25 Abril 2019
Descendentes de escravos têm direitos limitados por empresas que compraram as terras anteriormente. Alguns casos parecem irregulares.
A reportagem é de Nicollas Witzel, publicada por Época, 21-04-2019.
Não se sabe ao certo quantos quilombolas existem, hoje, no Brasil. Segundo um levantamento da Fundação Cultural Palmares, são 3.524 grupos remanescentes. Desses, só 154 foram titulados — fase final do processo de reconhecimento e proteção de quilombolas no Brasil. Pelos dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), outros 1.700 grupos estão aguardando a conclusão dos estudos antropológicos ou a emissão de laudos técnicos para conquistar um título. Segundo os próprios quilombolas, todos esses números estão nivelados por baixo.
Originalmente, os quilombos foram regiões de grande concentração de escravos escondidos nas matas e montanhas do Brasil colonial. O isolamento foi parte da estratégia que garantiu a sobrevivência naquela época, mas também tornou difícil reunir informações precisas sobre as comunidades de hoje. Por isso é que são desconhecidos dados básicos, como o total de integrantes, números de natalidade e óbito e demais condições demográficas dos quilombolas, algo que deve mudar a partir de 2020, quando serão incluídos no censo do IBGE pela primeira vez.
As palavras “quilombo” e “quilombola” hoje estão associadas a um povo que teria desaparecido com o fim da escravidão. O que hoje se chama de “comunidade remanescente de quilombo” são agrupamentos que herdaram as principais características desses espaços, formados por netos e bisnetos de escravos. E, se no tempo de colônia os quilombolas enfrentavam senhores de engenho, escravocratas, racistas de toda sorte e seus caçadores de aluguel, hoje os inimigos são as grandes corporações da construção civil, que esbarram em proteção legal ao tentar construir condomínios e resorts em áreas tituladas — e, portanto, protegidas pelo Decreto 4887/2003.
A relação conturbada das lideranças quilombolas com os interesses imobiliários já rendeu episódios que extrapolaram a disputa judicial, escalando para ameaças, agressões e até homicídios. Em Pitanga dos Palmares, na Região Metropolitana de Salvador, o líder comunitário Flavio Gabriel Pacífico, o Binho do Quilombo, foi morto com dez tiros numa emboscada. A investigação está em aberto, mas já indica que a motivação do crime teria sido a disputa pelo controle de terras. No Pará, Paulo Sérgio Almeida Nascimento foi executado dentro de sua casa, depois de o Ministério Público ter alertado que a associação quilombola da qual ele fazia parte estava recebendo ameaças de policiais. O MP pediu proteção aos integrantes do grupo, mas a Secretaria de Segurança Pública do Pará negou.
O ano de 2017 foi o mais violento da última década, com 113 ocorrências. Foram 29 casos de ameaça ou perseguição, seguidos por 22 ocorrências de perda ou possibilidade de perda de território por invasão e, finalmente, 18 assassinados consumados. Num corte de dez anos, o número assusta ainda mais: entre o início de 2008 e o fim 2017, 32 homens e seis mulheres foram assassinados. A Região Nordeste foi a mais recorrente, com 49% dos casos. Bahia e Pará foram os estados mais violentos, seguidos por Minas Gerais, Rio de Janeiro e Piauí. Dados da Conaq revelam que o meio mais empregado nos assassinatos foi a arma de fogo (68,4%), seguido de objetos perfurocortantes, como facas (13,2%). Pelo menos 66% das mulheres quilombolas nessa estatística foram mortas com uso de arma branca ou métodos de tortura. Em homens, esse número ficou em 21%. A lista de abusos relatados pelas lideranças é longa, com várias citações a cortes ilegais de energia e demolição arbitrária de casas e locais de congregação.
Em julho de 2016, no sul do Rio de Janeiro, o quilombo Santa Justina esperava a chegada de sua mais nova integrante, Raiane, que acabara de completar os 9 meses na barriga da mãe. Simone da Conceição Marques e o marido, Edevaldo, moram em uma casa pequena cercada pela mata de Mangaratiba, no perímetro de uma enorme fazenda que também se chama Santa Justina. Em processo de titulação pelo Incra, a propriedade foi comprada em 2011 pela Ecoinvest Desenvolvimento Empresarial Ltda, que atua na construção civil. No apagar das luzes de 2017, a prefeitura de Mangaratiba aprovou em regime de urgência uma reestruturação do Plano Diretor municipal, levantando suspeitas pela rapidez com que o projeto passou pela Câmara dos Vereadores. Com isso, o prefeito Aarão de Moura Brito Neto transformou vários trechos de conservação ambiental em “área de expansão urbana”, abrindo brechas para loteamentos residenciais e comerciais em áreas que, até então, eram protegidas. Amata da Santa Justina foi uma delas. Na sequência da aprovação, um maquinário pesado foi deslocado para as porteiras da fazenda.
A empresa entrou com tratores e escavadeiras, derrubou árvores, abriu valas para drenar os córregos e contratou uma equipe de segurança particular. Esses homens, armados, passaram a circular por todo o território e instalaram guaritas nos acessos. Entradas alternativas foram fechadas com pedras, colocadas na estrada de forma que impedissem a passagem de qualquer tipo de veículo. De lá para cá, os quilombolas são obrigados a escoar toda a sua produção pela porteira com a guarita, onde são coagidos a pagar pedágio com uma porcentagem do lucro do dia. A comunidade protestou, querendo livre trânsito até suas casas, e abriu vários processos na Justiça.
A instalação dos postos de segurança foi o primeiro episódio num longo histórico de arbitrariedades da Ecoinvest sobre os quilombolas da Santa Justina. Um dos casos de maior repercussão aconteceu no dia 21 de julho de 2016, dia do parto de Simone, depois que a família ligou para a emergência mais próxima pedindo por uma ambulância — ela já entrava em trabalho de parto. Quando a viatura chegou na cancela da fazenda, os seguranças não deram passagem e disseram que a gestante “deveria ter avisado antes” sobre a emergência. Ela caminhou por pelo menos 30 minutos por dentro de uma mata fechada até o ponto de encontro onde os socorristas foram autorizados a buscá-la. “Quando chegamos no hospital, eles não me aceitaram. Disseram que não tinha vaga na internação, que não tinham leitos e que era para eu procurar outro lugar”, relembra Simone. “Fomos a outro hospital e a doutora disse: o seu neném vai nascer agora, mas já está passado.” A criança nasceu com complicações (“roxa”, como descreveu a mãe), mas conseguiu se recuperar. “Antes disso, eu já tinha perdido uma filha porque não deixaram instalar luz na minha casa. Ela precisava de um remédio que só podia ser guardado na geladeira, e não conseguimos autorização.”
Depois da chegada da Ecoinvest, muito se discutiu sobre qual seria o empreendimento levantado na Santa Justina. O melhor palpite era um projeto imobiliário, que a empresa, nos autos dos inúmeros processos movidos pelos quilombolas, não confirmou nem negou. Em 2016 o negócio chegou a ser anunciado na internet, e a Ecoinvest falava de um “projeto habitacional que compreenderia acima de 10 mil unidades entre terrenos, apartamentos, casas e áreas comerciais, inclusive hotel”. O site da empresa, hoje fora do ar, informava ainda que a construção de um primeiro módulo, de 500 mil metros quadrados, já havia sido pré-aprovada pela prefeitura de Mangaratiba. Pouco depois, um anúncio colocou a propriedade à venda, destacando a fartura de cachoeiras e nascentes, proximidade com o porto de Itaguaí e diversas redes de hotéis de luxo, entre elas o Hotel Portobello, onde o ex-governador Sérgio Cabral fazia vizinhança com Neymar e outros milionários da política. O vendedor anunciava “um terreno ideal para complexos industriais, condomínios de alto nível e campos de golfe”.
Naquele mesmo ano, por iniciativa do Incra, parte da fazenda entrou em processo de desapropriação em favor da comunidade. Enquanto isso, tanto a prefeitura quanto a Ecoinvest foram notificadas pela Defensoria Pública de que deveriam conservar a área como estava até que o estudo do caso fosse concluído. Mal fiscalizado, o decreto não impediu a derrubada de muitos hectares de vegetação. Numa fotografia aérea, é possível observar o efeito devastador das máquinas, que já abriram uma enorme clareira na Mata Atlântica que, antes, cobria todo o território.
“A gente está lutando para que o Incra conclua de uma vez o estudo antropológico. Tem uma influência política tentando nos enfraquecer. Como é que essa terra pôde ser vendida? Todas as partes foram notificadas de que não poderiam fazer nada aqui até o final do estudo, mas mesmo assim entraram com as máquinas. Como eles têm dinheiro, preferem pagar a multa do que cumprir a decisão. Entraram no Rio Capivara, abriram valas, destruiram locais de desova de peixe, derrubaram árvores e tentaram aterrar o mangue”, diz Vicente Victor da Conceição, presidente da associação quilombola Santa Justina/Santa Isabel.
A maioria das 57 famílias do quilombo está desconectada do fornecimento de luz e água, já que as concessionárias não foram autorizadas a entrar. Fiscais do IBGE, do Incra e da Companhia Estadual de Águas e Esgoto (Cedae) também já foram impedidos de acessar o quilombo por ordem da Ecoinvest. Uma distribuidora de energia tentou incluir os moradores no Luz para Todos, programa social do governo federal para abastecer regiões rurais e de difícil acesso, mas ficou barrada como todas as outras. Materiais de construção também não passam, mesmo que no carro de um morador, impossibilitando qualquer tipo de obra ou reparo nas casas. Em maio de 2018, até o secretário nacional de Politicas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério dos Direitos Humanos, Juvenal Araújo, que saiu de Brasília para visitar a comunidade, também acabou retido na porteira. Os próprios moradores e seus convidados têm nomes e horário de entrada registrados toda vez que chegam ou saem. A pesca no manguezal, que complementava a renda familiar, passou a ser reprimida. Eventos religiosos só podem ser realizados quando protegidos por decisão judicial que proíba a empresa de interferir.
Quando Época visitou o local, acompanhada pelo advogado do quilombo, o doutor Ivan Braga, um segurança de plantão tentou impedir a passagem dos dois carros. Depois de bater boca com o advogado, aproximou-se da reportagem. Tentando enxergar o interior do carro, ele anotou o nome de todos e fez algumas ligações. Enquanto se afastava, ao telefone, seguimos viagem. Além de advogado, Ivan também é morador do quilombo e estava a caminho de casa.
Depois de levantar os nomes dos seguranças contratados pela Ecoinvest, Época identificou que vários deles são policiais militares, alguns da ativa e outros aposentados, e fazem bicos para a empresa. Um desses homens é o soldado Peter de Alexandria Cezar, que está na ativa e lotado no 21º Batalhão da Polícia Militar, em São João de Meriti. Antes, atendia no 33º BPM, em Angra dos Reis, município vizinho a Mangaratiba. Outro segurança, o sargento Jorge Peres Queiroz, é um ex-oficial expulso da polícia. Há também o subtenente Carlos Jorge da Apresentação Pimenta, que já foi denunciado pelo Ministério Público em 2009 pela prática de extorsão, num episódio em que cobrou R$ 200 reais para “liberar” um turista americano que viajava sem passaporte.
Um trecho do despacho diz que “enquanto um policial verificava o interior do automóvel, os demais denunciados (outros policiais), com o conhecimento prévio de Carlos Pimenta, negociavam a vantagem indevida, exigindo ‘um cafezinho’ para a liberação das vítimas, motivo pelo qual as mesmas entregaram a referida quantia que, posteriormente, seria repartida entre os cinco milicianos”. Ele acabou expulso da corporação. Carlos Pimenta também tem um registro de agressão contra sua ex-mulher, Gecilda da Silva dos Santos, a Cida, campeã do Big Brother Brasil 4. Ele a atacou com socos e pontapés na frente do filho de 2 anos, em 2007. Os dois se conheceram quando Pimenta foi contratado para ser o segurança particular da ex-BBB, logo depois que ela faturou o prêmio do reality show.
Com vários outros quadros como esses, os batalhões da região acumulam tantos registros de corrupção que a própria polícia costuma não escalar os oficiais para operações locais, preferindo levar homens de outros grupamentos, distantes, para cumprir as missões. Entre os quilombolas, não faltam relatos de agressão por parte dos seguranças. Já foram registradas em boletins de ocorrência intimidações com armas de fogo, ameaças de morte, vigias circulando na área das casas à noite e até demolição de um imóvel enquanto o proprietário estava fora para trabalhar. Eles denunciam também que, em alguns casos, ao tentar registrar os boletins, oficiais da 165ª Delegacia de Polícia (Mangaratiba) se negaram a recebê-los.
“Eu e meu esposo denunciamos tudo, chamamos ajuda, por isso eles não gostam de nós. Tem muitos moradores que veem tudo e ficam quietos, desses eles gostam. Já foram lá em casa tentar derrubar o barraco de meu sogro, uma casinha de estuque. Pedimos para que não fizessem isso e nos disseram que, se não saíssemos, aconteceria o pior”, contou Simone.
A sustentação por trás de todos os abusos cometidos pela empresa é um braço político poderoso, compostos por políticos e empresários amigos de um ex-prefeito de Mangaratiba, Carlo Busatto Junior, conhecido como Charlinho (MDB), hoje prefeito de Itaguaí. Entre os cabeças da empresa, chama a atenção o nome de Marco Aurélio Abade, que se apresenta como administrador da Ecoinvest e representa a empresa nas reuniões com o Incra. É ele que atende às ligações dos seguranças e decide quem pode ou não entrar na fazenda. Marco Aurélio também é um dos donos da construtora Lytoranea, investigada na Lava Jato, que tem Charlinho como sócio. A família Abade mantém relacionamento próximo com o político, o que inclui festas em iates particulares e a participação de Charlinho no casamento do filho de Marco Aurélio. Os dois também são vizinhos num condomínio na Barra da Tijuca. Charlinho já foi condenado a 14 anos de prisão por corrupção passiva, fraude em licitação e organização criminosa. Seu mandato foi cassado, mas o afastamento só se dará depois do trânsito em julgado. Recentemente, ele entrou no radar do Coaf, o Controle de Atividades Financeiras, que identificou R$ 81 milhões em transações suspeitas dele e da esposa. Charlinho também tem relação próxima com Jorge Picciani, ex-presidente da Alerj, citado pelos quilombolas como homem influente na Ecoinvest. Os dois são sócios em uma mineradora.
O quadro societário da Ecoinvest apresenta três nomes: Pedro Paulo Meyers, Klaus Helmut Schweizer e Jessica Schweizer. Durante o último mês, Época tentou contato com os três. Inicialmente, uma secretária informou que não seria possível falar com nenhum deles, pois estariam em viagens no exterior. Finalmente, no dia 20 de março, Pedro Paulo Meyers atendeu a uma ligação telefônica. Ele se recusou a conversar com a reportagem, repetindo que “a empresa não dá entrevistas e não comenta a situação do quilombo”. Diante da insistência em oferecer um direito de resposta, Meyers se limitou a dizer que, caso a revista publicasse informações inverídicas, acionaria a Justiça.
Numa varredura por outras regiões do país, Época identificou diversos casos semelhantes. No quilombo Aldeia Velha, localizado em Pirapemas, no Maranhão, foi iniciada em 2015 a pesquisa para elaboração do laudo antropológico, fase inicial do processo de titulação. Sofrendo ameaças, os técnicos desistiram de atuar no local. O Incra tentou retomar o processo em 2018, mas o problema se repetiu. A área é considerada prioritária no processo de regularização de territórios quilombolas e a questão é acompanhada pelo Ministério Público. Três líderes da comunidade foram inscritos em programas de proteção a testemunhas depois de sofrerem ameaças de morte.
Em Barcarena, no Pará, cinco comunidades em processo de titulação (Burajuba, Gibirés de São Lourenço, Sítio Conceição, Sítio São João e Ramal Cupuaçu) estão no entorno de uma refinaria norueguesa com histórico de vazamentos que contaminam os rios e mangues da região. Em 17 de fevereiro de 2018, após dois dias de chuva, um depósito da Hydro Alunorte transbordou, derramando metais pesados como chumbo, arsênio e mercúrio no Rio Murucupi. A contaminação foi constatada por um laudo do Instituto Evandro Chagas (IEC), e, em seguida, a Hydro processou o pesquisador responsável por calúnia. Acabou perdendo a ação e recebeu um Termo de Ajuste de Conduta para reparar os danos causados. Segundo o coordenador das comunidades quilombolas locais, Mario Santos, pelo menos 14 bairros e mais de 30 mil famílias foram atingidas. Os rios Pará e São Francisco também foram contaminados. Um ano depois, os moradores dizem que parte das medidas de recuperação não vem sendo cumprida e relatam um crescimento nas de doenças de pele, principalmente em crianças, que passaram a apresentar coceira e feridas. A Hydro nega que tenha havido vazamento e contesta o laudo do IEC com outros estudos realizados na área, apontando que não teria havido contaminação. Antes desse episódio, em 2015, o naufrágio de um barco com 5 mil cabeças de gado já havia causado danos ambientais e econômicos na região, levando o Incra a distribuir cestas básicas para garantir a segurança alimentar das famílias ribeirinhas.
Em uma área sossegada no limite de Brasília, a quinta geração de remanescentes quilombolas mantém de pé a comunidade de Mesquita, no município de Cidade Ocidental. O quilombo goiano ganhou notoriedade em 2018, quando o Incra publicou uma resolução que aprovava a redução de seu território em mais de 80%. A notícia surpreendeu os quilombolas, que se mobilizaram para impedir que a medida fosse levada à cabo. O Conselho Diretor do próprio Incra acabou revogando a decisão. Em 2003, o governo já tinha reconhecido que a área pertence aos descendentes de escravos, mas ainda assim o Plano Diretor do município destinou o local à construção de condomínios.
O primeiro registro do quilombo Mesquita data de 1746. Em seu entorno surgiu a cidade de Santa Luzia, atual Luziânia, onde em meados de 1760 viviam cerca de 13 mil negros escravizados e 3.500 pessoas livres. O território ainda tem os casarões centenários e outros resquícios seculares dos anos de escravidão. Atualmente, 785 famílias fazem parte do Mesquita, num território cobiçado pela posição privilegiada, próxima de Brasília, e por ter muitas nascentes de água, inclusive termais, atrativas para os empreendimentos de luxo. Eles alegam que estão sofrendo ameaças de grupos ligados à especulação imobiliária.
Uma das empresas interessadas em construir no Mesquita é a Divitex Pericumã Empreendimentos Imobiliários S.A., que chama atenção pelo quadro societário de peso: fazem parte da empresa o ex-presidente José Sarney, o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e o empresário Jeovani de Morais, além de um diplomata e outros magnatas locais.
A área do quilombo está numa região transpassada por várias fazendas. Uma delas é a São José do Pericumã, famosa por ter servido de refúgio a Sarney durante os anos de governo. Ele comprou a propriedade nos anos 70 e vendeu para a Divitex em 2004. Como parte do valor da compra, permaneceu com uma porcentagem da sociedade. O advogado do ex-presidente disse a Época que Sarney tinha a intenção de conservar a área onde estão a casa e a biblioteca, que considera patrimônio histórico. Já o representante da empresa disse que a área de perambulação demarcada extrapola a área de posse da comunidade. “A Divitex Pericumã, seus acionistas, prepostos ou advogados jamais exerceram qualquer ato de negociação e muito menos pressão sobre quaisquer órgãos ou agentes públicos, para a tomada de qualquer decisão a respeito dessas questões. A empresa sempre buscou os meios institucionais do âmbito jurídico para questionar o porquê do relatório do Incra estender tanto a área denominada pelos técnicos de ‘área de perambulação’ dos antigos quilombolas”, disse. Kakay se apresentou como sócio investidor e esclareceu que não participa das operações da Divitex. “Tenho um percentual, mas estou lá como investidor. Não acompanho o dia a dia da empresa e não tenho nenhuma informação sobre como ela está hoje em dia”, escreveu.
A coordenadora nacional da Conaq, Sandra Pereira Braga, é uma das lideranças do Mesquita que se tornou alvo de ameaças depois de denunciar as irregularidades dos fazendeiros e empresários da região. Alguns deles já tentaram intimidar outros integrantes do quilombo ordenando a eles que “não andem com ela, porque ela vai morrer” e que, a qualquer dia, “acordaria com a boca cheia de formigas”. Assim como nos casos anteriores, as fazendas contam com equipes de segurança privada que, com o aval dos patrões, atuam como uma espécie de milícia dentro das propriedades.
Em 2008, Sandra denunciou um desmatamento na Fazenda Taquari, que também abarca um território certificado pela Fundação Palmares como sendo de direito dos quilombolas. A fazenda tem como sócios o empresário José Celso Gontijo, dono da empresa de engenharia J.C. Gontijo, além de Marcos Pereira Lombardi, presidente do “Jornal de Brasília” e envolvido no escândalo internacional conhecido como “Panama Papers”, acusado de usar uma empresa offshore para comprar dois apartamentos na Trump Tower de Miami. Dono de um posto de gasolina no DF, ele também já foi investigado por formação de cartel para aumentar o preço do combustível.
Gontijo e Lombardi pretendiam construir um condomínio de luxo na região da fazenda, operação que foi anunciada na internet e em outdoors locais. Depois de denunciar o caso, Sandra passou a ser perseguida com publicações difamatórias no jornal de Lombardi. Segundo a comunidade, os empresários ainda ofereceram um pagamento de 20 mil reais para que membros da associação de moradores a expulsassem. Também já foram encontradas covas-rasas em propriedades limítrofes à fazenda, registradas pela polícia em boletins de ocorrência e tidas como uma tentativa de amedrontar os moradores.
Diante desses ataques, Sandra decidiu largar seu emprego na Secretária Especial de Promoção de Igualdade Racial do Distrito Federal (SEPIR-DF) e foi convidada pela então deputada federal Érica Kokay (PT-DF) para ser sua assessora na Câmara. Durante a legislatura, Kokay promoveu diversas audiências públicas em defesa do território quilombola, mas não foi suficiente. Em fevereiro de 2019, um quilombola foi ameaçado por seguranças da Taquari e impedido de colocar seu gado para pastar. A comunidade diz que o homem, há 12 anos, criava os animais dessa mesma maneira e que agora foi impedido de sequer entrar no quilombo. Um lote de material de construção, reservado para construir um galpão para os animais, também teria sido apreendido arbitrariamente pelos capatazes.
O processo de regularização do Mesquita já está em andamento há sete anos, aguardando as desapropriações do Incra para ter o seu título expedido. Depois da construção de Brasília, a partir de 1956, o quilombo foi sendo rapidamente descaracterizado e ocupado por pessoas que compraram lotes de terra dentro do terreno demarcado, mas ainda sem proteção. Muitos quilombolas construíram família com pessoas de fora da comunidade, alterando o modelo de família e de subsistência. Para alguns deles, a situação evidencia que a falta de proteção governamental vai, lentamente, minando a resistência cultural do Mesquita. Até agora, não há previsão segura para a efetiva titulação das terras do quilombo.
Após a publicaçao da matéria, a assessoria de comunicaçao da Hydro Alunorte entrou em contato para questionar pontos da reportagem. (Leia aqui a nota da Hydro Alunorte).
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Comunidades quilombolas tentam resistir ao avanço de grandes empreiteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU