10 Fevereiro 2025
Aqueles que celebram sua insolência e sadismo estão tão presos em sua lógica quanto aqueles paralisados pela indignação.
O artigo é de Judith Butler, professora emérita da Escola de Pós-Graduação da Universidade da Califórnia, Berkeley. Autora do livro 'Quem tem medo de gênero?' publicado por El Diario, 09-02-2025. A tradução é de Julian Cnochaert.
Enquanto Donald Trump emite diariamente uma série de declarações públicas devastadoras e flagrantes e ordens executivas, nunca foi tão importante evitar ser pego em sua obscenidade e, em vez disso, focar em como essas questões estão interconectadas.
É fácil esquecer ou descartar ordens executivas como proibir programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) e discurso, bem como "ideologia de gênero" em todos os programas financiados pelo governo federal, à medida que novas obscenidades invadem o ciclo de notícias. Entre a rápida sucessão de anúncios estão ameaças de deportação para estudantes internacionais que participam de protestos legítimos, ambições expansionistas sobre o Panamá e a Groenlândia e propostas para que os EUA assumam o controle da expulsão forçada e em massa de palestinos de suas terras em Gaza.
Em cada caso, Trump faz de suas declarações uma demonstração de poder, testando sua capacidade de entrega. Embora os tribunais possam suspender ordens executivas, as deportações de imigrantes já começaram, assim como a reabertura dos grotescos campos de Guantánamo.
A acumulação de poder autoritário depende, em parte, da disposição das pessoas em acreditar no poder exercido. Em alguns casos, as declarações de Trump têm a intenção de testar as águas, mas em outros, suas afirmações escandalosas são uma conquista por si só. Trump desafia a vergonha e as restrições legais para provar que consegue, exibindo ao mundo um sadismo descarado.
A alegria do sadismo descarado incita outros a celebrar essa versão de masculinidade, que não está apenas disposta a desafiar as regras e princípios que governam a vida democrática (liberdade, igualdade, justiça), mas transforma essas ações em formas de “libertação” de falsas ideologias e das limitações impostas pela lei. O ódio exultante é agora apresentado como liberdade, enquanto as liberdades pelas quais muitos de nós lutamos durante décadas são obstruídas e distorcidas como “wokeísmo” moralmente repressivo.
A alegria sádica em questão não é só dele. Depende de ser amplamente comunicado e apreciado para existir: é uma celebração comunitária e contagiante da crueldade. Na verdade, a atenção da mídia que isso gera alimenta a orgia sádica. Esse desfile de indignação e insolência reacionária deve ser conhecido, visto e ouvido. E é por isso que não basta mais expor a hipocrisia. Não há nenhuma fachada de moralismo que devamos arrancar deles. Não, a demanda pública por uma aparência de moralidade por parte do líder foi revertida: os seguidores de Trump estão animados com a demonstração de seu desprezo pela moralidade, que eles compartilham.
A demonstração flagrante de ódio, o desrespeito aos direitos, a disposição de privar as pessoas de seus direitos à igualdade e à liberdade ao proibir o "gênero" e seus desafios ao sistema binário de sexo (negando a existência e os direitos de pessoas trans, intersexuais e não binárias), destruindo programas DEI destinados a empoderar aqueles que sofreram discriminação sistemática e persistente, deportações forçadas de imigrantes e apelos pela desapropriação total de sobreviventes traumatizados de ações genocidas em Gaza.
Raphael Lemkin, um advogado polonês-judeu que cunhou o termo “genocídio”, deixou claro que a definição inclui “um plano coordenado visando à destruição dos fundamentos essenciais da vida de grupos nacionais... Pode ser alcançado eliminando todas as bases de segurança pessoal, liberdade, saúde e dignidade.” De fato, a transferência forçada de crianças é o quinto ato punível pela Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, adotada em 1948.
Nem todas as práticas de privação de direitos de Trump se enquadram na categoria de genocídio, mas muitas delas expressam paixões fascistas. Negar o direito à saúde, ao reconhecimento legal e à liberdade de expressão para pessoas trans, intersexuais e não binárias ataca os próprios fundamentos de suas vidas. Até mesmo a Suprema Corte conservadora decidiu que a discriminação contra pessoas trans e não binárias constitui discriminação sexual (Bostock v. Clayton, 2020).
Portanto, é um absurdo afirmar que os direitos das pessoas trans ameaçam as leis baseadas no sexo: esses direitos pertencem a essas leis e devem ser protegidos por elas. Recolher imigrantes em escolas e lares, deportá-los à força para centros de detenção e privá-los do direito ao devido processo legal não só demonstra um claro desrespeito por essas comunidades, mas também pela própria democracia constitucional. A ameaça à cidadania por direito de nascença desafia uma proteção constitucional básica e coloca Trump acima da lei constitucional e dos freios e contrapesos do poder.
Se permanecermos prisioneiros da indignação e paralisados pela estupefação diante de cada nova proclamação, não seremos capazes de discernir qual é o elo entre elas. Ficar refém das declarações de Trump é justamente o propósito desta transmissão. De certa forma, quando ele nos captura e paralisa, ficamos à sua mercê. Embora haja todos os motivos para ficarmos indignados, não podemos deixar que essa indignação nos domine e bloqueie nossas mentes. Porque este é um momento para entender as paixões fascistas que alimentam esse desejo flagrante de poder autoritário.
Aqueles que celebram sua insolência e sadismo são tão cativos de sua lógica quanto aqueles que ficam paralisados por sua indignação. Talvez seja hora de nos afastarmos dessas paixões para ver como elas funcionam, mas também de encontrar nossas próprias paixões: o desejo por uma liberdade compartilhada equitativamente, por uma igualdade que cumpra as promessas democráticas, por reparar e regenerar os processos vitais da Terra, por aceitar e afirmar a complexidade das vidas que incorporamos, por imaginar um mundo onde os governos apoiam a saúde e a educação para todos, onde vivemos sem medo, sabendo que nossas vidas interconectadas são todas igualmente valiosas.