Mudanças na Igreja Católica do século XXI e o impacto na sociedade brasileira. Entrevista especial com Brenda Carranza

Teóloga e cientista social analisa como – e a partir de quais pautas – a direita brasileira está se alinhando à Igreja Católica

Arte: Mateus Dias

Por: Edição: André Cardoso | 31 Agosto 2024

O século XXI traz consigo a ideia de mudança. O surgimento das redes sociais e a inserção cada vez maior das tecnologias na sociedade mudam a configuração na vida humana. As instituições, a partir desse cenário, também buscam se adaptar e a Igreja Católica não é diferente. É a partir desta proposição que a teóloga e cientista social Brenda Carranza discute as mudanças no catolicismo neste século e como isso afeta a sociedade brasileira.

Na videoconferência intitulada “Incidências ou não da Igreja Católica na sociedade brasileira no século XXI”, promovida pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, Brenda Carranza afirma que há uma união entre parte da Igreja Católica e a ultradireita no Brasil nos últimos anos. “O que sustento é que estamos diante de um catolicismo com uma inflexão ao lado do conservador e de direita diante de uma nova conjuntura social, novos pressupostos de estrutura de Estado e sociedade democrática, e que se pauta por um projeto político que visa ter como voz ordenadora o autoritarismo”, pontua.

Segundo ela, há pautas que unem a velha e a nova direita cristã. “O fio condutor que une a pauta conservadora agora são as campanhas antigênero. Essa direita cristã traz velhas reivindicações: guerra cultural, comunismo, armamentismo. E uma nova direita cristã traz também a demonização da agenda pró-direitos, direitos reprodutivos, agenda LGBT, as alianças no Congresso e na formulação de políticas públicas”, diz.

A atividade integra o III Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral: A pastoral da Igreja do Brasil no século XXI: balanço, incidências, perspectivas, iniciativa do Grupo de Pesquisa Teologia Pastoral da FAJE, em parceria com outras instituições de ensino de Teologia.

A seguir, publicamos a conferência de Brenda Carranza no formato de entrevista.

Brenda Carranza | Foto: Arquivo Pessoal

Brenda Carranza é graduada em Teologia pela Universidade Francisco Marroquim – UFM, na Guatemala, bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, e bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas/Pontifício Ateneo Santo Anselmo. É mestra em Sociologia pela Unicamp e doutora em Ciências Sociais pela mesma instituição. Possui pós-doutorado no PPG em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

Confira a entrevista.

IHU – O que você considera como as mudanças mais significativas do fim do século XX e início do século XXI no cenário brasileiro da Igreja Católica?

Brenda Carranza – O catolicismo midiático, a Renovação Carismática Católica e a pentecostalização brasileira. Esses são os pressupostos de uma mudança no fim do século XX. Qual seria o pressuposto do século XXI? Sabemos que tínhamos ferramentas analíticas para imaginar o que foi uma das inflexões fundamentais do século XX: o Vaticano II com sua teologia latino-americana. Aquelas ferramentas trabalhavam, a partir das Ciências Sociais, as concepções sobre sociedade, injustiça e desigualdade.

A partir da fala do professor Jessé de Souza sobre a questão escravocrata como princípio fundamental de interpretação da sociedade, sabemos que nossa sociedade começa assim e segue, até hoje, com um nível gigantesco de desigualdade mesmo depois de tanto tempo. A desigualdade está pautada no Vaticano II e nas conferências episcopais da teologia latino-americana.

Outro pressuposto é imaginar que existiu uma leitura da Renovação Carismática Católica na sua pentecostalização do catolicismo, e a Teologia da Libertação com sua defesa por um catolicismo engajado com o povo nas questões sociais. É uma leitura muito simplista, tanto de agentes pastorais como da mídia religiosa. A mídia colocava a renovação carismática como a renovação de tudo, que poderia significar uma renovação espiritual, performática e litúrgica.

A Teologia da Libertação representava, para a Igreja Católica, seu compromisso social e era política enquanto não era espiritual. Há anos eu refuto essas teses. A renovação carismática, a pentecostalização, a direita cristã e a direita católica têm um projeto político e se expressam politicamente em todas as instâncias, assim como a Teologia da Libertação tinha um projeto político e se expressava em todas as instâncias, principalmente em coletivos sociais e em bases pastorais.

Essa visão do fim do século XX seria uma maneira de abordar o que seriam as mudanças dentro da Igreja Católica? Diria que a presença da Igreja Católica na esfera pública e política ressignifica o compromisso social e altera a exposição midiática da Igreja. No início do século XXI, pode-se dizer que algo se desviou dentro do catolicismo. Há um deslocamento interno no catolicismo institucional que passa de uma postura de reivindicação de hegemonia societária (ela é a voz da sociedade mundial do cristianismo) para uma aliança estratégica no campo religioso evangélico, tendo a pauta reprodutiva, os direitos e a ideologia de gênero como alvo de perseguição.

Há também uma agenda moral comum por toda América Latina, alinhada a diretrizes do Vaticano e estratégias que alavancam a visibilidade midiática e política no Brasil. O catolicismo e sua leitura do final do século XX e da segunda década do século XXI não nos ajudam a entender as mudanças internas do catolicismo. Elas passam por setores católicos que se alinham com uma pauta moral. Essas alianças com setores conservadores evangélicos, que trabalham uma pauta de moralidade que reverbera na mídia religiosa, levam para a frente pressupostos de moralidades públicas, religiosas, éticos e sociais do cristianismo como sendo pressupostos sociais e éticos da sociedade brasileira. Um Brasil cristão, por ser de maioria cristã, impõe a todos a sua moralidade. O ultraconservadorismo, dentro do catolicismo, trabalha com a visão de que o mundo está em decomposição moral, uma visão totalizante do mundo necessária para manter um status quo e defender a tradição e a moralidade de um tipo de família. Vai haver uma mudança litúrgica e, diante disso, há uma defesa da liturgia tradicional e do clericalismo.

Falo de neoconservadorismo a partir de afrontas à democracia, às pautas de direitos e da interseccionalidade social e dos marcadores sociais. Não se pode falar de religião se não se fala de sexo, sexualidade, raça, gênero, etnia, desigualdade social. Wendy Brown, uma filósofa política, trabalha o conceito de neoconservadorismo na linha de, quando as instituições democráticas são atacadas, elas precisam de uma contrarreação.

IHU – Você fala em uma “ultradireita católica, do papel das mídias sociais católicas e do fortalecimento da ala conservadora”. O que isto significa?

Brenda Carranza – Há afinidades ideológicas com uma projeção midiática desta tendência ultraconservadora. Um dos grandes parâmetros dessa inflexão contextual é o governo Bolsonaro. Poderíamos tecer os personagens católicos que apoiaram a representação de um governo de ultradireita. Essa teologia política traz a defesa da moralidade cristã e da visão de mundo nos moldes da corrupção porque é uma moralidade política sobre os problemas da desigualdade social.

Essa inflexão tem uma grande reverberação popular. Li um texto que traz os influenciadores digitais católicos, seus efeitos e as perspectivas teológicas e pastorais. Entre os influenciadores estão o padre Paulo Ricardo, o padre Fábio de Melo e outros. É muito interessante por mostrar o impacto desses influenciadores na sociedade e na inserção popular através de um clique no celular.
São também youtubers católicos na linha deste conservadorismo, que questionam a autoridade e trazem suas afinidades ideológicas com a ultradireita. Há uma moralidade sexual e na corrupção, que veem como fonte dos problemas sociais a corrupção e não a desigualdade. Temos uma agência social que se torna porta-voz de um tipo de catolicismo.

Se avançarmos na recomposição do catolicismo em uma imagem interna, teremos muitos elementos que nos levam à conclusão de que estamos em um novo momento do catolicismo. A primeira coisa, a partir de uma pesquisa que fiz com Agenor Brighenti e outros pesquisadores sobre o novo clero brasileiro, é entender como funciona este clero e o que ele traz como visão de mundo e de Igreja.

Achei interessante um texto de Romero Venâncio onde ele coloca em discussão, a partir de uma pesquisa realizada na França, como o clero pode estar malformado de um abandono da esquerda na formação das bases religiosas do catolicismo e como as redes sociais preencheram essas lacunas. Quais são as fontes de formação do novo clero brasileiro? Nas aulas do padre Paulo Ricardo e nos textos de Bernardo Küster. Essas bases sociais precisam ser retomadas.

Figuras influentes e significativas do novo catolicismo

O padre Lancelotti é uma figura de incidência social, política e midiática no estado de São Paulo, mas com projeção nacional a partir de sua proposta de leitura das necessidades sociais. É um projeto de sociedade, uma visão de mundo e uma proposta de interpretação do catolicismo a partir da chave social. Podemos dizer que o padre Lancelotti representa um catolicismo progressista, de Teologia da Libertação, que interage com diferentes esferas sociais a partir de uma realidade concreta: os moradores de rua.

A segunda figura é o deputado federal Eros Biondini. É um católico carismático, ascende como cantor gospel, vira deputado, participa intensamente do Congresso Nacional e agora está com sua filha, candidata a vereadora em Minas Gerais e possivelmente seguirá uma saga familiar política. Ela também seria representante de um novo tipo de interpretação sobre o papel da mulher em um grupo ligado a uma visão antifeminista. Podemos localizar Biondini dentro de uma política institucional católica que adere a projetos que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB tem posto em discussão.

A terceira figura é Christine Nogueira dos Reis Tonietto. Em 2018, Chris Tonietto foi a congressista parlamentar mais jovem e mais bem votada do Brasil. Foi candidata em nome da religião cristã, da sua fé e do seu engajamento católico. Ela também é fundadora do grupo ultraconservador do Rio de Janeiro, Centro Cultural Dom Bosco. No Congresso Nacional, ela aderiu à pauta sobre as questões da reprodução humana junto à Angela Gandra.

Por último, temos Bernardo Küster, um youtuber nordestino com alta incidência na sociedade católica, sobretudo nas redes sociais. Ele tem afinidades ideológicas com Olavo de Carvalho e com o padre Paulo Ricardo: os três direcionaram seu olhar para uma perspectiva no espectro político à ultradireita.

Por que cito essas quatro figuras? Para mostrar que temos tendências que colocam o catolicismo do século XXI com outra performance e outro tipo de incidência social. Com essas figuras há visões de sociedade em disputa: a visão progressista da Teologia da Libertação, do catolicismo social; e uma visão de mundo conservadora como estratégia de posicionamento no espectro social e que atravessa toda a alteridade relativa. Isso significa que nós temos o conservadorismo como uma estratégia que reativa relações com o outro. Observa como o outro se posiciona e isso tem a ver com a defesa de um tipo de moralidade, família, nação. Essa visão precisa, para se defender, sempre apontar inimigos. Isso é fundamental: sempre ter inimigos.

IHU – Quais pautas unem o catolicismo brasileiro e o ultraconservadorismo?

Brenda Carranza – O catolicismo à direita está flertando com esse ultraconservadorismo que se nega a reconhecer o caráter ecumênico das iniciativas da Igreja Católica. Lembro da Campanha da Fraternidade de 2021, em que tivemos sérios problemas e fortes ataques à instituição CNBB, entidade que teve seu caráter católico posto em dúvida. Foi um problema com o Centro Dom Bosco.

É importante considerar como foi trabalhada essa campanha. Havia acusações de infiltrado da esquerda revolucionária como imposição de ideologia de gênero e a desqualificação do ecumenismo através da perseguição das organizadoras da campanha. Coloco esse fato para mostrar o ataque institucional deste Centro à instituição de caráter religioso e colegiado. Isso foi uma performance militante disruptiva que trazia consigo um modo de romper e comunicar-se com o uso das redes sociais em memes e vídeos, mas, sobretudo, aliando-se com a comunidade bolsonarista. Detectamos onde estava esse alinhamento e o perigo de performances baseadas em ódio, em discursos autoritários e que traziam uma constelação de uma teologia do poder.
O fio condutor que une a pauta conservadora agora são as campanhas antigênero. Essa direita cristã traz velhas reivindicações: guerra cultural, comunismo, armamentismo. E uma nova direita cristã traz também a demonização da agenda pró-direitos, direitos reprodutivos, agenda LGBT, as alianças no Congresso e a formulação de políticas públicas. Por isso digo que não podemos falar que alguns cuidam da espiritualidade e outros da política. Toda teologia traz seu próprio projeto político e, neste caso, o ultraconservadorismo traz um projeto político de sociedade de formulação de políticas públicas, Estado e governo.

Há uma afinidade ideológica com uma projeção midiática desta tendência ultraconservadora. Um dos grandes parâmetros dessa inflexão contextual é o governo Bolsonaro. Nós poderíamos tecer os personagens católicos que apoiaram a representação de um governo de ultradireita. Essa teologia política traz a defesa da moralidade cristã e da visão de mundo nos moldes da corrupção porque é uma moralidade política sobre os problemas da desigualdade social.

Abusos sexuais e discursos

Outro ponto importante neste contexto da inflexão do catolicismo brasileiro são os abusos sexuais na América Latina. O que está em xeque e a visão de qual Igreja está em crise com o impacto destes abusos sexuais? Uma coisa fundamental é que a imagem da Igreja Católica institucional não necessariamente é arranhada. A pergunta é onde falhamos para que a pedofilia seja um tema tão central nas redes sociais para uma crítica deste catolicismo institucional, mas, no fundo, a grande questão é: esse catolicismo se confronta com o poder? Porque todo esse escândalo de abuso, que não é só sexual, mas também espiritual, profético, aponta para uma crise institucional mais profunda. Abuso é abuso de poder e o poder como estrutura é questionado. Isso reverbera nas mídias sociais quando se pergunta qual o papel da Igreja diante destes grandes escândalos.

Outra questão fundamental é que a Igreja Católica é uma maioria geográfica, mas muitas vezes ela se comporta como minoria discursiva, submetendo-se à lógica da atuação política dos evangélicos. Isso vem sendo muito discutido: como a Igreja Católica abdica de seu poder hegemônico e renuncia a seu legado ético para se submeter a tipos de modelo corporativo de participação política. Será que a sobrevivência de um catolicismo de direita é possível somente com o apoio dos evangélicos?

IHU – Como a crise do catolicismo no século XXI é vista na atualidade?

Brenda Carranza – Uma coisa discutida é a metamorfose católica como sendo cultural e histórica. O catolicismo sempre muda para continuar sendo o mesmo. Porque ele tem, na sua estrutura, um segredo da teologia política que é: não expulsar ninguém e sempre tentar a conciliação e, caso não consiga incorporar o antagônico, ela o domestica através da canonização como dispositivo sociológico. O dispositivo sociológico que permite a Igreja Católica negociar internamente suas diferenças está na canonização e na heresia.

Uma socióloga francesa dizia que a grandeza do catolicismo é a metamorfose de continuar seu legado de poder e se manter ela mesma ao interagir com a sociedade em mudança. Essas inflexões nos ajudam a compreender as mudanças internas no catolicismo atual e como elas vão dialogar com as diferentes instâncias da sociedade.

Como fazer a leitura sociológica, epistemológica, antropológica desse catolicismo? Nos anos 70, 80 e 90, Flávio Pierucci trabalhava com a ideia de uma sociologia da religião que estava em declínio. Isso fazia com que o catolicismo entrasse em constrangimento pelo avanço estatístico do pentecostalismo. Ele falava de um tipo de catolicismo institucional atrelado às esferas políticas. Outra leitura, a partir dos sociólogos e antropólogos Flávio Munhoz Sofiati e Alberto Moreira, é que, nos anos 90/2000, há uma perda da hegemonia política da Igreja Católica pelo modelo corporativista do evangelismo. A análise ainda se fragmenta nos impactos que esse modelo traz dentro da leitura da Igreja Católica institucional, do catolicismo progressista, do catolicismo pastoral. Como esses diferentes catolicismos assimilam esta maneira fragmentada da Igreja nesta crise interna? Eles vão trabalhar com os especialistas midiáticos sobre o que seriam as verdades no catolicismo, a ética, a palavra do magistério. Pelas mídias sociais e pelos influenciadores, a verdade é interpretada a partir de uma hermenêutica de um grupo tradicionalista neoconservador que se abdica de uma forma de leitura do magistério e assume um tipo de papa e rejeita outros, entre eles o Papa Francisco.

Tudo isso tem a ver com uma imagem social enfraquecida, em um campo político confessional, mas alinhado com as questões evangélicas. O antropólogo Carlos Steil trabalha o catolicismo popular e vem observando que o catolicismo vivido está em outra rota. O catolicismo está na rota de compreender o papel das mídias sociais nessa experiência religiosa que, até agora, se dava em caravanas, em romarias e procissões.

O que sustento é que estamos diante de um catolicismo com uma inflexão do lado do conservador de direita, diante de uma nova conjuntura social, novos pressupostos de estrutura de Estado e sociedade democrática, e que se pauta por um projeto político que visa ter como voz ordenadora o autoritarismo. Se isso não é a Igreja Católica, e ela não é a maioria, podemos dizer que são grupos alinhados a outros que pensam um Brasil diferente. Isto segue a linha da ultradireita que percebe as mudanças culturais como guerras culturais e criminaliza movimentos discordantes. A criminalização de igrejas e pastorais inclusivas faz parte desse contingente de um catolicismo diferente que tenta incorporar demandas sociais do século XXI.

Há um movimento progressista se recompondo com uma nova linguagem, novos quadros, mas que não tem a mesma performance do catolicismo institucional progressista dos anos 90. Há uma mudança interna que precisa ser acompanhada.

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