17 Abril 2023
Após quatro anos de um governo anti-indígena, os povos originários voltam a ser recebidos em órgãos do Estado; a demarcação das terras e o marco temporal estão entre as pautas principais.
A reportagem é de Maiara Dourado, publicado por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 10-04-2023.
Povos do Mato Grosso do Sul pedem demarcação de suas terras. (Foto: Maiara Dourado | Cimi)
No último mês, mais de 20 povos oriundos de sete estados do país marcaram presença em Brasília a fim de pautar a demarcação de suas terras e a retomada do julgamento do marco temporal. Entre os dias 20 e 31 de março, cerca de 200 representantes indígenas, organizados em delegações, percorreram ministérios, secretarias e órgãos do governo federal na busca por respostas e resolução quanto ao processo de regularização fundiária de suas terras.
Os motivos que os levaram a se deslocar até a capital federal não eram muito diferentes dos que os conduziram quatro anos atrás no governo do, então, presidente Jair Bolsonaro. Contudo, o clima, sem dúvida, era outro. As rezas, os cantos e as danças, realizadas nos momentos que antecediam as reuniões com integrantes do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), davam o tom celebrativo dos encontros. O sentimento era de estar em casa, pois “quando nós chegamos aqui hoje, foi assim que o pessoal se sentiu”, explicou Daniel Yudja Juruna, cacique da Terra Indígena (TI) Kapôt Ninhôre, localizada no estado de Mato Grosso, na região do médio Araguaia e do médio Xingu.
“Novamente, a Funai é nossa casa. Por isso, o pessoal dançou. Esse é o momento que nós entendemos de nossa esperança, de nossa alegria”, explica a liderança.
Um sentimento que insurge diante de uma Funai presidida, pela primeira vez, por uma mulher indígena e pela criação de um ministério composto por pessoas que conhecem, concretamente, a realidade desses povos, que são “parentes”, como assim se referem os indígenas entre si.“Hoje temos nossos parentes no comando e esperamos que sejam mais sensíveis com a nossa luta, pois conhecem a realidade dos povos indígenas do Brasil”, afirma, confiante, o povo Kinikinau em carta entregue à Funai. Os Kinikinau, povo indígena do Mato Grosso do Sul, estão há mais de um século sem território e lutam pela criação do Grupo de Trabalho (GT) de identificação e delimitação de suas terras, a primeira etapa das sete que cumprem o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas.
O longo tempo de espera e a histórica falta de providências dos governos anteriores no que concerne a demarcação de territórios tradicionais indígenas parece não obliterar o tempo de esperança que se apresenta a esses povos.
“A gente realmente está satisfeito, porque naquele tempo, seis anos atrás, quatro anos atrás, a gente tinha que enfrentar o não indígena que não entendia a ideologia do indígena, o porquê de estarmos aqui”, celebra Daniel Kaiowá, liderança e conselheiro da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, em audiência com a ministra Sônia Guajajara e com a presidenta da Funai, Joenia Wapichana.
“Hoje isso mudou graças ao nosso movimento indígena, não somente Guarani Kaiowá, mas dos indígenas brasileiros. Chegamos aqui com vocês ocupando esse espaço”, continua.
Para Daniel Kaiowá, o momento é de celebração, mas também de cobrança, “para que a gente possa avançar e conquistar as nossas reivindicações”, lembra a liderança.Para esses povos, o “pensamento maior é o território […]. Nós queremos resposta, queremos que aconteça [a demarcação]”, demanda Daniel Yudja Juruna.
Em muitos casos, a demarcação das terras indígenas significa o fim de uma série de ataques e violências que incorrem contra esses povos, em sua maioria, afetados por conflitos territoriais com fazendeiros, madeireiros, empreendimentos imobiliários, de garimpo e do turismo. “A gente gostaria muito que tivesse um olhar de fato específico para isso [demarcação das terras], porque o teor de violência naquela região [sul da Bahia] vai aumentar, não vai diminuir”, explica Ramon Tupinambá, cacique da aldeia Tukum, da TI Tupinambá de Olivença.
Como dito pelas lideranças da Aty Guasu, em carta entregue à Funai, o peso da esperança dos povos indígenas depositado sobre os ombros dessas instituições é grande, mas se dá na mesma medida do peso da violência por eles vivida.
Apesar da diversidade de temas e desafios que levam os povos indígenas a comparecer em reuniões com órgãos governamentais e instituições indigenistas em Brasília, a luta pela terra os colocam diante de um objetivo comum: a busca pelo andamento e pela celeridade dos processos de demarcação de seus territórios, em sua maioria, travados em alguma etapa do rito administrativo.
Nessa agenda comum, indígenas de Santa Catarina, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bahia, Alagoas e Sergipe, em audiências próprias com o MPI e com a Funai, questionaram o procedimento de demarcação de mais 80 terras indígenas. Em muitas reuniões, a ministra dos povos indígenas, Sônia Guajajara, e a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, apresentou sinalizações importantes quanto a definição dos processos de demarcação, como o indicativo de abertura de 8 GTs para identificação e delimitação de terras indígenas e a emissão de 25 portarias declaratórias.
Com o novo governo, a responsabilidade da publicação e assinatura da portaria que declara os limites das terras indígenas e marca o início do processo de demarcação passa a ser assumida pelo MPI, antes uma atribuição do Ministério da Justiça (MJ).
“A Funai não está parada”, esclarece Joenia Wapichana. “Eu peço a vocês uma credibilidade de tempo […], nem sempre eu vou dar resposta rápida, muita coisa precisa ser atualizada. Não vamos confirmar coisa errada. Muitos pareceres foram contra os povos indígenas”, explica a presidenta ao informar que todos os processos de demarcação estão sendo revisados pela atual gestão da instituição, que nos últimos quatro anos, no governo de Jair Bolsonaro, teve uma atuação anti-indígena. As demandas e as expectativas se intensificam à medida que o governo adentra o mês de abril, data que celebra a luta e a vida dos povos indígenas no Brasil – uma vez que muitos dos anúncios feitos pelo MPI e pela Funai, no que se refere ao andamento dos processos de demarcação das terras indígenas, devem se efetivar nesse período.
Em um levantamento feito pela reportagem, dos 80 processos de demarcação que grupos indígenas pediram providência, em Brasília, mais da metade está com os Grupos de Trabalho (GTs) de identificação e delimitação parados. Outras dez terras não contam nem com a criação de GT, e pelo menos 17 aguardam a emissão das portarias declaratórias.
Das 12 TIs que aguardam homologação, somente três estão na lista das 13 terras indígenas apresentadas pelo governo ainda em sua fase de transição. Dentre elas, a Terra Indígena Xukuru-Kariri, do mesmo povo; a TI Kariri-Xocó de povo homônimo e a TI Cacique Fontoura, do povo Karajá. Além dessas, há ainda duas terras indígenas demarcadas aguardando providências para desintrusão de invasores (a TI Kadiweu e a TI Karipuna, do povo Kadiweu e Karipuna respectivamente); duas TIs que foram homologadas, mas que tiveram seus processos anulados (TI Limão Verde, do povo Terena, e TI Nhanderu Marangatu, dos Guarani e Kaiowá); outra que foi declarada e depois anulada (TI Guyraroka, dos Guarani e Kaiowá) e uma terceira que foi questionada judicialmente usando como base jurídica a tese do marco temporal (TI Buriti, do povo Terena).
Além dessas, seis reservas indígenas do Mato Grosso do Sul, do povo Guarani Kaiowá aguardam o início de procedimento para revisão de limites de suas terras. Apesar dos esforços despendidos pelo MPI e pela Funai, ainda há um longo caminho a percorrer para que seja alcançada a demarcação de todas as terras indígenas no Brasil. De acordo com o relatório Violência contra Povos Indígenas no Brasil –dados de 2021, existem 1393 terras indígenas no país, das quais 598 encontram-se sem nenhuma providência administrativa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Novo governo, mesmas demandas: povos indígenas seguem reivindicando direitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU