23 Outubro 2024
"Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados", diz cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura.
A entrevista é de Aldo Cazzullo, publicada por Corriere della Sera, 20-10-2024.
Cardeal Ravasi, se o senhor tivesse que explicar a imortalidade, a vida eterna, como o faria?
Há duas maneiras. A primeira é a filosófica. Platão já afirma que a pessoa humana também tem uma dimensão transcendente: a alma não pode se decompor, nem morrer. E o autor de Sabedoria, um dos livros da Bíblia, conhecia Platão.
‘As almas dos justos estão nas mãos de Deus; nenhum tormento os tocará.’
‘Aos olhos dos homens eles sofram castigos, sua esperança é cheia de imortalidade’.
E a segunda maneira de explicar a vida após a morte, qual é?
É aquela teológica. Mística. Saímos das mãos de um Criador e, da mesma forma, somos recolhidos pelo Criador, que nos introduz em um novo Ser transcendente. Superaremos as categorias de tempo e espaço. São Paulo fala exatamente de uma 'nova criação'.
E encontraremos nossos entes queridos?
É claro. Entraremos no divino, permanecendo nós mesmos.
Nós, cristãos, no entanto, temos uma variante complexa: não apenas a imortalidade da alma, mas também a ressurreição da carne.
É verdade que eu não tenho um corpo, você não tem um corpo, os leitores do Corriere não têm um corpo; cada um de nós é um corpo. É por isso que a Igreja é tão severa em relação ao aborto: todos nós somos feitos pelas mãos de Deus, desde a concepção. E não temos um único canal de conhecimento. A pessoa humana não conhece apenas pela razão ou pela via experimental.
O que quer dizer com isso?
Veja o caso de se apaixonar. Pense no rosto da pessoa que você ama. Ele tem uma série de características biológicas, fenomenais. Mas você não se apaixonou por elas.
É claro, caso contrário, todos estariam apaixonados pelas mesmas três ou quatro atrizes. Você se apaixonou por um detalhe e por um aspecto que lhe disse algo que não disse a outros.
E o senhor, Cardeal Ravasi, já se apaixonou?
Sim, com a ingenuidade de um estudante do ensino médio. Ela era uma das duas garotas da turma. Mas a dimensão estética do conhecimento não se limita ao amor: pense na arte, na poesia, na música. Quem vai ver um quadro de Caravaggio não pode sair ileso.
Anos atrás, indicado como bispo de Assis, o senhor teria sido barrado pela Congregação, por causa do título de um de seus artigos no Il Sole 24Ore: Jesus não ressuscitou, se elevou.
Felizmente, o então Card. Ratzinger leu o artigo e não apenas o título, que não era meu, e não encontrou nada de errado. De fato, a ressurreição não é uma simples reanimação de um cadáver. Não significa fazer reviver um corpo que morrerá em outro momento. Na Bíblia, há dois modelos para representar a realidade da ressurreição de Cristo: o 'despertar' (esse é o valor do verbo grego da 'ressurreição') e, justamente, a 'elevação'.
O que é o despertar?
A visão de Ezequiel: os ossos secos recompõem um corpo e voltam à vida em sua identidade, como se dizia sobre o corpo. Mas Jesus não apenas ‘desperta’ da morte; ele ascende ao céu. Não se trata de um fato astronáutico; ascender não significa ir para o alto, mas entrar no infinito, no eterno de Deus. O próprio Jesus diz isso: ‘E, quando eu for levantado, atrairei todo o mundo a mim'.
O senhor escreveu agora uma biografia de São Paulo, intitulada Eu era um blasfemo, um perseguidor e um violento.
Ele mesmo se apresenta assim na Primeira Epístola ao seu discípulo Timóteo. Daniel Marguerat chega a defini-lo como o enfant terrible do cristianismo.
O senhor cita dois outros livros, de Riccardo Calimani e Corrado Augias, nos quais Paulo é definido como o inventor do cristianismo. Mas não concorda. Por quê?
A Paulo devemos, sem dúvida, um sistema de pensamento, uma linguagem compreensível para todos: ele fala e escreve em grego, que no império romano era o equivalente ao inglês de hoje, aliás, criou um ‘seu’ grego. E devemos a ele um projeto pastoral que, no entanto, tem seu centro somente em Cristo.
Levar o cristianismo a todos os lugares e a todos.
Sim, um projeto operacional internacional, global, por meio de estradas e navios. Não é por acaso que Paulo vai para Roma, onde morre e é enterrado. Pasolini queria fazer um filme sobre ele, ambientado em Roma, Berlim, Londres, Nova York. Mas Paulo sempre se baseia no evento de Jesus Cristo morto e ressuscitado, central também nos Evangelhos.
Muitos, não apenas entre os judeus, afirmam que Jesus não queria fundar uma religião.
Jesus era um judeu observante, está bem plantado no judaísmo, diz que foi ‘enviado para as ovelhas perdidas da casa de Israel’. Às vezes, no entanto, subverte os rituais, rompe com a ortodoxia: às vezes não observa o sábado, come o que estiver disponível, sem se preocupar com as proibições, expulsa os mercadores do templo. Mas é com o discurso das bem-aventuranças que sua mensagem se torna universal e transcendente, derrubando categorias muito difundidas.
Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
E Jesus leva essa mensagem revolucionária às suas consequências extremas, com sua morte e ascensão, que transfigura toda a realidade e todo o ser. Como São Paulo escreve aos Romanos: ‘A criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus . Mas também cita no livro a passagem do romance de Kazantzakis e do filme de Scorsese, A Última Tentação de Cristo, em que Paulo quase zomba de Jesus, dizendo-lhe o meu Jesus é muito diferente de você, muito mais forte e poderoso.
Mas essa cena não é real. É uma alucinação de Jesus, que na cruz imagina que pode viver uma vida normal. É a última tentação, precisamente. Que Jesus rejeita, escolhendo morrer por amor na cruz. Além disso, os Evangelhos não são registros históricos. Nem mesmo sabemos quanto tempo durou a vida pública de Jesus: João fala de três Páscoas, portanto, três anos; os outros não fazem menção a isso e se concentram principalmente nos últimos três dias de sua vida, a paixão e a ressurreição. Os Evangelhos apresentam sistematicamente o Jesus histórico, mas o interpretam de acordo com uma visão teológica, transcendente, centrada no Cristo glorioso.
O amor já está presente no Antigo Testamento. A lei de Moisés diz: Se você vir o jumento de seu inimigo caído por causa da carga, pare e ajude-o.
Sim. Mas uma coisa é um gesto de solidariedade humana, outra é o autossacrifício. Uma coisa é ajudar a levantar o jumento do inimigo; outra bem diferente é perdoar e até se sacrificar por amor a todos, inclusive aos inimigos.
Muitos teólogos e filósofos ligam a Paulo a ideia da graça, da predestinação: as obras não são a causa da salvação, são seu fruto.
Paulo não nega a liberdade do homem; ele o adverte contra a pretensão de se salvar sozinho. Para ele, o homem é limitado, decaído, pecador. Pretender se salvar sem Deus por meio da mera observância dos preceitos da lei é como esticar as mãos para cima para se salvar enquanto se afunda na areia movediça. Claro, é necessário estender as mãos com a nossa liberdade; mas é necessário que Deus as agarre e nos salve.
O senhor tem medo da morte?
Um pouco, sim. Outro dia eu estava pensando onde eu gostaria de ser enterrado. Essa ideia do sepulcro, das pessoas passando lá em frente quando eu não estiver mais lá, me perturbou.
Onde gostaria de ser enterrado?
Na igreja da qual sou titular em Roma como cardeal, San Giorgio in Velabro, no coração da cidade, onde, segundo a tradição, o pastor Faustolo encontrou Rômulo e Remo. Ou do lado de fora de uma pequena igreja de Bellagio, no lago, onde tenho ido no verão há muitos anos.
O senhor não é romano, é da Lombardia.
Brianzolo de Merate. Minha primeira lembrança é o rubor no céu de Milão durante os bombardeios. Com minha mãe, fomos evacuados para Santa Maria Hoè. Passei o primeiro ano de minha vida chorando: eu tinha uma natureza pessimista, diferente daquela de hoje. Meu pai era antifascista. Ele foi enviado para lutar na linha de frente na Sicília. Desertou, com muitos outros. Ele voltou para casa a pé, levou um ano e meio. Uma região de fé. A terra do Papa Pio XI e de Dom Giussani.
Se alguém tivesse sobrevoado a Brianza em um helicóptero em uma manhã de domingo, teria visto o pessoal do campo e das fábricas confluindo de todas as estradas em direção às igrejas. O mesmo acontecia em Milão. A página 119 do Codex Atlanticus de Leonardo, que preservei por muitos anos como prefeito da Ambrosiana, mostra Milão vista do alto, em uma visão aérea. Um voo que se irradia a partir do Duomo.
E agora?
Hoje Milão vista do alto é multicêntrica. Reunida em torno de grupos de arranha-céus.
Como você vê a Milão de hoje?
Uma cidade europeia, muito mais do que Roma. Ambas vivem a experiência da secularização. Se Cristo fizesse o discurso das Bem-Aventuranças na praça hoje, chegaria a polícia para pedir seus documentos. No entanto, o último guia da diocese de Milão, impresso em 2018 (agora tudo está on-line), com a lista das paróquias e das associações, ultrapassava as mil páginas. Podemos ser minoria, nós, católicos; mas, dois mil anos depois da época de Paulo, ainda estamos aqui, como um espinho no lado, provocando, ou como uma semente, para usar uma imagem de Jesus.
Provocando?
Jesus circula em péssima companhia: prostitutas, pecadores, apóstolos que o traem. E morre na cruz: a morte do sedicioso, do terrorista, do escravo. A mensagem do cristianismo é provocativa. O Evangelho não tem nada de tranquilizador.
O que o senhor pensa dos políticos que se proclamam defensores de Deus e agitam rosários e crucifixos?
Na realidade, isso não é necessariamente fé. Usar Deus é perigoso, assim como instrumentalizar símbolos que conservam um poder extraordinário e, precisamente por isso, não devem ser desfigurados sendo brandidos para fins extrínsecos; ao contrário, devem ser testemunhados em sua mensagem de amor e de verdade.
Mas o senhor é o fundador do Pátio dos Gentios, onde crentes e não crentes dialogam. Muitas vezes tive a oportunidade de dialogar com personagens insuspeitos. Por exemplo, Umberto Eco, Alda Merini e até mesmo Enrico Cuccia, que tinha uma fé siciliana, tradicional e antiga, vinham frequentemente me ver na Ambrosiana. Ciampi também era um católico praticante. Eu poderia fazer uma longa lista de figuras relevantes da cultura, da política e da sociedade, não crentes, que dialogaram e dialogam comigo. Ficou bem conhecido meu relacionamento com o presidente Giorgio Napolitano.
O senhor gosta de lembrar a recuperação da Ambrosiana.
Valia 47 bilhões de liras; não custou um centavo à Igreja, foram pagos por todos os milaneses, desde a Fundação Cariplo até aqueles pais que me pediram para dar a um códice restaurado com a contribuição deles o nome do filho que morreu por drogas. Em Roma, para salvar os afrescos das Catacumbas dos Santos Marcelino e Pedro, tive que pedir ajuda ao Azerbaijão, um país muçulmano xiita. Milão continua sendo uma cidade extraordinária, por seu caráter social e generosidade.
O senhor estudou em Jerusalém, como seu professor, o Cardeal Martini. O que acontecerá com essa cidade?
Jerusalém foi fundada sobre três pedras: o Muro das Lamentações, o Santo Sepulcro, o Domo da Rocha, de onde Maomé ascendeu ao céu. Mas as pedras de Jerusalém estão manchadas de sangue. O ódio se instalou, domina, se alastra. No entanto, Isaías escreve que um dia todos os povos da Terra convergirão em paz para Jerusalém. Essa é a tocha da esperança que nunca deve ser apagada, mesmo na escuridão destes dias.
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“A mensagem do cristianismo é provocativa. O Evangelho não tem nada de tranquilizador”. Entrevista com Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU