seguimos atropelando os direitos indígenas, em especial o direito à terra”.

Então, nesse 19 de abril de 2023, que possamos realmente entender as diferenças, e principalmente aprender com elas. Descobrir com a experiência ancestral o que é resistir, como o antropólogo Orlando Calheiros descobriu, pode ser a chave para aprendermos como eles como atravessar esse desequilíbrio climática e, quem sabe, em nós resistindo e sobrevivendo, possamos reescrever o curso da história, agora com uma narrativa que não fale só em desenvolvimento e civilização, mas em coexistências de todas as formas de vida da Terra".

Leia algumas ideias de Antonio Brand em textos e entrevistas publicados pelo IHU

Acesse as edições da revista IHU On-Line sobre as questões indígenas

Cadernos IHU ideias sobre questões indígenas

 Assista conferências realizadas pelo IHU sobre a temática indígena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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