“Toda política hoje é mesopolítica: uma política de meios e de mediações”. Entrevista especial com Rodrigo Petronio

O professor e ensaísta analisa como Donald Trump se transformou em um showman global da antipolítica extremista de direita

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Por: Baleia Comunicação | 07 Mai 2025

Se na segunda metade do século XX as democracias eram usurpadas com tanques e coturnos, no século XXI a democracia é tomada de assalto por meio de uma espécie de atentado contra a linguagem. “Destruindo a linguagem, conseguimos destruir a própria efetividade dos argumentos e da refutação. A estratégia é muito clara. E foi usada no Brasil por [Jair] Bolsonaro. E tem sido utilizada por todos os políticos de extrema-direita, incluindo Trump. A ideia básica é criar dispositivos de poder baseados em dispositivos de linguagem que deteriorem a possibilidade de diálogo”, pondera Rodrigo Petronio, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“Por isso, a política hoje demanda uma leitura cibernética e semiótica. Uma atenção especial à linguagem, aos signos, aos fluxos informacionais e sobretudo aos meios e às mediações. Toda política hoje é mesopolítica: uma política de meios e de mediações. E uma política que precisa ser entendida na intersecção e na hibridização de muitos outros meios não políticos”, acrescenta Petronio.

A presença de figuras como Elon Musk no governo Trump, mas também de outros gigantes da Big Techs, na posse do atual presidente dos Estados Unidos, tal como Mark Zuckerberg, são sintomas da extrema-direita. “O objetivo dessa nova política de extrema-direita é o controle absoluto e irrestrito dos meios. Trabalhamos em jornalismo a ideia de rastrear o dinheiro. Quando fazemos isso, em geral chegamos às motivações profundas de um determinado fato. Hoje precisamos rastrear os meios e os signos. Na ponta final da cauda provavelmente encontraremos os patrocinadores dessa destruição do tecido social em larga escala que se encontra em curso”, descreve o entrevistado.

“A única forma de conter a devastação do ultraliberalismo, de reverter as novas formas de acumulação tecnofeudalista, de sanar os impasses das esquerdas e de solucionar os limites do identitarismo é a construção de um novo projeto comunista, simultaneamente universal e transversal. Não existe, entretanto, nem sequer a sombra de um projeto como este no horizonte imediato, dominado pelo Capital em todas as esferas”, complementa.

Rodrigo Petronio (Foto: Instituto CPFL)

Rodrigo Petronio é escritor e filósofo, autor de mais de vinte livros e organizador de diversos outros. Professor titular da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), atua na área de Educação há 25 anos como professor, pesquisador e coordenador institucional. Possui graduação pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado pela Universidade Estadual do Rio de janeiro (UERJ/Stanford University). Defendeu dois mestrados: em Filosofia da Religião pela Pontifícia  Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Literatura Comparada (UERJ). Desenvolveu pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP), onde é pesquisador.

Há mais de vinte anos ministra cursos, palestras e conferências em instituições como a Casa do Saber, Fronteiras do Pensamento, Fundação Ema Klabin, Instituto Humanitas Unisinos – IHU, entre outras. Profissional do mercado editorial há trinta anos, trabalhou em centenas de obras e em todas as etapas do processo editorial. Há 25 anos colabora regularmente como jornalista e publicou centenas de artigos, colunas, resenhas e ensaios em alguns dos principais veículos da imprensa brasileira. Foi indicado duas vezes ao Prêmio Jabuti (2006 e 2023). Recebeu prêmios nacionais e internacionais nas categorias poesia, ficção e teoria.

Confira a entrevista.

IHU – O que levou Donald Trump ao posto de “showman” da antipolítica extremista de direita?

Rodrigo Petronio – Quando falamos em antipolítica e extrema-direita, já estamos falando de espetacularização. O fato de Trump se elevar a um showman é algo previsto dentro na própria engrenagem do sistema. A ideia básica que percebo e que alguns filósofos, como Rodrigo Nunes, têm tematizado, é a seguinte: um dos fundamentos da antipolítica é a deterioração do tecido social. É uma política que se capitaliza a partir dessa destruição.

A despeito dos problemas éticos, esses recursos são bastante inteligentes do ponto de vista estratégico. E têm angariado sucesso em muitos lugares do mundo. Trump é apenas um dos expoentes maiores deste tipo de política. Para ter êxito, essa deterioração precisa minar algumas bases do debate público, tal como ele foi construído dentro das democracias.

A forma mais fácil hoje de destruir a democracia é atentar contra a linguagem. É destruir a linguagem. Destruindo a linguagem, conseguimos destruir a própria efetividade dos argumentos e da refutação. A estratégia é muito clara. E foi usada no Brasil por [Jair] Bolsonaro. E tem sido utilizada por todos os políticos de extrema-direita, incluindo Trump. Esse projeto consiste em criar dispositivos de poder baseados em dispositivos de linguagem que deteriorem a possibilidade de diálogo. Para tanto, o líder tem que se alçar a uma condição de superior. Deve transcender de certa forma aquilo que seria os limites desenvolvidos nas democracias. E tem que se apoiar em uma espécie de estado de exceção. Ou seja, é como se todas as regras, valores e instituições democráticas valessem para todos, menos para esse novo tipo de líder e para aqueles que ele representa.

Nesse contexto, faz muito sentido e é até bastante lógico imaginarmos a política atual como um motor dessa espetacularização, conceito trabalhado por Guy Debord de modo visionário no começo do século XX. E um dos atributos da espetacularização é escamotear o centro dos problemas. Transformar tudo aquilo que seria periférico, secundário e inessencial em algo essencial e central. Esses jogos de linguagem e esses dispositivos discursivos são a base da construção das vias de poder dessa nova direita representada pelo Trump.

IHU – O que os gestos e trejeitos de sua performance na atual presidência dos EUA indicam sobre sua personalidade e, mais do que isso, sobre os rumos de seu governo?

Rodrigo Petronio – Existe certa encenação, mimetismo, teatralização da política. Por isso, é um desserviço falarmos que esses líderes são loucos. Eles são qualquer coisa menos loucos. Não podemos dizer isso inclusive porque isso contribui para a estigmatização da loucura – os loucos não merecem isso. Esses líderes são estrategistas. E estão desempenhando uma estratégia que, aliada às guerras híbridas e às novas tecnologias, tem alguns aspectos novos. Essa teatralização é muito marcada pela ampliação de gestos retóricos.

Tecnocracia: projeto aceleracionista de desenvolvimento ilimitado cujo objetivo é uma nova forma de poder global baseada na tecnologia

Há um aspecto semiótico nessa nova forma de fazer política. Há, por exemplo, uma expansão ilimitada da metonímia: o uso da parte pelo todo. Faz-se então um enorme alarde e se cria algo monumental em cima de fatos menores e bastante localizados, que passam a ser violentamente descontextualizados. E assim debates essenciais da sociedade acabam sendo distorcidos, sendo que, do ponto de vista democrático, poderiam ser encaminhados de um modo muito mais prosaico, equilibrado e racional. Essa é uma das principais estratégias da nova direita.

Essas estratégicas podem ser detectadas também na construção da cúpula política do governo Trump, a começar por Elon Musk, seu braço direito. Porque no fundo as Big Techs precisam da deterioração da democracia para poderem adquirir mais poder e ultimar aquilo que elas pretendem: um expansionismo ilimitado da tecnologia. Por isso, aquela cena da posse é emblemática: todo o Vale do Silício estava ali presente.

A ideia é basicamente a seguinte: a democracia é muito onerosa. Demanda muito tempo, debate, diálogo, leis, protocolos, dissensos e morosidade – os processos vão e vêm e voltam e depois são reconduzidos ao debate. Há o Congresso, o Senado, o Supremo Tribunal Federal (STF), os partidos políticos e toda uma miríade de atores sociais que compõem a democracia, em fluxos de pesos e contrapesos. E, devido a isso, todo o processo democrático é muito custoso. Para os representantes dessa nova tecnocracia, o poder que hoje de fato controla o planeta, as democracias viraram o maior de todos os empecilhos. Elas não são mais interessantes para o tipo de poder que eles almejam. E quando a democracia é invocada, é uma mera performance para capturar desavisados e ingênuos, que ainda estão com a sensibilidade enraizada nos valores democráticos tradicionais. O intuito continua sendo o mesmo: expansionismo político e econômico capaz de satisfazer as necessidades da tecnocracia. Isso fica muito claro pela própria relação que Trump estabelece com esses atores políticos. E essa gramática de poder adotada por Trump tem como centro a tentativa de retomar a hegemonia mundial que os Estados Unidos estão perdendo a passos velozes.

Sucesso chinês

Se observarmos, por meio do partido comunista chinês e de um estado centralizado, a China conseguiu produzir uma articulação dos três elementos-chave do poder no mundo contemporâneo: desenvolvimento tecnológico (que inclui poder bélico), centralização política e crescimento econômico. Os chineses conseguiram unificar essas três forças porque colocaram a tecnociência a serviço do Estado. E isso está sendo o maior potencial da China.

Devido a processos internos ao liberalismo e às democracias ocidentais, houve uma separação desses três elementos-chave. E por isso os Estados Unidos não conseguem ter uma paridade entre poder econômico, poder político e poder tecnológico – essas coisas não estão mais caminhando juntas. Até porque a tecnocracia é um fenômeno transnacional. Não depende de um estado. E os tecnocratas não dependem de um país específico para monetizar as suas empresas ou para rentabilizar e capitalizar cada vez mais suas iniciativas.

Nesse novo cenário, os EUA estão em uma situação agônica e que chega a ser patética. Vejo Trump mais como sintoma de uma falência da democracia e como um declínio da hegemonia estadunidense do que como uma solução eficaz para os desafios do mundo. Ele é mais um ventríloquo dessa nova forma de organização do capital, gerido, gestado e controlado pelos tecnocratas, do que uma solução para os problemas econômicos e sociais dos EUA. O próprio lema de “fazer a América grande novamente” é deprimente, pois os tecnocratas não têm nenhum interesse pelo desenvolvimento dos Estados Unidos e nem de nenhum país. Eles têm interesse simplesmente em realizar seu projeto de poder aceleracionista e ilimitado.

IHU – A disputa entre Trump e China é uma disputa bastante performática, com bravatas, gestos e frases de efeito, além de sanções econômicas. O que leva um presidente de uma potência global a se comportar de modo tão afetado, sobretudo em questões geopolíticas?

Rodrigo Petronio – Temos que tomar cuidado com essas “bravatas”, essas coisas “irracionais”, essas “loucuras”. Isso tudo é estratégico. Por exemplo: o chamado tarifaço. Esse foi apenas mais um gesto por meio do qual Trump tentou, de um modo farsesco, reconduzir os Estados Unidos a uma centralidade do poder que eles não possuem mais.

O que estamos vivendo hoje é a passagem de um mundo unipolar, regido pela hegemonia dos Estados Unidos, a um mundo multipolar. E o movimento das placas tectônicas que temos vivenciado em termos geopolíticos não é nada mais do que os terremotos produzidos por essa transição. Esse mundo unipolar foi construído a partir do chamado “milagre econômico” e das chamadas “décadas gloriosas”, que vão do fim da Segunda Guerra Mundial (1945) até o fim dos anos 1970. Nesse intervalo, os modelos ocidentais das democracias liberais mostraram uma grande força de tração e de propulsão, com expansão de mercados, inclusão produzida por meio do consumo e uma grande geração de riqueza. Isso produziu essa ilusão de que o liberalismo seria uma espécie de fio que conduziria os povos a um desenvolvimento ilimitado. E chegaríamos ao fim da história, como foi tematizado por Francis Fukuyama e por tantos outros liberais. Esse mito de desenvolvimento infinito, totalmente alicerçado em uma lógica liberal, foi potencializado por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. E a construção dessa centralidade inquestionável dos Estados Unidos decorre desse mito. Isso não existe mais. E os EUA estão em um processo de franco declínio.

A partir da revolução digital da década de 1990, começou a haver um problema grave de alocação de recursos, geração de commodities, desenvolvimento da riqueza e acessibilidade a bens de consumo. As peças da engrenagem liberal começaram a colapsar. E mais uma vez se trata de uma alteração de meios e de media, com destaque para a internet e para uma nova sociedade que emergia: uma sociedade informacional de dados. O novo capitalismo de dados emergente apresenta um problema nuclear. Como produzir commodities em um mundo informacional cada vez mais fluido? Como singularizar os bens de consumo se a base da informação é a replicabilidade infinita de unidades não singulares? Durante milênios, a essência da acumulação primitiva de capital se baseou em dois critérios: a escassez e a materialidade. A revolução digital trouxe o oposto disso: cada vez mais abundância de dados e cada vez mais imaterialidade dos dispositivos de acumulação.

A partir dos anos 2000, essa estrutura informacional começou a criar uma outra fase do capitalismo: o hiperliberalismo. Como os dados são dinheiro e, em uma sociedade informacional, tudo que existe são dados, quanto maior a acumulação privilegiada de dados, maior a capacidade de controle dos mais variados ativos, materiais e imateriais. A acumulação primitiva de capital migrou para as nuvens de metadados.

E aqui surge um novo dilema: quanto maior a alimentação dessas nuvens de metadados, maior a exponencialidade disruptiva das tecnologias. As inteligências artificiais (IAs) vieram então apenas coroar um processo de ruptura social de grandes proporções que devemos viver nas próximas décadas. A capacidade de acumulação de capital se emancipou das necessidades produtivas às quais sempre esteve atrelada. A mão de obra humana se torna cada vez mais irrelevante. E, ao mesmo tempo, a acumulação de capital e a produção de mais-valia continuam precisando produzir escassez, sem a qual o capital não pode funcionar.

O colapso mundial será um desdobramento natural desse sistema. Teremos massas cada vez maiores de pessoas sem acesso a bens de consumo. As engrenagens produtivas teoricamente poderão produzir mais riqueza do que antes, mas essa riqueza não pode ser simplesmente distribuída sem colocar em xeque alguns pilares do capitalismo, como a mais-valia e a escassez. A automação cada vez mais deve ser a forma pela qual a circulação de capital pode prescindir da mão de obra humana e, ao mesmo tempo, aumentar a rentabilidade de uns poucos. E esse aumento de rentabilidade deve produzir verdadeiros enclaves de hiperacumulação de capital. Por isso, esse hiperliberalismo e essa hiperacumulação tecnocratas têm conduzido o mundo para fora das premissas mesmas do liberalismo tradicional. A velha mentira, sustentada pelos liberais, segundo a qual a democracia e o liberalismo caminham de mãos dadas, finalmente mostrou as suas garras. E cada vez mais adentramos aquilo que Yanis Varoufakis e outros têm definido como tecnofeudalismo.

Essa é a base macroeconômica que tem propiciado a emergência de neonacionalismos e de políticas cada vez mais extremas de direita. Um dos motivos desse fenômeno ser mais forte no espectro da direita é simples: as classes médias e os ricos foram os mais impactados por essa erosão das faixas intermediárias da pirâmide, engordadas nas décadas gloriosas, e que têm sido cada vez mais sugadas para a base da pirâmide. E esse projeto hiperliberal se coaduna muito bem com uma cultura do empreendimento individual que esteja disposta a destruir laços sociais, direitos adquiridos e proteções trabalhistas, desde que consiga aumentar o seu lucro ou pelo menos voltar aos padrões de vida das décadas anteriores. Contudo, os pobres, que foram positivamente impactados pela expansão econômica do século XX, serão os mais impactados negativamente nesse novo cenário de automação, deterioração das condições de trabalho, IAs e desemprego estrutural.

Tudo isso tem conduzido o mundo a essa transição de uma ordem unipolar, até agora protagonizada pelos EUA, para uma ordem multipolar, na qual os novos atores são China, Rússia, Índia e alguns outros países emergentes do chamado BRICS. A coalizão vencedora será aquela que consiga jogar bem o jogo complexo desse xadrez das economias simultaneamente nacionais, multilaterais e transnacionais, mediadas pelos dados e cibernetizadas em todas as suas ações e decisões.

A história se repete como farsa – mas a farsa é muito mais real e poderosa do que parece

Como diz a famosa frase famosa de Marx: a história se repete como farsa. Entretanto, às vezes a farsa pode ser mais real do que o passado que ela repete. E o simulacro, a farsa, a teatralização e o histrionismo desses líderes têm uma lógica contraditória. Nesse contexto, paradoxalmente Trump é uma farsa extremamente poderosa e verdadeira. E, por isso, não devemos vê-lo com preconceitos e tampouco podemos cair nas armadilhas da espetacularização. Devemos analisar as contradições desses líderes como sintomas dos novos e mais profundos graus de contradição que o capitalismo do século XXI tem produzido.

Pensando de novo no tarifaço. Por meio dele, Trump histrionicamente hiperboliza um poder que os Estados Unidos não têm mais, como se ele estivesse dando as cartas do baralho. Porém, em seguida ao decreto, ele renegociou as tarifas país por país. O objetivo era fortalecer a vinculação bilateral com países específicos e sobretudo intimidar a China. A mensagem subliminar aos chineses era clara: “Tenho esses parceiros todos. Se eu elevar a taxa de importação e exportação, eles vão ficar reféns das minhas condições. E eles vão preferir negociar comigo a negociar com vocês”. O sentido subliminar psicanalítico desse jogo revela um sujeito narcísico que quer a todo custo demonstrar um poder que, consciente ou inconscientemente, sabe não ter mais.

Masculinidade frágil

Explorando um pouco mais o ponto de vista psicanalítico, esses líderes de extrema-direita estão muito relacionados à chamada masculinidade frágil. Trata-se de uma masculinidade tóxica porque são aqueles homens extremamente inseguros em relação a si mesmo e que por isso precisam o tempo todo proclamar o seu próprio poder aos quatro ventos. Nesse sentido, comparado a líderes como Putin ou Xi Jinping, Trump de fato é um líder extremamente caricato. Se abstrairmos a questão ideológica e valorativa, líderes como Putin ou Xi Jinping são muito mais potentes em um cenário geopolítico como o que estamos vivendo. E Trump – mais uma vez – não representa uma solução. Representa mais uma agonia dos Estados Unidos e das democracias – isso acho que é o mais preocupante.

Signos performáticos e vazios

As bravatas que você mencionou são apenas partes de um ritual semiótico. Integram uma nova forma cibernética de política: a ciberpolítica. No entanto, os signos mobilizados nesse ritual são aqueles signos que o grande semioticista, pensador e filósofo Roland Barthes chamaria de signos unários. Os signos unários são vazios de experiência. São signos sem punctum – o punctum é o sentido e a espessura existenciais de uma imagem. O termo punctum significa ponto e, ao mesmo tempo, furo. Vem do latim furar, como nas palavras punção e pungente. E por isso a centralidade das imagens e das tecnoimagens nos dias de hoje, para usar a expressão de Vilém Flusser.

Para Barthes, os puncti das imagens indicam algo e tem alguma espessura, alguma profundidade, algum conteúdo existencial e subjetivo. O mundo da espetacularização em que vivemos hoje, o mundo cibernético das redes, da internet e das guerras híbridas, é praticamente uma usina de imagens e de signos unários. O universo digital se tornou um oceano de signos unários, gerados e geridos por clichês sem punctum, sem experiência, sem subjetividade. Como diria Deleuze, vivemos em um mundo gerido e gerado por “autômatos espirituais”. Não vivemos em um mundo de imagens. Vivemos em um mundo de clichês que inviabilizam a visibilidade das imagens. Esses signos unários são vazios de informação, pensando-se aqui na oposição entre ruído e informação, explorada pela teoria da informação. São um tipo de linguagem performativa cuja produção de realidade é inversamente proporcional à produção de diferenciação comunicacional, na acepção de Gregory Bateson.

Por isso, é difícil dizer que esses líderes não produzam realidade. Tampouco podemos reduzir a extrema-direita a uma mera ação de ilusionismo e de manipulação das massas. A realidade que eles representam deve ser vista como sintoma de um colapso do tecido social democrático. E como uma ascensão das tecnologias de dessubjetivação: esvaziamento da subjetividade. É preciso descrever a semiose desses atos e gestos como estratégias políticas, econômicas e geopolíticas, mas também como limitações do próprio alcance do poderio estadunidense e das democracias liberais, que hoje se encontram em seu maior impasse desde o século XIX.

IHU – Em setembro de 2024, Donald Trump sofreu um atentado com um tiro de raspão na orelha. A imagem circulou o mundo e foi usada em sua campanha de modo bastante vitimista. Como compreender esses personagens em suas contradições que ora aparecem como vítimas e ora como líderes corajosos?

Rodrigo Petronio – Estamos lidando com mistos de personagens e de sujeitos históricos. Todo ser humano e todo evento real podem ser entendidos como personagens. Tudo depende dos modelos narrativos e dos manuais de roteiros que escolhemos para compreendê-los. Há roteiros mais complexos, tridimensionais, cheios de camadas e nuanças, prenhes de espessura e contradições.

O que estamos vivendo é algo bem curioso: vivemos em um mundo cada vez mais complexo e que tem sido explicado de modo cada vez mais simples. Tenho repetido essa frase porque esse é o dilema e a tragédia do mundo contemporâneo. É um mundo cada vez mais complexo e as soluções que são apresentadas para esse mundo são cada vez mais simples. Entretanto, aqui reside um paradoxo mortal: quanto mais os agentes sociais potencializam as simplificações e reduzem as simplificações às caricaturas mais grosseiras, mais eles saem vitoriosos nesse jogo de poder.

Uma das formas simplificadas de compreender a política como narrativa é apostar em alguma função messiânica ou redentorista do líder. Nessa chave, em teoria narrativa existe o conceito do “branco salvador” (white savior). Essa função está presente na maioria das narrativas hollywoodianas. A construção da indústria cinematográfica audiovisual estadunidense foi dominante ao longo do século XX em boa parte por colocar os EUA nesse lugar redentorista. O perigo pode ser a União Soviética e o comunismo, podem ser hordas primitivas de humanos não brancos, podem ser os indígenas do Oeste ou podem ser os extraterrestres.

Em todos esses casos, a complexidade do mundo e das relações intersubjetivas, inter-raciais e interculturais sempre foi submetido a essa simplificação narrativa: em qualquer lugar do mundo, onde houver um homem branco, cisgênero, estadunidense e heterossexual, o problema pode ser resolvido. E todo mal provém sempre do Outro. Por meio da nova direita, esse Outro adquiriu uma nova fisionomia muito mais indeterminada e difusa. Podemos dizer que hoje o arqui-inimigo e o grande Outro dos EUA é o “esquerdismo”. Ou, segundo a caricatura conservadora, o “wokismo”.

O curioso é que esses termos são muito mais vazios e generalizados do que os inimigos anteriores. E essa generalização faz todo sentido em termos racionais. Se eu luto contra um inimigo cujo rosto nunca pode ser identificado, que está disperso em todos os lugares e que sempre se metamorfoseia em outros rostos, a minha luta nunca vai ter fim. Esse é um outro sentido das guerras híbridas. Elas são guerras cujo começo e o fim não podem ser determinados. E são guerras cujos inimigos se pulverizam com mais capilaridade do que um agente-laranja ou outra arma química.

É uma guerra que pode a todo momento ser reativada e potencializada, pois o inimigo, sendo uma entidade narrativa e uma generalização conceitual indeterminada, nunca morre. Trata-se de um inimigo de extrema plasticidade. E que pode ser atualizado e ritualizado em novas figuras e em novos rostos, conforme o interesse do momento. O “esquerdismo” e o “wokismo” não são instâncias reais. São actantes, segundo os termos de Greimas e dos narratologistas. E, como todos os actantes, essas instâncias nunca morrem, pois as personagens podem morrer, mas as funções actanciais são eternas.

Mito esvaziado

Entretanto, há limites nessas guerras de narrativas. Tudo isso funcionou quando havia a expansão econômica e uma base que sustentasse esse mito, entendendo-se mito aqui também na acepção de Barthes. Entretanto, agora o mito revelou seu fundo falso e sua natureza vazia. Trump representa esse mito esvaziado que tenta ainda sustentar essa narrativa antiga e gloriosa, mas gira em falso sobre suas próprias bases.

Voltando à questão do tiro, ela não pode ser minimizada. Foi um atentado. Não vejo nada muito relevante que possa ser levado em consideração para minimizar esse atentado sem cair em teorias da conspiração. Não é possível deliberadamente apenas dar um tiro na ponta da orelha sem acertar a cabeça. De fato, não podemos achar que foi um atentado produzido dentro desse projeto de espetacularização. Porém, o atentado acaba capitalizando a campanha, assim como tivemos aqui com a facada no Bolsonaro.

Como os mitos desidratados não têm a mesma força, aqui entra o recurso fascista propriamente dito: preencher o mito morto com o máximo de afirmações e de certezas, por mais bizarras, escabrosas ou absurdas que elas sejam. É preciso levar esse processo de ressurreição do mito esvaziado às últimas consequências. E, por isso, para reanimar esse mito vazio, é preciso muita violência. A violência é o combustível que capitaliza e confere sobrevida a esse mito como ele se encontra agora, sob uma forma totalmente deteriorada.

IHU – É possível compreender a postura comunicacional de Trump como uma espécie de blitzkrieg (guerra-relâmpago) semiótica em favor de seu projeto político? O que a caracteriza?

Rodrigo Petronio – Com certeza. A diferença é que as guerras-relâmpago (blitzkriegen) se tornaram a estrutura das guerras híbridas contemporâneas. Não são mais meios pontuais, como nas estratégias de guerra antigas e modernas. O importante é sustentar um fluxo ininterrupto de guerras-relâmpago, por mais desgastante que isso seja. O desgaste, a desidratação, o esvaziamento, a entropia: tudo isso está a serviço do projeto da nova direita. Por isso, cada vez mais tenho recorrido à semiótica, à teoria da informação e à cibernética para compreender o mundo atual. E, de um ponto de vista informacional, estamos há um bom tempo dentro de guerras que não são mais guerras no sentido clássico e nem no sentido moderno: são guerras híbridas.

O sentido clássico da guerra se alterou a partir de [Carl Phillip Gottlieb von] Clausewitz. Ele propôs que guerra e política não eram instâncias heterogêneas entre si. Como diz sua frase célebre: “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Essa foi uma alteração importante para entendermos que as guerras não são estados de exceção da lógica, das convenções e das negociações da política: as guerras são um braço armado da própria política e um modo de fazer política. Essa constatação traz um elemento forte, e, pensando em Walter Benjamin, pode ser um exemplo daquela conhecida relação entre civilização e barbárie. Toda política no fundo é uma política de guerra. E toda guerra em alguma medida é política.

No mundo em que vivemos, essa relação se tornou ainda mais complexa. Porque não apenas a guerra é uma política por outros meios. Todos os fenômenos que nos cercam, desde as redes sociais, aspectos culturais, comportamentos, discursos, crenças, convicções, adesões, grupos, identidades, questões étnicas, sexuais, de gênero, raciais – tudo isso forma um caldeirão de informação. E tudo isso é, simultaneamente, guerra e política. Não estou reduzindo todos esses fenômenos ao político. Não gosto dessa visão, em geral adotada pela esquerda, de que todas as instâncias da vida são políticas. Não estou dizendo que tudo é guerra ou que tudo é política. Existem instâncias da vida que não são legisladas por essas diretrizes. Mas podemos dizer que existe hoje uma maior capilaridade da política e da guerra. E é isso que podemos chamar de guerras híbridas: guerras simultaneamente reais e virtuais. E a principal característica dessas novas guerras é a ubiquidade: a capacidade de virtualmente estar presente em todos os lugares ao mesmo tempo.

Às vezes, a guerra virtual pode gerar mais morte ou mais destruição do que uma guerra real. Então, quando um presidente diz que tem um chip ou vírus HIV na vacina da Covid-19, estatisticamente é possível comprovar a quantidade de pessoas que ele matou com essa afirmação sem que tivesse disparado nem sequer um único tiro. Isso é análise combinatória, cálculo, teoria das probabilidades e estocástica. Não é uma mera ilação. Devido a isso, em diversos sentidos, a propagação e a programação de desinformação se tornaram uma arma muito mais barata, rentável, assertiva e letal do que as armas convencionais. E a desinformação é também uma das forças mais violentas que existem hoje, pois age de modo subliminar, preserva muitas vezes a imunidade dos seus propagadores e atinge potencialmente milhões de pessoas, deteriorando os ecossistemas virtuais e reais da Terra e matando pessoas em termos literais.

Seguindo o conceito de necropolítica do filósofo camaronês Achille Mbembe, a desinformação programada não é uma política da morte. É a morte da política. E esta engendra em si uma política do deixar-morrer, do induzir ou do conduzir à morte. Não se mata diretamente. Criam-se as condições para que as pessoas morram. Isso é muito mais difícil de ser definido do que as guerras tradicionais, como as que transcorreram até a Segunda Guerra Mundial. E mesmo as grandes guerras tradicionais e militares em curso hoje são cibernetizadas. Seja na Síria, na Armênia, em Gaza, na Ucrânia, todas as guerras hoje seguem um novo modelo híbrido de extermínio.

Por isso, a política hoje demanda uma leitura cibernética e semiótica. Uma atenção especial à linguagem, aos signos, aos fluxos informacionais e sobretudo aos meios e às mediações. Toda política hoje é mesopolítica: uma política de meios e de mediações. E uma política que precisa ser entendida na intersecção e na hibridização de muitos outros meios não políticos. Por isso, essa leitura superficial de Foucault, segundo a qual tudo é política, está tecnicamente errada. Não é que tudo seja política. Ao contrário, a política é que tem se descolado cada vez mais de suas especificidades e se conectado a agentes de outras naturezas para performar ações que são simultaneamente políticas e não políticas. Essa é a macroestratégia da nova direita: uma generalização tão grande da política que acaba por esvaziar os sentidos específicos e precípuos da política. E, desse modo, a direita tem conseguido produzir a erosão da esfera política. E cada vez mais tem colocado a antipolítica no centro de todos os processos sociais.

Nesse sentido, a noção mesma de política se esvaziou e se inverteu. Tornou-se em alguns aspectos o oposto do que era décadas ou séculos atrás. Parodiando a paráfrase popularmente atribuída a Maquiavel, não são os fins que justificam os meios – os meios que justificam os fins. O objetivo dessa nova política de extrema-direita é o controle absoluto e irrestrito dos meios. Trabalhamos em jornalismo a ideia de rastrear o dinheiro. Quando fazemos isso, em geral chegamos às motivações profundas de um determinado fato. Hoje precisamos rastrear os meios e os signos. Na ponta final da cauda provavelmente encontraremos os patrocinadores dessa destruição do tecido social em larga escala que se encontra em curso.

IHU – Muitos latinos e afro-estadunidenses votaram em Trump. É interessante o fato, porque demonstra grande capacidade de mediação dos afetos da população norte-americana por parte de um político branco e republicano. Que atributos semióticos outorgaram a Trump esse lugar no imaginário da população que o elegeu?

Rodrigo Petronio – Creio que uma das explicações desse fenômeno é a ressurreição do mito do salvador branco que mencionei, potencializado pela violência. Há também alguns aspectos que podem ser entendidos a partir de um longo processo de colonização da subjetividade. Entretanto, o que me incomoda nessas avaliações é a posição passiva em que essas teorias colocam os agentes sociais minorizados. Parece que todas as contradições do mundo se resolvem sob a ação mágica de algum tipo de alienação ou de manipulação. Isso retira a autonomia e a liberdade dos agentes minorizados, o que é um contrassenso. Para mim, o que esse fenômeno nos revela é um fator essencial: a capilaridade, a potência e eficiência do discurso liberal e (agora) hiperliberal. Se não compreendermos isso, não compreenderemos praticamente nada do que ocorre no mundo.

Os discursos relacionados à meritocracia, ao empreendedorismo, às ações individuais, à prosperidade, à felicidade e outros semelhantes criaram uma outra teologia: a teologia da eleição. Essa teologia tem raízes em algumas crenças sobre predestinação divina, salvação e eleição propriamente dita, bem como em algumas soteriologias antigas e modernas. De Marx a Walter Benjamin, de Max Weber a Charles Taylor, de Mircea Eliade a Giorgio Agamben: uma miríade de pensadores reconstruiu arqueologicamente essas relações entre capitalismo e teologia. Contudo, há uma novidade aqui: os eleitos não são mais escolhidos por Deus, por um sacerdote ou pelo valor de suas obras. Eles são eleitos por si mesmos. Tenho chamado essa nova teologia do século XXI de teologia da autoeleição.

A despeito das condições sociais, de classe, de cor, de etnia, de gênero, de origem, de cultura ou de procedência, uma das novidades do capitalismo do século XXI é ter conseguido criar esse mecanismo de autoeleição. Os indivíduos não são mais ungidos por um governante, um líder ou uma divindade. Essas figuras ainda se dirigem a aspirações que são majoritariamente coletivas. E a autoeleição é radicalmente individual. Por isso, os seguidores da teologia da autoeleição não precisam nem da admiração e muito menos do amor de seus líderes. Estes podem inclusive demonstrar um profundo desprezo pelos seus seguidores. O importante é que esses governantes, líderes ou divindades sejam mediadores de um discurso que enfatize a capacidade de cada indivíduo se autorrealizar a si mesmo.

Os indivíduos deixaram de ser os meios escolhidos para a realização da grande obra universal de Deus. A grande obra universal do capital é que se tornou o meio para que os indivíduos se realizem a si mesmos. Trata-se de uma revolução dos meios. Nesse sentido, a teologia da autoeleição é a única religião efetivamente ecumênica da atualidade. E, no estado atual do capital, a autoeleição se tornou o único projeto efetivamente “universalista” no horizonte. Assim, por mais excluídos que sejam os grupos minorizados, o sentido da exclusão ainda é menos potente, convidativo e esperançoso do que as promessas eletivas futuras.

Esse é um dos motivos da explosão evangélica, um dos acontecimentos mais importantes em curso no Brasil, e que deve ter impactos gigantes em todas as esferas sociais. E esse é um dos motivos da desmobilização das esquerdas em todo mundo. Por mais efetivos e urgentes que sejam os projetos da esquerda, eles tendem a regionalizar os signos em identidades, grupos e seguimentos racionais e bem demarcados. Ao passo que o projeto da autoeleição consiste justamente em transbordar todas essas demarcações e circunscrições, em busca de uma “emancipação” que seja “universal”. O centro desse movimento, entretanto, se encontra agora na salvação do indivíduo, não na salvação do grupo, da etnia, do gênero, da classe ou de uma coletividade, qualquer que ela seja.

Não estou de nenhuma maneira diminuindo os diversos identitarismos e muito menos minimizando a sua efetividade. E entendo as diversas aporias e dilemas dos projetos universalistas, frutos de milhares de anos de humanismo eurocêntrico. Mas enquanto as esquerdas não conseguirem criar um projeto efetivo e universalista de emancipação coletiva, a tendência é vivermos um aprofundamento cada vez maior dessas contradições. E vermos cada vez mais os indivíduos abandonando suas respectivas identidades (minorizadas ou não) em prol da autoconstrução de si mesmos.

Isso explica como Trump, Bolsonaro, Milei, Le Pen e outros líderes que podem ser tecnicamente definidos como fascistas, que sustentam discursos abertamente racistas, xenófobos, sexistas, misóginos, homofóbicos, reiterando seus respectivos projetos de extermínio de identidades e de grupos minorizados, obtenham essa adesão estranha (e cada vez maior) desses mesmos grupos. A única forma de conter a devastação do hiperliberalismo, de reverter essas novas formas de acumulação tecnofeudalista, de sanar os impasses das esquerdas e de solucionar os limites do identitarismo é a construção de um novo projeto comunista, simultaneamente universal e transversal. Não existe, entretanto, nem sequer a sombra de um projeto como este no horizonte imediato, dominado pelo capital em todas as esferas.

IHU – Harvard é sinônimo de excelência acadêmica. Hoje sofre ataques de Donald Trump, que cortou US$ 2 bilhões de isenção fiscal por conta do “não” em relação às exigências da Casa Branca. O que essa queda de braço indica como sintoma de nosso tempo?

Rodrigo Petronio – Essa queda de braço com Harvard é um signo muito claro dessa insustentabilidade do modus operandi da democracia liberal sobre a qual os Estados Unidos foram construídos. Alavancados nesse modelo de democracia, os EUA se tornaram a maior potência do mundo. E agora se voltam contra ela, em um movimento de autodestruição. Algumas noções essenciais guiam o liberalismo em seus termos estadunidenses: a autonomia das esferas sociais, a livre iniciativa, a privacidade, a liberdade de expressão, a salvaguarda do pluralismo, a convivência de crenças, a tolerância, a diversidade religiosa, entre outras. Obviamente existe aqui um paradoxo. Essas noções não podem ser realizáveis em todos os lugares do mundo, do mesmo modo e de forma equânime. E, por isso, os Estados Unidos exportaram para o resto do mundo essas promessas de democracia, mas apenas conseguiram realizá-la à medida que atentavam contra outras democracias ao redor mundo. Os Estados Unidos conseguiram assim realizar esses valores apenas às custas da impossibilidade de realização desses mesmos valores por outros países.

Hoje vivemos uma crise dos modelos representativos e uma crise das democracias mesmas, como foram concebidas. Maior do que uma clivagem entre direita e esquerda, presenciamos uma nova clivagem, agora entre democracias e autocracias. As autocracias estão sendo vitoriosas em todo o mundo, sejam autocracias de esquerda como na China – se imaginarmos a China como um capitalismo de Estado gerido por um partido comunista –, sejam as autocracias de extrema-direita, como a Rússia, comandada por um imperialista cristão, ortodoxo e neoczarista chamado Putin.

Nessa oscilação das autocracias entre a direita e a esquerda, as democracias estão sendo deterioradas. Por mais que seja difícil dizer isso, estamos em um momento que, para pensar a política com seriedade, é preciso pensar alternativas às democracias. Digo isso com bastante pesar e medo. Nunca imaginei que eu fosse dizer isso. Nosso apego às democracias vem dos modelos herdados do mundo liberal, mantido e regulado pelos EUA e pela Europa. As democracias ocidentais liberais inocularam em nós essa ideia de que os valores da democracia são autoevidentes. E, nesse contexto de guerras pela hegemonia, de mundo multipolar e de hiperliberalismo econômico, para entendermos a política hoje precisamos dessacralizar a democracia.

Não digo que isso seja fácil. Como pensar, por exemplo, as universidades sem democracia? Ao fazer esses experimentos mentais, entramos em muitos loopings. Como pensar o contrassenso, o dissenso, o diálogo, a divergência, o pluralismo de ideias e de teorias científicas sem a democracia? Entretanto, por mais duro que seja isso, dessacralizarmos a democracia, entendida como um bem inalienável e autoevidente, não vamos compreender para onde o mundo vai caminhar daqui para frente.

IHU – Em seu livro Por que o futuro será uma Era dos Meios (2022), você propõe uma reflexão no qual projeta um futuro em que passaremos do Antropoceno para o Mesoceno, que seria uma era dos meios. Pode explicar o que caracteriza um e outro período e como deve ser essa transição?

Rodrigo Petronio – Essa é uma questão grande. Eu teria que mobilizar muita teoria para a resposta, mas vou tentar ser sintético. O termo meson em grego é meio. A mesologia, a teoria dos mesons, é uma teoria que desenvolvi para pensar a categoria relação. A filosofia se ocupou muito de outras categorias, tais como substância, espaço e tempo, sujeito e objeto, mas a categoria relação ficou subexplorada. O Mesoceno seria um desdobramento da mesologia em conexão com a chamada Ciência do Sistema Terra (CST). A CST é a ciência mais transdisciplinar que existe hoje, e assim pode ser concebida, mesmo ainda não existindo formalmente como ciência, pois ainda é um projeto em construção. A CST seria uma espécie de metaciência: uma instância que contém em si virtualmente todas as ciências e saberes porque o objeto da CST é nada mais nada menos do que a Terra. A Terra entendida como um sistema de dinâmicas não lineares complexas, de sistemas fisioquímicos e biológicos, que incluem toda a produtividade humana e todas as atividades não humanas em suas dinâmicas interacionais e relacionais. Ainda não temos uma ciência à altura de um objeto dessa proporção. A mesologia se propõe então fundar as bases conceituais dessa metaciência da CST.

A teoria dos mesons seria uma maneira de pensar esse hiperobjeto chamado Terra, como diria o filósofo Timothy Morton. E o Mesoceno seria uma nova nomenclatura para solucionar os impasses reais e conceituais do Antropoceno. O Mesoceno substitui a racionalidade pela relacionalidade. E emerge da constatação de uma relacionalidade universal. Sendo assim, como essa relacionalidade universal pode nos ajudar quanto aos impasses gerados no sistema Terra pelo Antropoceno e pelo antropocentrismo? Essa é uma pergunta central a que a proposição do Mesoceno procura responder.

Como se sabe, o Antropoceno descreve a época da Terra em que estamos ingressando. E representa o fim do Holoceno (holos em grego é todo) que dura doze mil anos. Não por acaso, doze mil anos é a idade da civilização humana, ou seja, tudo que o sapiens construiu desde o sedentarismo, do advento da escrita e das primeiras cidades. Foi o período mais harmonioso da Terra, entendida como um sistema, e não nos termos estritos da humanidade em si. Isso propiciou o estabelecimento da civilização humana, bem como essa estabilidade ecossistêmica que vivemos ainda hoje, e para fora da qual estamos arrojando a Terra.

Como mencionei, estamos em uma transição de uma unipolaridade, regida pelos Estados Unidos, para uma estrutura multipolar, em que temos uma estrutura geopolítica policêntrica. A estratégia da política econômica de Trump é propositalmente colocar em xeque as relações comerciais com outros países. Assim, se as relações bilaterais não passarem no teste, seria um álibi para desenvolver a indústria dos EUA e levar os estadunidenses a produzirem em casa aquilo que hoje importam. Por meio de um extremo protecionismo comercial, Trump pretende criar as condições para uma reindustrialização dos EUA. Podemos definir esse projeto como um novo projeto desenvolvimentista que tenha os Estados Unidos como centro. E esse é o emblema de seu governo: Make America Great Again.

Uma das primeiras formas de fazer isso é por meio de tarifas. Basicamente, o intuito de Trump, ao romper acordos comerciais com outros países, é conseguir perder ganhando. Ainda que ele perca, vai gerar condições para que os EUA produzam aquilo que os outros países produzem. Isso suspenderia a dependência de outras nações. E potencializaria sua popularidade, alicerçada nesse mito neonacionalista, um dos pilares da extrema-direita mundial. Pensando na estrutura da relacionalidade do Mesoceno, é como se Trump estivesse querendo cortar a rede das relações e, ao produzir seu próprio isolamento, potencializar os Estados Unidos, ideia geral dos neonacionalismos. Por isso, toda sua agenda pode ser vista como uma agenda de corte das redes relacionais. Isso está claro na hostilidade que ele tem com organismos transnacionais, como a ONU e a OTAN. E fica ainda mais claro com a sua ostensiva militância negacionista e obscurantista, pautada na rejeição das mutações climáticas e de todo pacote de mutações da Terra descritos todos os dias pelos cientistas, pensadores, teorias e estudos acerca do Antropoceno.

Essas ideias e posturas fazem sentido de certa forma no mundo atual. Mas há maneiras diferentes de encaminhá-las. Quando analisamos essas estratégias neonacionalistas de Trump, vemos como elas são rudimentares e simplistas sob diversos aspectos. A começar pela definição de nacionalismo de seu governo. O mundo cibernetizado produz estados igualmente capilarizados e descentralizados. Em contrapartida, considero a China e a Rússia os melhores exemplos de países que conseguiram potencializar o neonacionalismo e não param de crescer.

Tomemos como exemplo a China. Há uma estrutura burocrática altamente centralizada. Mas o poder chinês está muito mais na capacidade comercial, que se expande cada vez mais por todo mundo, do que na ascendência política ou militar do estado chinês sobre outras nações. Ou seja: a hipercentralização política interna da China gera uma hiperdescentralização por meio da qual a China domina mercados na África, na América do Sul, na Américas Hispânica, no Brasil e em diversos outros centros do mundo. Os chineses compram bens, controlam ações e investem em mercados emergentes. Portanto, parece que temos ali um capitalismo de Estado altamente centralizado, mas isso é apenas o modus operandi político da China lidar com o mercado global atual e fazer frente a essa nova geopolítica.

Algo semelhante ocorre com a Rússia. Putin é um tecnocrata de orientação tecnicamente fascista. E está tentando reconstruir um grande império czarista a partir do mito da grande mãe Rússia do século XIX. Por isso a importância da Ucrânia. E o valor imaginal da Ucrânia como fonte de unidade da Rússia. Algo bem diferente do mito construído pela União Soviética socialista. Há uma noção expansionista e territorial forte nesse projeto de Putin. E, ao mesmo tempo, o nacionalista Putin está a todo momento cedendo, para não romper a rede relacional. Por exemplo, quando se alinha à China e à Índia para extrair benefícios da Europa e rivalizar com os Estados Unidos. Quando partilha a Ucrânia por meio da coalizão com Trump, também demonstra a flexibilidade de suas posições.

Diante disso, podemos dizer que esse jogo político atual possui uma casca mais visível, feita de teatralização e de espetacularização. Essa camada mais externa, histriônica, é a do neonacionalismo. E ela é essencial para angariar votos. Entretanto, quando analisado de perto, esse jogo muda de fisionomia. Isso demonstra que nenhum país pode crescer e dominar nesse mundo de hiper-relacionalidade do século XXI seguindo o neonacionalismo de Trump.

Então, essa ideia de um capitalismo autocentrado e neonacionalista parece mais a fantasia de quem ainda imagina que possa cortar as redes do mundo sem se cortar e sem se machucar com esses cortes. A partir dessa minha teoria da relacionalidade, dos mesons e do Mesoceno, quanto mais apostarmos em cortar as redes e as malhas em direção ao isolacionismo e à ruptura das conexões, mais nos encaminhamos para o colapso, tanto do ponto de vista climático quanto do ponto de vista econômico, político e humano. E, como fatalidade final, encaminhamo-nos para a impossibilidade de sustentação do ser humano na Terra.

IHU – Considerando a experiência que temos hoje de meios como as redes sociais, totalmente capturadas pelas Big Techs e seus interesses nenhum pouco republicanos, é possível ter esperança em um futuro que nos livre da barbárie?

Rodrigo Petronio – Um dos meus objetos de estudo é inteligência artificial (IA). Quanto mais eu estudo IA, mais me torno pessimista. Refletir se as IAs vão adquirir algo que podemos chamar de mente, de consciência ou de senciência é uma questão filosófica incrível. Mas o grande problema das IAs é que elas não podem, de maneira nenhuma, ser despolitizadas. É impossível pensar qualquer questão relacionada à IA apartando essa questão de aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos, étnicos, raciais e de gênero. Fazer isso é abrir caminho em direção à barbárie. Assim como mencionei sobre o aspecto dos neonacionalismos, quando cortamos a rede relacional que as IAs estabelecem com outras esferas, criamos as condições para que as IAs se emancipem dessa mesma rede e de fato produzam consequências nocivas para os humanos.

Quando cortamos as conexões das IAs com tantas implicações e aspectos da sociedade, dos humanos e dos não humanos, que alimentam e estão na base de todas as inteligências naturais e artificiais, humanas e não humanas, estamos pavimentando um caminho para a barbárie. Nesse sentido, a ficção científica estava certa. A premissa da barbárie não é apenas uma fantasia antropocêntrica de humanos que se espelham a si mesmos no espelho invertido das IAs. A barbárie está de fato inscrita como possibilidade dentro dos programas mesmos das IAs.

Por isso a importância de pensadores como Stuart Russell e sua teoria das IAs benéficas. Uma das maiores autoridades do mundo em IA, Russell foi quem conseguiu inserir um elemento central na equação das IAs: onde estaria o nós dessa formulação de inteligência que é ventilada pelos quatro cantos? Onde estariam os coletivos humanos na equação da inteligência das IAs? A serviço de quem essas IAs estão trabalhando? Essas respostas não são simples. Esses nós seriam os representantes das Big Techs do Vale do Silício? Ou seriam uma comunidade ameríndia que usa IA para preservar a memória, a ciência e a sabedoria do seu povo? Mas esse é um primeiro caminho: ressaltar cada vez mais esses vínculos e essas redes de relacionalidade como um modo de contingenciamento e de controle das IAs. Continuar considerando as IAs apenas a partir do fetiche dos seus desempenhos, de suas potências e das suas otimizações, demonstra não a sua superioridade, mas sim a nossa inferioridade. E seguir esse caminho apenas confirma a nossa condição alienada de criaturas que, subordinadas às criaturas que criaram, acabam por esquecer a sua capacidade criadora.

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