22 Dezembro 2022
A Terra Indígena (TI) Tanaru, onde se isolou, morou e morreu o “Índio do Buraco”, está sob ataque. Na semana passada, o Ministério Público Federal (MPF) notificou fazendeiros vizinhos da TI para que não entrem nela. As notificações, entregues em mãos, foram uma nova tentativa para impedir o ingresso de pessoas no território, como vem ocorrendo desde que o indígena foi encontrado morto. E na Justiça, em outra frente, pecuaristas que afirmam ter antigos títulos de propriedade na TI, afetados juridicamente pela criação da área de proteção, já entraram com uma petição de retomada das terras.
A reportagem é de Josi Gonçalves, publicada por Amazônia Real, 20-12-2022.
Oito proprietários rurais requerem agora parte da Terra Indígena Tanaru, sendo seis de São Paulo e dois de Rondônia. São eles: Edson Ribeiro de Mendonça Neto (médico veterinário); Fernanda Louro Ribeiro de Mendonça (psicóloga); Helena Louro Ribeiro de Mendonça (advogada), moradores de Barretos (SP); Rodrigo Maia Jacinto, de São Paulo (SP); os irmãos Porthos Pádua Maia e Garon Maia (pecuaristas), ambos de Araçatuba (SP); Iolanda de Andrade Bertholasce, de Cacoal (RO), e Gutemberg Ermita, de Pimenta Bueno (RO).
Os oito ruralistas aguardaram apenas dois meses após a morte do Tanaru e antes mesmo dele ser sepultado para ingressar com a petição junto à Fundação Nacional do Índio (Funai), em outubro. A Amazônia Real só obteve a lista por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto ao órgão indigenista, desmontada sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL). Garon Maia, um dos que entraram com o pedido, morreu em decorrência de um câncer três dias após seu advogado ingressar com a petição na Funai.
A conselheira do Conselho Indigenista Missionário de Rondônia (Cimi) de Rondônia, Verginia Miranda de Souza, é categórica em recusar essa solução proposta pelos pecuaristas: “Todos os povos daquela região têm conhecimento dessa terra, e não aceitam que ela seja entregue aos fazendeiros da região, os próprios assassinos desse povo. A ideia é lutar para que esse espaço sagrado do ‘Índio do Buraco’ seja demarcado como território de resistência ou terra indígena”. Segundo a conselheira, o movimento indígena organizou, recentemente, um encontro com entidades, MPF e indígenas da região da TI Tanaru para discutir o destino desse território.
Purá Kanoê no enterro do indígena Tanaru. (Foto: Reprodução redes sociais)
Cercada por cinco fazendas com áreas desmatadas para a pecuária e plantação de grãos, a Terra Indígena Tanaru sempre foi alvo de ameaças de invasão por grileiros e fazendeiros. Mas as intimidações só cresceram depois que o último Tanaru foi encontrado morto em 23 de agosto deste ano, após resistir por quase três décadas aos prenúncios de extinção. Localizada no Cone Sul de Rondônia, a TI Tanaru tem 8.070 hectares e fica entre os municípios de Chupinguaia, Corumbiara, Parecbis e Pimenteiras do Oeste.
Terra indígena Tanaru (com borda azul), onde vivia o 'índio do buraco', é uma ilha de floresta entre fazendas. A reserva ainda está em estágio inicial de demarcação e fica localizada em Rondônia. (Foto: Sipam/Divulgação)
O território tem interdição de restrição de uso e ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai, por meio da Portaria nº 1.040, de 27/10/2015, pelo prazo de dez anos a contar de sua publicação. Ou seja, é válida até 2025. Mas por não ser homologado, o território está sob ameaça de invasões e ataques.
“Invasores podem responder pelos crimes de dano qualificado, dano em coisa de valor arqueológico e histórico e vilipêndio a cadáver. Na área está a maloca em que o Índio do Buraco foi sepultado e outros locais sagrados, além de sítios de valor histórico, cultural e ambiental”, informa o MPF, em nota divulgada à imprensa. Nas notificações enviadas aos donos de propriedades no entorno da TI Tanaru, o órgão federal alerta que medidas judiciais poderão ser adotadas para responsabilizar quem ingressar no local sem autorização. O MPF não forneceu à reportagem os nomes dos proprietários vizinhos alegando sigilo do processo.
Em resposta à Amazônia Real, a Funai limitou-se a informar que, “por meio da Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, mantém atividades rotineiras de vigilância e monitoramento da TI Tanaru, levando os indícios e materialidades de eventuais invasões e crimes ambientais ocorridos na área protegida para o conhecimento e providência dos órgãos competentes”.
O advogado Sandro Ricardo Salonski Martins, que defende os oito ruralistas, pede a revogação da Portaria nº 1.040 sob a argumentação de que a restrição do uso ocorreu somente para garantir o usufruto da posse e das riquezas da área para subsistência e proteção ao último sobrevivente do povo Tanaru. “Logo, a sua morte faz desaparecer o usufruto e a afetação da área, devendo a posse retornar para os particulares titulares da posse ou domínio anteriormente à afetação e a restrição do uso”, diz trecho da petição.
Tanaru em imagem da Frente Etnoambiental da Funai, em 2011.
O MPF tem um posicionamento contrário ao dos fazendeiros e afirma que “o território em questão é ancestral indígena, com comprovada ocupação tradicional de indígenas e do próprio índio do buraco. Assim, pelo artigo 231 da Constituição, é terra da União e deve ter função socioambiental com protagonismo indígena no seu uso”.
Sobre a notificação do MPF, o advogado Salonski disse que os fazendeiros confirmam que conhecem e obedecem os termos da Portaria 1.040, informou que não houve conflitos entre os clientes que defende, a Funai e o indígena Tanaru e que, desde a criação do Território, os fazendeiros que reclamam a posse da TI Tanaru “nunca tiveram qualquer reclamação de descumprimento dos seus termos e limites, inclusive sempre auxiliaram a Funai no que diz respeito à proteção da referida área, bem como a preservação do meio ambiente local”.
Em nota, Salonski argumenta que a área não é tradicionalmente indígena e complementa que seus clientes, a quem ele se refere como proprietários da terra, querem destacar um pedaço da TI Tanaru, “suficiente para a preservação da memória do Índio do Buraco e de seu povo, transformando-a em Memorial”.
Os fazendeiros decidiram oferecer “em doação para Funai, sem qualquer custo para União, um perímetro no entorno da palhoça onde foram localizados todos os vestígios de contato do ‘Índio do Buraco’”. De acordo com o advogado, eles já realizaram um mapeamento, a partir da coleta dos pontos feitos in loco pela Funai, nos locais onde foram encontrados os artefatos, utensílios e objetos do último Tanaru.
Para a indigenista Verginia Miranda de Souza, no entanto, demarcar esse território é agora um dever do Estado. “Em reconhecimento pela resistência do indígena que, em si, simboliza a resistência de todos os povos isolados. Como Terra Indígena é uma categoria de área protegida, o reconhecimento merecido à resistência desse indígena anônimo, de um povo desconhecido, símbolo da resistência de todos os povos em isolamento voluntário, é necessário alterar a categoria de Terra Indígena para Terra Memorial Indígena Permanente, ou alguma denominação equivalente, até mesmo com a criação de uma nova categoria para área protegida”.
Massacre na Gleba Corumbiara, em 1995. (Foto: Eliseu Rafael de Sousa)
Verginia Miranda de Souza, do Cimi, enfatiza que ataques ao povo Tanaru remontam há longas datas. “Essa terra tem seu histórico de invasões e massacres registrados em documentos oficiais desde 1973, quando o Incra iniciou o trabalho de colonização do vale do rio Corumbiara, no sul de Rondônia, já se sabia da existência de diferentes povos indígenas não contatados ou isolados na região.”
Indigenistas da Funai, que faziam parte da Frente de Contato Guaporé, hoje Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, insistiram na identificação dos povos isolados dessa região localizada no sul de Rondônia para demarcar as terras, conforme relataram moradores da região.
“Ao longo dos anos 1970 e 1980, foram dezenas de relatos de massacres e fugas, enquanto avançavam o desmatamento e a abertura de fazendas. Em 1986, diversos relatos sobre massacres de isolados em Rondônia, sem contato com a nossa sociedade, começaram a se espalhar. Os assassinatos teriam começado com a grilagem de terras públicas e com as concessões de terras a fazendeiros na época do regime militar. Soma-se a isso a construção da estrada do sul do estado, ainda durante os anos 1970 que foi abrindo as porteiras para as invasões de terras indígenas”, informa a conselheira do Cimi, em Rondônia.
Verginia ainda pontua que um dos responsáveis por abrir a porteira para a exploração predatória na região foi o ex-senador Romero Jucá, na época presidente da Funai (1986-1988). “Ele suspendeu as restrições que protegiam os territórios da gleba Corumbiara e distribuiu a terra onde os indígenas viviam a fazendeiros e madeireiros. Essa suspensão de restrições da proteção fez avançar os massacres, o extermínio, e as expulsões de povos indígenas de seus territórios”, lembra.
O patriarca dos Maia, Braulino Basílio Maia, o Garon Maia, em foto de arquivo.
Na lista dos oito ruralistas que reivindicam parte da TI Tanaru, estão os herdeiros de Braulino Basílio Maia Filho, mais conhecido como Garon Maia. O pecuarista, morto em 2019, foi responsável pela abertura de mais de 50 fazendas no País, inclusive em Rondônia, e é celebrado pelo agronegócio como uma “lenda” da pecuária brasileira. Seus filhos Garon Maia, que herdou o nome do pai e faleceu no último 24 de outubro, e Porthos Pádua Maia querem tomar posse da TI do “Índio do Buraco”.
Só no Cone Sul de Rondônia, a família Maia possui três grandes propriedades destinadas à criação de gado e a lavouras de soja, milho e arroz, que somam 42,5 mil hectares. Parte dessas propriedades é vizinha justamente da TI Tanaru, cuja posse está sendo reivindicada pelos pecuaristas para se somar aos milhares de hectares que a família já detém.
Garon Maia, o pai, foi um dos maiores criadores de gado de corte do Brasil, cujos negócios são controlados hoje por uma holding familiar. Foi um dos pioneiros na região sul de Rondônia, chegou na década de 1980. Em 1995, meses após o massacre de Corumbiara, que aconteceu na fazenda Santa Elina, o latifundiário era dono na época da fazenda Guarajus e fez um acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para assentar 115 famílias, 57 delas sobreviventes do massacre, em parte de suas terras, que seriam negociadas posteriormente com o órgão.
Segundo relata a geógrafa Helena Angélica de Mesquita em 2001, em tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), “no ano de 2000, os assentados receberam a documentação da área. A parte que era terra devoluta foi feita arrecadação sumária e a outra foi adquirida do fazendeiro Garon Maia em processo de compra e venda”.
O problema é que o Projeto de Assentamento (PA) Guarajus, mas chamado pelos assentados de Nova Vanessa, em homenagem a uma criança assassinada no massacre, era um latifúndio improdutivo, com solos inaproveitáveis para qualquer tipo de cultivo, conforme consta na tese da geógrafa, que relata: “Quando o fazendeiro “cedeu” a área para o Incra já tinha retirado toda a madeira nobre das matas”.
Norberto Ribeiro Mendonça, falecido em março de 2016.(Reprodução redes sociais)
Parte integrante da petição que reivindica uma área da TI Tanaru, a família Mendonça também ingressou na região de Corumbiara, motivada pelo governo federal que, por meio do Incra, incentivou a implantação e implementação da pecuária no estado, conta Helena Mesquita, em sua tese.
Segundo a pesquisadora, em 1976 a região foi escolhida e dividida em lotes que atenderiam aos objetivos de um plano de reforma agrária. A Empresa Expansão foi a responsável pela demarcação dos grandes lotes. Muitas dessas terras foram destinadas à mesma família. Conforme revela a geógrafa, Edson Ribeiro Mendonça Neto e irmãos foram agraciados com cinco lotes; o próprio Edson Ribeiro Mendonça, com dois lotes; e Norberto Ribeiro Mendonça Neto, com cinco lotes. No total, a família Mendonça teve direito a 12 lotes de 2 mil hectares, o que equivale a três vezes o tamanho da TI Tanaru.
“É questionável o sentido desta “reforma agrária” pensada pelo Incra, “reforma” naquelas terras que eram ocupadas por índios e posseiros. A gleba Corumbiara é, hoje, área de grandes propriedades”, afirma a geógrafa em sua tese.
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Oito ruralistas querem a terra do “índio do buraco” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU