13 Março 2025
O papa foi buscado nos confins do mundo, como gosta de brincar Bergoglio, e exatamente dali a sua perspectiva tem sido extremamente valiosa. E nesse sentido deve continuar seguindo “se a Igreja quer ir além de seus limites e servir a todos, então esse ministério deve estar ligado ao respeito pela alteridade e liberdade daqueles a quem ela se dirige”, retoma Tomás Halík. Se a Igreja ainda quiser ter alguma relevância no futuro, aponta o teólogo tcheco, “deve estar livre da pretensão de espremer todos em suas fileiras e exercer controle sobre eles, de ‘colonizá-los’”.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o mundo” [1], ressalta o Papa Francisco no nº 20 da sua Encíclica Dilexit nos. E nas últimas semanas, essa inteligência artificial foi utilizada para impulsionar inúmeras fake news, com desinformações de todos os tipos sobre a saúde do pontífice de 88 anos que segue convalescente no hospital Gemelli. Os setores conservadores e tradicionalistas apostaram no sensacionalismo barato ao disseminar que um conclave era iminente, diante da morte ou da renúncia certa do papa argentino. Mas nesta data em que Jorge Mario Bergoglio completa 12 anos de pontificado, sua recuperação avança com firmeza e seu retorno para casa pode acontecer na próxima semana.
Assim, depois de tanta torcida pelo fim do papado de Francisco, apostando no pior, é preciso celebrar. O Sucessor de Pedro não só está vivíssimo, como muito tem feito nesses anos todos à frente da Igreja, para que o Evangelho da Vida fale acima das estruturas engessadas e da velha mentalidade rígida. Desde que assumiu sua nova função, e como bom conhecedor da espiritualidade inaciana, o pontífice disse a que veio, com gestos significativos. Ainda na noite em que apareceu pela primeira vez como papa, pediu aos presentes que o abençoassem e no dia seguinte, foi até o hotel onde estava hospedado para pagar a conta em aberto.
Mas não ficou aí, apenas nas atitudes simbólicas, que por sua vez poderiam ter se tornado meramente teatrais ou tão somente uma bela história para a posteridade. Francisco convocou sínodos sobre temas sensíveis e com ampla escuta do Povo de Deus, aumentou o número de mulheres em postos importantes da cúria romana, publicou documentos emblemáticos, como as encíclicas Laudato Si' (2015) e Fratelli Tutti (2020). Além disso, trabalhou para a mudança de estilo do exercício de poder, com a substituição de nomes conservadores por outros mais pastorais, bem como a nomeação de cardeais das periferias do cristianismo.
Após o tenso Sínodo sobre a Família, com sessões nos anos 2014 e 2015, foi publicada a Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, que no seu número 281 reconhece “(...) a necessidade de uma linguagem nova e mais adequada apresenta-se antes de tudo no momento de introduzir as crianças e os adolescentes ao tema da sexualidade”. Como reagiram os movimentos fundados no moralismo estéril, que obrigam seus membros jovens a confissões semanais, invariavelmente focadas em questões atinentes à sexualidade? No geral, tais grupos têm ignorado o magistério de Francisco.
O documento no nº 286 avança ao apontar que “o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido” e que a “rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade”. Sem medo de assumir um tom crítico, que põe em xeque modelos tóxicos outrora defendidos e indica a necessidade de continuar avançando nessa compreensão, arremata: “graças a Deus, isto mudou, mas, em alguns lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e suas potencialidades”.
Ainda nessa ocasião, mesmo que outros tantos e necessários avanços não tenham sido possíveis, o magistério pontifício para o horror dos conservadores fundamentalistas entendeu que em alguns casos o acesso aos sacramentos não pode ser negado para pessoas que vivem em segunda união. Afinal, as normas gerais “não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” e “por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais aos que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (AL, n. 304 e 305).
O papa da misericórdia, que retomando o Evangelho insiste para que a Igreja entenda: “ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício" (Mateus 9, 13). E para tanto, convocou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia em 2016, somando-se às suas inúmeras ações concretas de acolhida e reconhecimento da dignidade vulnerabilizada. Visitou prisões, campos de refugiados, asilos e comunidades terapêuticas. Ninguém está excluído do olhar materno-amoroso do Senhor, repetiu à exaustão, para o incômodo dos mais puritanos.
Mesmo nessa ausência tão sentida destes dias, Francisco quis se fazer presente no meio do Povo de Deus, nas ligações ao pároco da destruída Gaza. Ele jamais deixou de apontar as “sucessivas novas guerras – com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países ou com simples lutas de poder em torna de interesses individualistas”. Sensível às dores humanas recorda que “descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso”. Afinal, “ver as avós chorando sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração” [2]. Os cristãos ao redor do mundo poderão seguir indiferentes diante das violações humanitárias na Palestina?
O pontífice que logo nos primeiros meses de papado participou da Jornada Mundial da Juventude, no Brasil, convocou o Sínodo da Juventude (2018), com o tema "Os jovens, a fé e o discernimento vocacional". E ainda ousou dizer que “o rosto de Deus é jovem”! Com a Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit [3] consignou: “peçamos ao Senhor que livre a Igreja dos que querem envelhecê-la, mantê-la no passado, detê-la, torná-la imóvel” (CV, n. 35).
Em uma Igreja cada vez mais controlada por uma gerontocracia enrijecida, o jesuíta argentino foi certeiro ao dizer que “são precisamente os jovens que podem ajudá-la a se manter jovem, a não cair na corrupção, a não se acomodar, a não se orgulhar, a não se tornar uma seita, a ser mais pobre e testemunhal, a estar próxima dos últimos e descartados, a lutar por justiça, a se deixar interpelar com humildade” (CV, n. 37). Ou seja, deve-se abrir espaço para que os jovens sejam a Igreja jovem, sem qualquer tipo de paternalismo ou tutela autoritária dos “censores da fé”, papel exercido não só pelos párocos, mas também por leigos que se julgam donos das comunidades eclesiais.
Diferente do que propagam alguns, há sim sede de Deus na juventude plural e não sectária. Mas algumas posturas escandalizam e levam à perda de credibilidade, tais como: “os escândalos sexuais e econômicos; a falta de preparação dos ministros ordenados que não sabem captar adequadamente a sensibilidade dos jovens; o pouco cuidado na preparação da homilia e na explicação da Palavra de Deus”. Isso sem falar na instrumentalização a que são submetidos, com “o papel passivo atribuído aos jovens dentro da comunidade cristã”, bem como “a dificuldade da Igreja para dar razão de suas posições doutrinais e éticas à sociedade contemporânea” (CV, n. 40). Já não se tolera toda e qualquer fundamentação e atitudes, como há algum tempo se aceitava.
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Os jovens e as jovens desejam uma Igreja que preste “atenção às reivindicações legítimas das mulheres que pedem mais justiça e igualdade” e que reconheça “uma longa trama de autoritarismo por parte dos homens, de sujeição, de diversas formas de escravidão, de abuso e de violência machista”. Uma Igreja que saia da desgastada e cansativa posição defensiva e seja “capaz de endossar essas reivindicações de direitos, e dar a sua contribuição com convicção para maior reciprocidade entre homens e mulheres”, renovando sempre “o compromisso da Igreja ‘contra todas as formas de discriminação e violência sexual’” (CV, n. 42).
Porque tanta dificuldade em dar passos substanciais nessa dimensão, se Jesus adotou uma posição claramente antimisógina e de reconhecimento da dignidade das mulheres? “Desmasculinizar a Igreja”, conclamou Francisco no final de 2023. E apesar de ter nomeado a primeira prefeita de um dicastério (janeiro de 2025), a Ir. Simona Brambilla e a primeira secretária-geral do Governadorato do Estado da Cidade do Vaticano, Ir. Raffaella Petrini (março de 2025), o caminho ainda é bastante longo e encharcado de oposições ferrenhas.
No subcapítulo “desejos, feridas e buscas” da Christus Vivit, o papa não tem pudor em acolher a percepção lúcida e crítica dos jovens e das jovens ao afirmarem que “a moral sexual é muitas vezes ‘causa’ de incompreensão e distanciamento da Igreja, já que se percebe como um espaço de julgamento e condenação”. Mesmo com a imensa dificuldade de o ensino da Igreja aprofundar a compreensão da sexualidade sob uma perspectiva mais ampla, a juventude que participou desse Sínodo parece avisar que permanecerá na resistência ao não se conformar com uma visão oficial demasiado limitada.
No mais, em uma atitude sempre aberta ao diálogo, o pontífice consigna que “Deus nos criou sexuados” e a “sexualidade, o sexo, são um dom de Deus”, por isso “nada de tabus”, pois “são um dom de Deus, um dom que o Senhor nos dá”. Em que pese faça esse reconhecimento (CV, n. 103), o papa sabe a falta de apoio para maiores mudanças nessa temática e resolveu dar vazão a essa insatisfação juvenil ao registrar que “os jovens expressam ‘um desejo explícito de confrontar-se sobre as questões relativas à diferença entre a identidade masculina e feminina, à reciprocidade entre homens e mulheres e à homossexualidade’” (CV, n. 81).
O papa da ternura. Outro sinal de sua proximidade, foi o áudio enviado para os fiéis na Praça São Pedro, que rezavam pela sua recuperação. Assim, Francisco se faz o incansável peregrino de uma Igreja que só é forte quando aceita suas contradições, incoerências e debilidades. E mesmo ofegante e por meio de sussurros o jesuíta, do seu leito de internação, não teve medo de demonstrar sua fragilidade. Nada parecido ao triunfalismo neomedieval e ao devocionismo vazio que inúmeros grupos e “Freis Gilsons da vida” querem inculcar nos cristãos.
Um momento marcante e inesquecível para a Igreja latino-americana foi o Sínodo para Amazônia. Com uma altíssima expectativa e ainda que tenha havido uma dose de frustração ao final, foi a primeira vez na história que se promoveu uma ampla escuta das comunidades e dos vários atores eclesiais e sociais da região. “De forma análoga, neste momento histórico, a Amazônia”, e o papa a trouxe para o centro dos debates, “desafia-nos a superar perspectivas limitadas, soluções pragmáticas que permanecem enclausuradas em aspetos parciais das grandes questões, para buscar caminhos mais amplos e ousados de inculturação” (QA, nº 105).
A despeito da Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia [4] (2020) trazer algum nível de decepção no que se refere à parte que tratou do sonho eclesial – principalmente por falta de ousadia –, existem posições interessantes e que representam necessários avanços. Um deles é o reconhecimento e a valorização das culturas dos povos originários, ao condenar toda forma de imposição colonial:
“A inculturação deve desenvolver-se e espelhar-se também numa forma encarnada de realizar a organização eclesial e o ministério. Se se incultura a espiritualidade, se se incultura a santidade, se se incultura o próprio Evangelho, será possível evitar de pensar numa inculturação do modo como se estruturam e vivem os ministérios eclesiais? A pastoral da Igreja tem uma presença precária na Amazônia, devido em parte à imensa extensão territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural, graves problemas sociais e a própria opção de alguns povos se isolarem. Isto não pode deixar-nos indiferentes, exigindo uma resposta específica e corajosa da Igreja” [5].
Há que se reconhecer que se por um lado se queria mais, nesse aspecto da inculturação e da interculturalidade pouco aprofundou nos últimos anos a Igreja amazônica, apesar do mandato pontifício. Como recuperar aquela primeira chama dos tempos pré-sinodais (2017-2019), cheia de esperança profética e de questionamentos inquietantes? Ou se estaria diante de um certo cansaço e desânimo das lideranças eclesiais da região, conformadas com as muitas limitações da mentalidade episcopal e presbiteral que ainda travam tantos processos?
“É verdade que, ‘embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado’ e acabamos como ‘espectadores duma estagnação estéril da Igreja’”, alerta Bergoglio. “Não tenhamos medo, não cortemos as asas ao Espírito Santo” (QA, nº 69), insiste o pontífice para tirar muitos da mortal letargia. A outrora pujante Igreja da Amazônia não pode se contentar com o caminho já percorrido. As reformas devem começar por baixo. Por que não se arrisca mais nas dioceses e prelazias que integram a Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama), com estruturas arrojadas e verdadeiros projetos pastorais de uma Igreja do século XXI? Remem com mais força e contribuam com mais generosidade na reforma de Francisco!
O pontífice argentino pediu aos médicos e aos seus auxiliares que fossem transparentes com o Povo de Deus sobre o seu estado de saúde, dando assim cumprimento às decisões do Sínodo sobre Sinodalidade (2024). No nº 95 do Documento Final – que Francisco incorporou ao magistério –, a Assembleia Sinodal insistiu em uma cultura da transparência, considerando que “a prestação de contas do próprio ministério à comunidade pertence à tradição mais antiga, que remonta à Igreja Apostólica” [6]. Não se trata, pois, de qualquer modismo ou novidade estranha, introduzida à força.
“Estas práticas”, quais sejam as culturas de transparência e de salvaguarda, “contribuem para assegurar a fidelidade da Igreja à sua missão”. “Não se deve fazer apelo à transparência e à prestação de contas apenas quando se trata de abusos sexuais, financeiros e de outro gênero”, pontua o nº 98 do Documento Final. Ademais, “dizem também respeito ao estilo de vida dos pastores, aos planos pastorais, aos métodos de evangelização e às modalidades como a Igreja respeita a dignidade da pessoa humana, por exemplo, no que respeita às condições de trabalho nas suas instituições” [7]. Toda sorte de mandonismo deve ser sepultada definitivamente, uma vez que a Igreja de Cristo pertence a todo o Povo de Deus e não a uma elite hierárquica.
O papa jesuíta tem sido um “contemplativo na ação” e um amigo do Cristo pobre, nos termos explicitados por Santo Oscar Romero, na homilia abaixo:
“Há um critério para saber se Deus está perto de nós ou está distante: todo aquele que se preocupa do faminto, do nu, do pobre, do desaparecido, do torturado, do prisioneiro, de toda essa carne que sofre, tem perto Deus. ‘Clamarás ao Senhor e te escutarás’. A religião consiste nessa garantia de ter o meu Deus perto de mim porque faço o bem aos meus irmãos. A garantia da minha oração não é o muito dizer palavras, a garantia da minha prece é muito fácil de conhecer: como me porto com o pobre? Porque ali está Deus” (Homilia de 5/02/1978). [8]
Francisco trouxe novos ares para a Igreja, tirando o bolor acumulado nos anos anteriores, em que mais se parecia estar preocupado em reverter o Concílio Vaticano II do que implementá-lo. Chacoalhou o colégio cardinalício, com a criação de cardeais de igrejas pequenas, pobres e distantes dos centros de poder político-econômico-eclesial. Trouxe a preocupação com o cuidado da Casa Comum para a pauta do dia, tornando-se uma voz autorizada e escutada, inclusive, nos ambientes mais secularizados da sociedade civil global.
O papa foi buscado nos confins do mundo, como gosta de brincar Bergoglio, e exatamente dali a sua perspectiva tem sido extremamente valiosa. E nesse sentido deve continuar seguindo “se a Igreja quer ir além de seus limites e servir a todos, então esse ministério deve estar ligado ao respeito pela alteridade e liberdade daqueles a quem ela se dirige”, retoma Tomás Halík. Se a Igreja ainda quiser ter alguma relevância no futuro, aponta o teólogo tcheco, “deve estar livre da pretensão de espremer todos em suas fileiras e exercer controle sobre eles, de ‘colonizá-los’” [9].
Há muito por ser feito e nestes dias se teve uma prova amarga disso. A oração do terço pela recuperação do pontífice, cada dia estava sendo conduzida pelos responsáveis dos dicastérios da cúria. Quando se chegou no Dicastério da Vida Religiosa Consagrada, a prefeita Ir. Brambilla foi desprezada e seu número dois, um cardeal ordenado foi colocado em seu lugar. Isso em uma oração que não exige o sacramento da ordem e que ao redor do mundo é conduzida em sua maioria por mulheres. Por isso, o Povo de Deus reza e pede pela saúde do Papa Francisco, para que possa ainda continuar sendo uma voz que clama no deserto e provoca a Igreja a caminhar rumo a uma maior fidelidade ao Projeto de Jesus. Vida longa ao Papa do Fim do Mundo!
[1] PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Dilexit nos – Ele nos amou. São Paulo: Loyola, 2024. p. 16.
[2] Ibidem, p. 17.
[3] Idem. Exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit. Acesse aqui.
[4] Idem. Exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. Acesse aqui.
[5] Ibidem, nº 85.
[6] Documento Final da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão.
[7] Ibidem.
[8] Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006. p. 76.
[9] HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 299.