Por: Edição: Patricia Pachin | 14 Fevereiro 2024
A ideia de natureza como um sistema harmônico, no qual cada ser existente tem uma finalidade, cai por terra na compreensão filosófica que justapõe o pensamento ecológico de Timothy Morton, a teoria crítica da Escola de Frankfurt e a filosofia especulativa, exposta por Rodrigo Petronio na videoconferência “O pensamento ecológico de Timothy Morton e o viver no Novo Regime Climático”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 25-05-2023. “Essa ecologia não está ligada à harmonia da natureza; está muito mais ligada a uma desarmonia, a uma junção de pedaços, de criaturas quiméricas feitas de pedaços. A partir disso, toda a ideia de que existe uma harmonia da natureza cai por terra. O ser humano não é nada mais do que uma coleção de pedaços; todos os seres vivos são pedaços que a partir do seu telos [finalidade] específico, a partir da singularidade das espécies, dos seus ecossistemas, foi sobrevivendo e obtendo sucesso evolutivo. Essas colagens foram se colando cada vez mais e foram evoluindo e se complexificando a partir de outras colagens”, explica.
Segundo ele, o filósofo inglês Timothy Morton “está pensando a partir dessa quase anomia e experiência abissal da natureza que não é natural e, portanto, por não ser natural, é infinita e, por ser infinita, é altamente conectada e coexistente. Nós coexistimos com uma malha que nos conecta a nuvens de neutrinos de outras galáxias. Por mais lisérgico e estranho que possa parecer, isso é possível. É possível porque no fundo subjaz a essa noção de ecologia o vazio, ou seja, o vazio é o grande operador porque o vazio é uma forma de pensar a biologia e a ecologia fora do registro biologizante, naturalizante, essencializante, essencialista e naturalista que durante muito tempo nos fez reféns”.
A seguir, publicamos os principais trechos da conferência de Petronio no formato de entrevista.
Rodrigo Petronio
Foto: Arquivo Pessoal
Escritor e filósofo, Rodrigo Petronio é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital – TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. É também doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. Entre suas publicações poéticas, destacamos: História natural (Gargântua, 2000), Assinatura do sol (Gêmeos R, 2005) e Pedra de luz (A Girafa, 2005). Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas de Vilém Flusser pela Editora É.
Pelo IHU, Petronio publicou Mesoceno: a era dos meios e o Antropoceno, Cadernos IHU ideias, n. 339; Yuval Noah Harari: pensador das eras humanas, Cadernos IHU ideias, n. 329; e Desbravar o futuro: a antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter Sloterdijk, Cadernos IHU ideias, n. 321.
O texto a seguir foi originalmente publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 12-06-2023.
IHU – Quem é Timothy Morton e quais suas contribuições para pensar a temática da ecologia?
Rodrigo Petronio – Timothy Morton é um filósofo referência no pensamento ecológico contemporâneo; um autor desafiador em diversos aspectos, com uma obra de difícil compreensão. Costumo dizer que a obra dele é desestabilizadora sob vários aspectos. Parece que estamos entendendo a acepção de ecologia e natureza que ele desenvolve, mas, quando percebemos, ele desenvolve alguma imagem ou conceito que nos desnorteia.
IHU – Pode dar um exemplo?
Rodrigo Petronio – Isso diz respeito ao conceito de deslocalização. Para pensar a natureza, precisamos pensá-la a partir de um nível de estranhamento em relação àquilo que é considerado natural. Já adentramos aí nos primeiros conceitos, como o de “estranhos-estranhos” ou “estranhos-estrangeiros”, segundo o qual os estranhos se manifestam e prosseguem sendo “estranhos”, desidentificáveis; não conseguimos capturá-los e trazê-los para uma relação diferencial estável. Essa é uma maneira de acessar a natureza.
O conceito de deslocalização é importante porque sugere pensar a natureza a partir de grandes dimensões. É o que Morton chama de hiperobjetos, ou seja, um objeto amplificado, exponencial, uma hiperobjetividade, objetos descomunais. Um hiperobjeto não é necessariamente um objeto grande, mas incomensurável. Não diz respeito a uma grandeza quantitativa, mas a um nível de incomensurabilidade. Por exemplo, a Amazônia é um hiperobjeto. A mutação climática é um hiperobjeto. A Terra é um hiperobjeto. O espaço sideral, as galáxias, a matéria, a estrutura que nos cerca e nos constitui são hiperobjetos.
Também tem o sentido de hipossubjetividades, que seria uma subjetividade infra-humana. Hipo, do grego, é estar abaixo, e hiper seria a exponencialização, ir para cima. A hipo seria uma subjetividade subjacente a todos os seres e, por conseguinte, estaria um degrau abaixo dos humanos. Esse é um conceito fascinante porque a partir dele Morton diz que talvez tenhamos dificuldade em definir o que é a consciência, por exemplo. Continuamos presos a modelos antropocêntricos, autocentrados porque na verdade talvez nossa consciência não seja um plus (mais), mas, sim, um menos. Aqui entramos em questões interessantes de consciência distribuída, intelecção distribuída, sensorialidade distribuída porque teríamos que imaginar essa hipossubjetividade, uma subjetividade de agências e de seres que são infra, que estão em uma região mais elementar, mais básica, mais difusa e mais universal do que a região humana. Estou avançando nestes conceitos para sinalizar o pensamento ecológico de Morton, que é um conceito desafiador para repensarmos o próprio conceito de natureza na sua raiz.
IHU – Em que consiste o pensamento ecológico?
Rodrigo Petronio – No livro O pensamento ecológico, Morton define o pensamento ecológico do seguinte modo: “O pensamento ecológico é um vírus que infecta todas as outras áreas do pensamento.” A etimologia de vírus está em vir, que é másculo, mas também diz respeito à força, à energia. É um pensamento ligado a uma energia, enérgeia. O pensamento que infecta as outras áreas do pensamento é uma metáfora potente e boa; o estilo de escrita de Morton é metafórico, recorre à literatura e à poesia. O conceito de natureza dele é subjacente à literatura e à poesia inglesa do século XIX.
Desde o começo do seu trabalho, ele se interessa na definição de natureza e isso foi se aprofundando cada vez mais até ele se tornar um pensador do conceito de ecologia. A ideia da ecologia como um vírus que infecta todas as áreas do conhecimento é uma analogia interessante da definição de pensamento dada por [Gilles] Deleuze, segundo o qual uma ideia se assemelha mais a um vírus, a um verme que captura um organismo, do que a uma ideia abstrata. Ou seja, é a concepção de que as ideias não são abstratas. A ideia estaria mais ligada a um vírus, a um verme, a um agente que “hackeia” e captura um corpo do que necessariamente a uma concepção abstrata.
Vou partir dessa noção [que o pensamento ecológico infecta as demais áreas do conhecimento] para pensarmos o estatuto da ecologia nos dias de hoje – não só da ecologia do ponto de vista epistemológico, mas também do posicionamento político da ecologia, como se pensar ecologicamente é pensar de um modo infectante. Ou seja, não é mais possível pensar fora da ecologia. Essa é a minha premissa porque a ecologia tem se convertido no pensamento, por excelência, do século XXI. Não são a política, a arte, a economia, a literatura, a filosofia, a sociologia ou a antropologia. No fundo, todas as ciências têm sido infectadas pela ecologia, embora muitas ainda não tenham se dado conta. Elas precisam ser cada vez mais infectadas para que tenham a noção de que a ecologia é um eixo epistêmico que cruza todos os saberes. E não é só um eixo epistêmico, mas um eixo político sem o qual não vamos conseguir ir adiante com a civilização. Basicamente é isto: não vamos sobreviver se não pensarmos do ponto de vista ecológico. O estatuto ontológico e epistemológico da ecologia, hoje, é este e Morton traz muito bem esta centralidade.
Farei uma retrospecção fora do horizonte proposto por Morton para posicionar o conceito de ecologia e entender de onde ele vem. Dentro dessa pequena parametrização, veremos a originalidade do pensamento do autor.
O conceito de natureza é tão antigo quanto a filosofia e o homo sapiens. As religiões mais antigas da humanidade são religiões que pressupõem agências de não humanos, ou seja, as águas, as aves, os vegetais, os minerais, o céu, o sol, as estrelas. O animismo, imaginando que seja uma protorreligião, uma primeira cosmologia dos humanos, está distribuindo agências a partir de seres que podemos considerar naturais. A noção de natureza é bastante clara, proteica e complexa porque cada cultura, ao longo da história, tem um recorte da natureza, o qual tem uma enorme variabilidade espacial, geográfica, cultural e temporal.
A partir disso, podemos pensar que a noção de natureza é estruturante do ser humano enquanto humano. Os pré-socráticos construíram uma cosmologia baseada em elementos da natureza: fogo, terra, água e ar, e isso adentrou toda a filosofia ocidental, o pensamento humano e a ciência, se pensarmos que a ciência também é uma investigação sobre a natureza. Com isso estou querendo dizer que o conceito de natureza possui uma generalidade muito grande e que é diferente do conceito de ecologia. Quero trabalhar uma dissociação entre natureza e ecologia porque intuitivamente nós achamos, o tempo todo, que esses conceitos trabalham juntos, mas podemos pensá-los como dissociados, a partir de uma dissociação profunda, a ponto de pensar até em uma “ecologia sem natureza”, que é o título de um dos livros de Morton.
IHU – Pode explicar essa noção? O que significa ecologia sem natureza?
Rodrigo Petronio – Ernst Haeckel é um dos primeiros a cunhar o termo ecologia e o utiliza em um sentido micro, microscópico, molecular da vida, ou seja, faz uma microscopia da vida. A palavra ecologia vem de oíkos, que quer dizer “casa” em uma das acepções. Ele é um monista e seu sistema da natureza se baseia em uma perspectiva filosófica monista.
O monismo é a corrente da filosofia que acredita que existe uma única substância, e que todas as substâncias e a pluralização das substâncias possa ser endereçada a uma única substância. Ou seja, toda a natureza, toda a diversificação do cosmos da natureza, são modalizações de uma mesma substância. Isso é muito importante para a filosofia da natureza de Haeckel porque ele vai pensar a monera, ou seja, os protosseres mais simples, menores, que deram origem à complexidade da vida. A noção monista pressupõe uma protonomia, uma protopessoa, uma primeira vida, e a noção de monos, que é um, que é simples. O reino monera, de moneras, de seres extremamente simples, seria o monos, a unidade, e teria dado origem à diversidade da vida.
A especificidade do oíkos também demarca a casa, a ecologia, como uma investigação estrita, circunscrita a uma determinada região. Precisamos levar a sério as metáforas; por isso que grandes filósofos como Nietzsche e Heidegger foram filólogos também: precisamos fazer essa retrospecção para entender a materialidade e a concretude do conceito. Em algum momento o conceito não foi abstrato; foi extremamente concreto. Quando falamos de casa, estamos falando de quê? Quando falamos de ecologia, e a endereçamos para o grego oíkos, que é casa, a primeira coisa que precisamos imaginar é que uma casa é um limite, ela é delimitada; não existe uma casa geral. Não existe uma casa que contém tudo, o planeta inteiro. Eu estou em uma casa, assim como existem milhares de outras casas que são habitadas.
Essa noção circunscrita e delimitadora mostra que a casa é feita de paredes, é um meio que tem um invólucro, uma delimitação entre o dentro e o fora; não é um meio anódino, sem delimitação não formal, desformalizado. Não é geral, não é grande, não faz parte de uma paisagem, de um grande recorte. A casa é pequena. Então, esses dois conceitos [natureza e ecologia] tratam de algo que é micro, que precisa ser visto pontualmente e não de modo generalizado; ao mesmo tempo em que é algo delimitado, ele não é amorfo; possui uma membrana, um envoltório, um delimitador. Esses dois conceitos são centrais para pensarmos a ecologia porque a ecologia não é o estudo de algo chamado natureza. Ela é um estudo de lugares, de meios, de sistemas fáticos, localizados e específicos, em primeiro lugar.
Antes de pensarmos em grandes sistemas e grandes metassistemas – uma Ciência do Sistema Terra ambiciosa, que inclua todos os seres vivos e não vivos, orgânicos, inorgânicos –, precisamos pensar pontualmente. Precisamos pensar nos meios, nas mediações, nas circunscrições. Um meio é sempre um meio restrito e não é geral; é fático e posicionado e está em um determinado local. Estou insistindo nesta visão porque um biólogo estoniano chamado Jakob von Uexküll criou a biologia existencial e o conceito de meio circundante, ou seja, um meio que está circundado, um meio que tem uma parede, uma membrana, e é circundado por algo. Quando falamos de meio circundante, pensamos em cada ser vivo específico que está dentro de um envoltório, que é aquilo que medeia e intermedeia sua relação com outros seres vivos que estão aglutinados – e isso em uma escala infinita.
Uexküll implode o que costumamos chamar de natureza porque não existe uma grande plataforma geral chamada natureza. Existem apenas infinitas microplataformas, que são infinitas plataformas especiais; e a plataforma dos humanos é apenas uma dentre tantas plataformas infinitas especiais. Para eu definir uma natureza geral, significa que eu não sou geral porque estou fora da generalidade. Enquanto humano, eu sou uma exceção a essa regra que é a regra da natureza, que é a generalização. Quando implodimos a generalização, não temos mais uma plataforma geral, que seria um grande guarda-chuva dentro do qual caberiam todos os seres vivos, toda a natureza, e outro guarda-chuva que seria o ser humano, que poderia dizer que faz parte de outra natureza, qual seja, a cultura. Aí entramos no antagonismo entre natureza e cultura e nesse tipo de dualismo, que vem da hipótese e da ilusão de que existe uma natureza, que seria esse fundo geral no qual estão os seres vivos e o ser humano na perspectiva antropocêntrica.
Quando Uexküll implode essa visão, entramos numa forma mais interessante de pensar a ecologia. Pensar ecologicamente é pensar fora do dualismo e para fora das generalizações. Se tudo é pulverizado, como conseguimos ter uma ação política para pensar, por exemplo, a Amazônia e os hiperobjetos? Como conseguimos unificar esses objetos? Existem alguns caminhos para essa unificação. Um deles seria o da chamada ecologia profunda, definida anteriormente, caminho que acaba se tornando mais famoso e conhecido a partir da obra de James Lovelock.
A ideia básica da Teoria Gaia é a teoria sistêmica. Quando falamos de Gaia, não estamos falando de natureza, mas de sistema. Os sistemas são os operadores e mediadores desses infinitos micromundos que vão conectando os diferentes micromundos em escala, em um primeiro ponto. Em um segundo ponto, nós, humanos, e não humanos, orgânicos e inorgânicos, animais e inanimados, vegetais e minerais, somos unificados a partir do conceito de sistema.
A fronteira entre cultura e natureza já foi borrada; temos que pensar apenas em sistemas e subsistemas e teríamos que pensar em um grande metassistema que uniria a escala sistêmica e os infinitos sistemas de uma entidade de um superobjeto tão enorme quanto a Terra. Essa é uma saída, um caminho, para pensar a unificação, que é a unificação possível, a unificação desnaturalizada. Ou seja, não estamos positivando a natureza, mas estamos imaginando que o processo da natureza também inclui seres altamente artificiais como cidades, tecnologias, processos cognitivos, processos comunicacionais e processos altamente artificiais como a inteligência artificial. Tudo isso está dentro do sistema que chamamos de sistema terra.
O caminho para pensar a ecologia na sua radicalidade é um caminho que vem pela teoria crítica da Escola de Frankfurt, e pela chamada filosofia especulativa, que é uma linha da filosofia que tem dez, 15 anos, na qual Morton é alocado. Não vou entrar na discussão sobre se ele é ou não especulativo e em que medida, porque isso é muito difícil de classificar à medida que cada autor tem uma obra específica, com suas individualidades, e, às vezes, ficamos encaixando os autores em vertentes e isso pode soar ruim no sentido de encaixar os autores em determinadas vertentes.
O pensamento ecológico de Timothy Morton e o viver no Novo Regime Climático:
IHU – O que é a filosofia especulativa e como a ecologia de Morton se insere nessa corrente filosófica?
Rodrigo Petronio – Resumindo bastante, podemos pensar dois pontos centrais da filosofia especulativa. Um ponto está relacionado ao outro. O primeiro é a crítica feita ao correlacionismo que vem de Kant. O correlacionismo está nas antinomias kantianas, e é a noção entre noúmeno e fenômeno que se desenvolve pela fenomenologia para se pensar a noção consciência-mundo. Na obra de Morton há uma teoria da relacionalidade e da coexistência profunda. A filosofia especulativa não abandona as teorias relacionais nem o conceito de relacionalidade, e tampouco o conceito de “malha”, de Morton, e a profunda teoria das conexões. Ela faz, ao contrário, uma crítica a uma acepção específica, que é o conceito de correlacionismo, correlação: ideia-coisa, consciência-mundo, noúmeno-fenômeno, que é a própria questão das antinomias.
IHU – Qual a razão da crítica?
Rodrigo Petronio – Porque subjaz a essa estrutura correlacionista um segundo ponto, o antinômico das relações entre natureza e cultura. Aí podemos não ser necessariamente dualistas – Kant não é um filósofo dualista, Descartes o é –, mas as antinomias estão postas e o correlacionismo está posto. Há uma crítica forte da filosofia especulativa ao dualismo e ao correlacionismo e à consequência dessas duas categorias.
Existem vários autores dentro dessa corrente especulativa, mas a especificidade dessa vertente especulativa é que, para criticarmos e minimizarmos a visão correlacionista, é preciso retomar um conceito que foi negligenciado em boa parte da história da filosofia, isto é, o conceito de infinito. O infinito não tem dentro e fora, não tem começo e fim, não tem positividade. Para o infinito, não existem exterioridade representacional e interioridade subjetiva. Para o infinito, não existe uma separação entre sujeito e objeto, não existe uma separação entre cultura e natureza porque o infinito é uma força centrípeta, uma força de desconstrução e de deslocalização – entrando no conceito de Morton –, na qual as unidades macroscópicas começam a ser pulverizadas, dinamitadas, vão sendo implodidas porque o infinito diz respeito justamente ao pensar de modo abissal. Por isso, tenho definido a ecologia de Morton como uma ecologia do abissal. Ela não é uma ecologia das profundidades porque ela vai cavar camadas mais elementares e buracos mais profundos e tectônicos da terra para investigar, de fato, o que é a ecologia e como podemos pensar a terra, o universo e a vida que nos habita e nós habitamos reciprocamente.
Infinito é um conceito operador que tenho desenvolvido. Ele é importante porque descostura as noções já cristalizadas e inviabiliza as chamadas filosofias representacionais e filosofias que vêm desde Kant. Não é possível pensar de um modo representacional, como se houvesse uma natureza, um objeto, que chega a mim por meio de uma imagem, por exemplo. Não é possível fazer essa relação e nem especular a relação de correlação. Também não é possível pensar na chave do dualismo porque, se existem diferentes mundos objetivos e diferentes mundos subjetivos, ambos os campos acabam sendo drenados um pelo outro.
Em decorrência disso, começamos a pensar no conceito de “malha”, que é um dos conceitos centrais de Morton. A malha é diferente da teoria das redes de Latour. Para Morton, ela tem uma dimensão cósmica, quase de um vórtice. O vórtex é um espaço de singularidade que drena, suga e desconstrói o que está ao redor dele. Pensar do ponto de vista da malha é pensarmos, por exemplo, em processos atômicos, complexos, de materialidades galácticas que atravessam nossos corpos, nossos meios, rios, mares, oceanos, atravessa nossa mente porque nosso corpo está articulado nesta malha. Do ponto de vista literal, a malha é infinita porque a malha se identifica com o universo.
A perspectiva ecológica e cosmológica, em Morton, seria quase uma conexão possível em que o oíkos, a ecologia, seria o lugar do vórtex. A conexão do vórtex com a cosmologia, com a estrutura macro, seria infinitesimal, estaria ligada ao infinito. Dentro disso, a malha pressupõe outro conceito importante dentro dele, que é o conceito de interconectividade, de coexistência. Peter Sloterdijk, diferente de Morton em vários aspectos, no ponto do estatuto da coexistência se aproxima bastante. Sloterdijk diz que a coexistência é anterior à existência. Primeiro coexistimos para depois existirmos. Claro que é uma paráfrase da velha frase de Sartre, que está, por sua vez, criticando a metafísica da substância. Acreditava-se que a essência fosse anterior à existência. Sartre inverte isso e propõe que a existência é anterior à essência; primeiro existimos para depois sermos ou nos tornarmos ou virmos a ser. Por isso estamos condenados a ser livres, como diz Sartre.
Sloterdijk dá um passo adiante e diz que coexistimos antes de existir. É como se houvesse uma malha, uma rede, uma estrutura esferológica no sentido de Sloterdijk, que é uma estrutura da pura relação ou de uma relacionalidade infinita que dá ensejo à formação de seres que coexistem faticamente no mundo; é uma estrutura intramundana. A possibilidade da existência desses seres só ocorre porque existe a prerrogativa da coexistência. A noção de coexistência se inter-relaciona com a conectividade e se relaciona com o conceito de solidariedade. Estamos diante de uma filosofia e de uma ecologia obscura, sombria. Essa é a definição de Morton: dark ecology. É um novo ramo da ecologia que ele está desenvolvendo.
A ecologia sombria é a ecologia que não se fundamenta. A base dela, se é o infinito, está tensionada entre o infinito e o nada. O infinito decompõe os limites porque estamos enredados nesta malha e a malha nos descostura porque ela não tem uma circunscrição clara. A malha é infinita. Embora produza a interconectividade, ela produz coexistência; é infinita. Ela não tem limites no sentido de circunscrições. Então existe a interconectividade entre todos os seres e não se pode dizer que não, mas, ao mesmo tempo, estamos tensionados entre o infinito e o nada, como diria Pascal. O nada é a base da dark ecology.
O nada é o vazio, é a grande categoria, o grande operador dessa ecologia porque ele é o modo pelo qual estamos sistematicamente nomeando entidades, nomeando seres e, ao mesmo tempo, desidentificando e desinraizando esses seres de qualquer vestígio de natureza que eles possam ter. Por isso esta é uma ecologia radicalmente antinaturalista. Nós precisamos produzir relações e conexões para haver uma relação política, para haver convergência, mas, para fazê-lo, paradoxalmente, precisamos esvaziar e dessubstancializar os seres; e é por isso que podemos pensar em uma ecologia sem natureza.
Quando Morton se refere a uma ecologia sem natureza, ele fala de uma mutação sem natureza, a partir de uma leitura clássica e criativa diretamente de Darwin. Ecologia sem natureza é justamente isto: um horizonte, um lugar, uma ecologia que inviabiliza a essencialização e a naturalização dos seres. Esse é o ponto que comentei anteriormente, mas que ainda não desenvolvi, de uma conexão com o pensamento crítico.
Como sabemos, a dialética negativa desenvolvida por Adorno, a noção de esclarecimento e a teoria de modo geral trabalham muito com a noção de negatividade. Toda positividade pode ser um mero instrumento do capitalismo no sentido de gerar algum nível de reificação dos processos. A reificação da positividade é um primeiro momento do processo de reificação produzido pelo capitalismo. Quando positivamos algo e dizemos que aquilo é natureza, no fundo, talvez, estejamos somente operando uma chave do capitalismo para dizer que aquilo é natureza. Mas será que aquilo não é simplesmente uma reificação e uma objetificação de um processo muito mais vasto do próprio modus operandi do capitalismo? Nós estamos seccionando esse processo para definir positivamente algo que é natural? Será que não temos que observar pela sombra da ideia? Talvez não precisemos nos ater às ideias, ou seja, à positividade do conceito, mas tenhamos que pensá-lo na sua negatividade constitutiva. Ou seja, na sua negatividade ontológica, no seu modo de ser negativo. A natureza nunca está pronta, ela nunca pode ser plenamente positivada.
Um exemplo simples para pensar isso é o seguinte: quando falamos “vou para a praia” ou “vou para o campo para ter mais contato com a natureza”, isso não quer dizer que não possamos ir para o campo e usufruir dessa experiência, não quer dizer que o mar não seja uma entidade natural, geológica, assim como as florestas e o campo; não é nada disso que está em jogo. Estamos fazendo um debate epistemológico e ontológico. O debate é o seguinte: quando referimos que a praia é natural, que o campo é natural, não estamos reféns do próprio modo da industrialização? Isto é, não estamos reféns do modo da industrialização que produziu esse seccionamento e essas gavetinhas específicas por meio das quais pegamos nosso carro e saímos da cidade para respirar um pouco da natureza? Ter consciência de que a positividade da natureza sempre diz respeito a uma negatividade do conceito que foi oculta, de uma situação e uma circunstância que foi oculta justamente pela positivação, é ter uma consciência crítica do processo que nos cerca e ter uma visão, conceituação e concepção crítica de ecologia. É interessante que a ecologia, no sentido de Morton, é extremamente crítica no sentido de desnaturalizar, dessencializar, dessubstancializar aquilo que nosso sentido intuitivo reportaria como sendo algo natural, ecológico ou mesmo algo sistêmico; até o conceito de sistema precisa ser revisto à luz da ecologia.
Quando pensamos em sistemas, pensamos em certos sistemas operacionais e se, no limite, existe uma metassistema que, no limite, pode ser infinito, na imanência do conceito de sistema já existe uma certa delimitação clara, uma formalização; são modos de formalização. A própria teoria sistêmica é altamente formalizável e formalizada. Morton está pensando a partir dessa quase anomia e experiência abissal da natureza que não é natural e, portanto, por não ser natural, é infinita e, por ser infinita, é altamente conectada e coexistente.
Nós coexistimos com uma malha que nos conecta a nuvens de neutrinos de outras galáxias. Por mais lisérgico e estranho que possa parecer, isso é possível. É possível porque no fundo subjaz a essa noção de ecologia o vazio, ou seja, o vazio é o grande operador porque o vazio é uma forma de pensar a biologia e a ecologia fora do registro biologizante, naturalizante, essencializante, essencialista e naturalista que durante muito tempo nos fez reféns. O século XX veio demolir, da melhor forma possível, a herança essencialista do pensamento, porque, de fato, o essencialismo não consegue dar grandes contribuições ao pensamento.
Essa ecologia espaçosa, como diz Morton, é uma ecologia que demanda muito espaço, é uma ecologia não lugarista. Como Deleuze, Morton também cria conceitos, como o de deslocalizar os lugares. Esta é uma ecologia deslocada porque não tem um locus próprio; não existe um topos, não existe um lugar que coordena, orienta e centraliza todas as disseminações de lugares na malha. Por isso, é uma ecologia deslocada ou uma ecologia espaço-siderada; não é uma ecologia do espaço-sideral. Não se trata de projetar antropocêntrica e antropomorficamente a nossa ecologia terrestre nas galáxias extremas e distantes no espaço sideral. Isso pode ser só mais uma variante do antropomorfismo. Espaço-siderado é diferente; é deslocalizarmos o nosso âmbito, ou seja, desfazermos, descontruirmos o nosso lugar, pensando a partir dos estranhos-estranhos, estranhos-estrangeiros. São estranhos que permanecem no seu estrangeirismo, na sua estranhidade ou estranheza.
Esse conceito de Morton é muito forte porque uma ecologia espaço-siderada é uma ecologia que não diz respeito à projeção do espaço-sideral; é o espaço-sideral que invade o espaço local e o deslocaliza. O espaço sideral é que invade o nosso corpo, as moléculas, a natureza atômica e vai nos fracionando e subdividindo em microcorpos coexistentes e cada vez mais infinitesimais. Isso é uma ecologia espaço-siderada que já abandonou a Natureza com N maiúsculo. Para isso, é preciso “despensar”, pensar fora, porque o pensamento já é domesticado. Mesmo na filosofia, muitas vezes o pensamento foi domesticado. É preciso desmundanizar, dessencializar, ou seja, despensar o pensado para ampliar o horizonte do pensável. Esse é o movimento e, por isso, há esse movimento de deslocalização das malhas e do infinito.
Essa noção é muito bonita porque o infinito não é um infinito opaco e também não é um infinito puramente formal. Não é um infinito cartesiano, nem sequer um infinito pascaliano. Não é o infinito potencial, dos gregos e tampouco um infinito que pode se identificar com Deus. É um infinito que implica intimidade. Esta é uma frase de Morton: “Infinito implica intimidade.” Essa é uma leitura que ele faz do conceito de infinito a partir de Levinas. Isto é muito bonito e interessante: ser outro, ser alteridade radical; esse Outro com O maiúsculo que Levinas está o tempo todo tateando em sua obra. A obra de Levinas não é nada mais do que uma grande desconstrução das totalidades e totalizações em benefício desse ser outro, dessa outridade radical que é o Outro com O maiúsculo, que é o infinito e, por isso, implica intimidade. Intimidade coexistente, relacional, que é abissal e participa em nós como seres infinitamente distantes.
Morton não trabalha muito com questões de teoria quântica, mas tenho pesquisado isso e é muito interessante observar as conexões possíveis, com todo cuidado possível, obviamente porque a teoria quântica é um lugar muito pantanoso e cheio de meandros. É preciso tomar muito cuidado para não produzir analogias fracas. Mas a própria noção de emaranhamento está muito ligada a isto: partículas gêmeas em um universo que produzem uma ação à distância e que mantêm seu estado germinal, mesmo em posições e lugares diferentes e de galáxias diferentes. Não há como não pensar essa trama, essa malha, em conexão também com esse emaranhamento, ainda mais pensando a categoria de vazio que, para a teoria quântica, é central e nuclear. Quem tem popularizado isso é o grande cosmólogo Carlo Rovelli, que estabelece contatos curiosos entre a filosofia budista e a teoria quântica a partir do conceito de vazio, de não fundamento.
A noção de todo e totalidade é importante para Morton; o autor está o tempo todo tentando tatear essa noção para pensar as coexistências, a malha, a conexão. Precisa haver algum nível de totalização, ainda que seja uma totalização provisória. Mas, muitas vezes, ele usa os termos “todo” e “totalidade” entre aspas justamente para reter o perigo que a palavra totalidade envolve. Geralmente, quando pensamos em totalidade no sentido ecológico, acabamos endereçados para um tipo de pensamento holista. Holos, em grego, quer dizer todo. Os holismos são as teorias que oscilam entre teorias sistêmicas e outras formas de holismo que pressupõem algum nível de totalização, ainda que não seja a natureza. Nesta noção de ecologia, não existe essa totalização e isso pode ser relacionado a uma frase de Adorno que é muito boa: a verdade é um não todo. Sempre temos que ter isso em mente. A verdade é a fratura, é a não totalização possível dos processos, a não totalidade absoluta; ela é um devir, um momento negativo. Não é uma positividade porque não temos e nunca teremos acesso à totalidade. A racionalidade não é a totalidade. Justamente a racionalidade demanda contingência, fratura, precariedade, para que sejamos racionais. Sob o signo da totalização, existe muito totalitarismo. Sei que é um trocadilho rápido e perigoso, mas é inescapável. Por trás de muitos projetos totalitários existe alguma noção de totalidade ou de totalização possível. Precisamos questionar e descontruir essa noção de todo. Essa é uma das premissas de Morton também.
Para Morton, como não existe natureza, não existe uma finalidade última, ou seja, as finalidades são contingentes. Isso pulveriza todos os modos da vida e todos os modos pelos quais a vida atua no mundo. Aí, há passagens incríveis de Morton falando das letras DNA, das vidas das palavras, das justaposições, das bricolagens, como se a “natureza”, a biologia, a vida fossem um trabalho de bricolagem, de soma de pedaços, de fragmentos, de otimização de fragmentos, de replicabilidade infinita. Ora, se é replicabilidade, é cópia; não é original. E se é cópia, não é essência de nada. Então vejamos: se a definição de vida é autorreplicabilidade da informação genética, se a vida é distinta de todos os outros seres inorgânicos porque a estrutura fundamental dela é a replicação e a autorreplicação da informação contida no genoma, isso possibilita a expansão da vida e a diversificação, isto é, possibilita que a vida venha a ser aquilo que ela é. Se trabalhamos com replicação, não trabalhamos com o original. Então não existe uma essência, um primeiro; não existe um proto. E ainda que cheguemos a conhecer uma protovida, um proto ser que seja a primeira vida, certamente vai haver um espaço de transição entre o orgânico e o inorgânico, e voltamos a essa escalada do infinito.
É importante frisar a noção monstruosa – no melhor sentido da palavra – de natureza que surge a partir disso, no sentido de quimeras, de seres que são partes construídas a partir de outras partes. A partir disso, toda a ideia de que existe uma harmonia da natureza cai por terra. Essa ecologia não está ligada à harmonia da natureza; está muito mais ligada a uma desarmonia, a uma junção de pedaços, de criaturas quiméricas feitas de pedaços. O ser humano não é nada mais do que uma coleção de pedaços; todos os seres vivos são pedaços que a partir do seu telos [finalidade] específico, a partir da singularidade das espécies, dos seus ecossistemas, foi sobrevivendo e obtendo sucesso evolutivo. Essas colagens foram se colando cada vez mais e foram evoluindo e se complexificando a partir de outras colagens.
O materialismo do pensamento ecológico é um materialismo não substancialista. Ele parte da premissa do materialismo, mas é um materialismo que está o tempo todo se desfazendo daquela substância que poderia conferir alguma identidade aos seres, uma identidade imutável, uma identidade estável. Aí entramos na teoria de gênero desenvolvida por Morton, que é extremamente potente porque nos diz que a natureza é queer. Ou seja, segundo essa premissa, o que são os diversos pedacinhos biológicos que vão configurando os organismos e organismos cada vez mais complexos? Teríamos que inverter a nossa prerrogativa: se não existe a natureza, um plano de fundo unificador, que unifique todos os processos, se a mutação – que é vida – é o processo por meio do qual esses pedaços e fragmentos de DNA vão se replicando e gerando esses compósitos ao acaso, com finalidades localizadas e não gerais, precisamos ter um outro ponto de vista em relação a gênero e sexualidade. É como se sempre estivéssemos vendo o gênero do ponto de vista dos animais, mas os animais são apenas fenômenos muito particulares e específicos de um grande hiperobjeto, e, subjacente a esse grande iceberg que não conseguimos enxergar, está a maior parte da vida, que é composta de seres bissexuais, pansexuais, assexuais, intrassexuais, intersexuais, multissexuais.
Morton diz que talvez os animais sejam apenas a ponta do dedo mindinho de uma mão que é um moinho da vida, que inclui seres, vírus, bactérias, fungos e seres de difícil classificação dentro da vida. Mas é esse moinho que está produzindo todo o fenômeno vivo. Então não podemos legislar em termos de gênero a partir da ponta do dedo mindinho e definir o moinho todo. O processo tem que ser justamente o oposto, e essa é uma das bases do processo da filosofia especulativa como eu a entendo, não necessariamente no sentido de Morton ou dos filósofos especulativos, que é o de observar não o oceano a partir da ilha, o moinho a partir do dedo mindinho, mas observar a ilha a partir do oceano.
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A ecologia fundamentada no vazio: “O ser humano não é nada mais do que uma coleção de pedaços”. Entrevista especial com Rodrigo Petronio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU