27 Junho 2023
"Mas quem é esse personagem tão amado e detestado? Nascido em Tarso, na atual Turquia meridional, por volta do ano 5 da nossa era, é um judeu da diáspora. Saulo – depois Paulo – é formado em Jerusalém e é 'religiosamente judeu, culturalmente grego, politicamente romano': portanto 'na encruzilhada de três mundos'", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano entre 2007 e 2018, em artigo publicado por Domani, 25-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quem fundou o cristianismo? Jesus de Nazaré, claro. A resposta até pouco mais de um século atrás, era certamente essa. Então dois gigantes da história do pensamento como Nietzsche e Harnack apresentaram a candidatura de Paulo de Tarso, pela enorme importância da sua figura e do seu pensamento, mas sobretudo para ressaltar a distância do judeu Jesus.
Enriquecidos dessa provocação, dezenas de estudos, porém, voltaram à solução anterior, sem dúvida mais fundamentada, mesmo do ponto de vista da história das religiões.
No entanto, a figura de São Paulo se destaca de maneira única no fundo efervescente das origens cristãs. A antiquíssima celebração romana junto com São Pedro – de 29 de junho, uma data convencional – depois o exaltou, mas com o passar do tempo também obscureceu em relação ao primeiro dos apóstolos. Assim, para o Papa Dâmaso, brilhante construtor e ideólogo da Roma cristã de 366 a 384, os dois santos padroeiros da cidade são as "novas estrelas" (nova sidera) que suplantaram Rômulo e Remo.
Segundo Albert Schweitzer, teólogo luterano que se tornou médico e missionário na África, depois ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Paulo é mais o "santo padroeiro" daqueles que pensam. E leigamente, o cardeal José Tolentino Mendonça define-o agora – numa inteligente apresentação atenta à cultura contemporânea (Metamorfose necessaria: rileggere san Paolo, Vita e Pensiero) – "um dos homens que mais trouxeram inovações e ideias ao mundo".
Há mais de meio século Pasolini preparou o roteiro de um filme sobre São Paulo e o ambientou em nossos dias porque, escreveu, “é à nossa sociedade que ele se dirige; é a nossa sociedade que ele lamenta e ama, ameaça e perdoa, agride e com ternura abraça”. Era também a convicção de Montini, o papa que em 1963 havia adotado o nome do apóstolo que estudou com paixão na juventude e que em 1931 descreveu como um “explorador de uma nova e imensa zona de luz”.
Paulo não é uma figura fácil de abordar. No surpreendente romance O Reino (Alfaguara), Emmanuel Carrère conseguiu fazer reviver quem "para o bem ou para o mal, moldou talvez até mais do que Jesus vinte séculos da história ocidental". Entre história e imaginação plausível – a começar por sua descrição, baseada na realidade num texto apócrifo e no antigo estereótipo iconográfico do filósofo –, Paulo apresenta-se como um homem pequeno “careca, com barba, testa saliente, sobrancelhas unidas acima do nariz". Vivo como seu discípulo Lucas, o herói do romance.
A mesma intenção de Carrère encontra-se agora numa reconstrução apaixonada e apaixonante de um excelente biblista protestante, que estudou profundamente os escritos de Paulo e Lucas (ou seja, o evangelho e os Atos dos Apóstolos). Nas mais de 500 páginas de Paul de Tarse (Éditions du Seuil) Daniel Marguerat se baseia em seus estudos anteriores – especialmente importantes são Paolo negli Atti e Paolo nelle Lettere (Claudiana) – mas os transforma em uma história que quer restituir "a vida além do fóssil" de um "enfant terrible do cristianismo", que foi justamente fossilizado. E consegue perfeitamente.
Estudioso dos textos, Marguerat conta a vida e o pensamento de Paulo interpretando dados históricos e contextualizando uma teologia nascida "do braseiro que foi a sua vida", incluindo a sua boa e má sorte. O resultado é um personagem explosivo, em nada "empoeirado" e antiquado, mas que ainda está "na nossa frente". Apesar de vinte séculos de interpretações, controvérsias e releituras que – segundo o estudioso judeu Daniel Boyarin – colocam os seus textos “entre os maiores da literatura”.
Mas quem é esse personagem tão amado e detestado? Nascido em Tarso, na atual Turquia meridional, por volta do ano 5 da nossa era, é um judeu da diáspora. Saulo – depois Paulo – é formado em Jerusalém e é “religiosamente judeu, culturalmente grego, politicamente romano”: portanto “na encruzilhada de três mundos”. Boyarin e Alan Segal, outro estudioso judeu, estão convencidos de que Paulo documenta da maneira mais confiável quem seria um fariseu antes da terrível guerra judaica, que em 70 se conclui de fato com a destruição do Templo de Jerusalém.
Esse judeu profundamente helenizado, que após a crucificação de Jesus persegue seus seguidores, encontra-o de forma misteriosa – mas segundo Segal inteiramente compatível com o misticismo judaico – na famosa conversão na estrada de Damasco por volta de 32. Assim o apóstolo que provavelmente nunca conheceu Jesus acabou revelando-se aquele "mais próximo" dele.
É a virada na vida de Paulo, que a partir daquele momento se transforma de uma maneira incrível.
Certamente importantes, mas difíceis de reconstituir, são os anos de Antioquia, a grande metrópole da Síria, onde pela primeira vez os seguidores de Cristo são chamados de cristãos, e continua sendo sempre conflitual a relação com a comunidade de Jerusalém sobre a abertura universalista aos pagãos.
Depois vêm as viagens missionárias, cuidadosamente planejadas com objetivos ambiciosos, contadas com uma tendência a suavizar os contrastes – mas sobretudo com participação e maestria – por Lucas nos Atos dos apóstolos. Paulo, um homem que sabe envolver muitos discípulos, viaja pelo Chipre, a atual Turquia ocidental, entra na Europa, vive na Grécia há muito tempo. É uma epopeia cheia de reviravoltas, que termina com a prisão em Jerusalém, o apelo ao imperador, a viagem a Roma com um naufrágio em Malta. Depois tudo se desvanece.
Ficam as cartas, em parte escritas por discípulos para fazer reviver Paulo, no total cerca de um terço do Novo Testamento. Mas sete são indiscutivelmente autênticas: da mais antiga – a Primeira carta aos Tessalonicenses, ditada por volta do ano 50 e que faz de Paulo o primeiro autor cristão – até a obra-prima que possui uma fortuna imensa, a Carta aos Romanos. Textos pouco conhecidos e que valeria a pena ler por inteiro, de uma só vez, mesmo sem pretender entender tudo, como muitas vezes aconteceu comigo em sala de aula, encantando quem lia e ouvia. Marguerat sabe como contá-las magnificamente.
Até sua chegada a Roma em 59. Aqui, na capital do império, Paulo é condenado à morte alguns anos depois. Seu fim, tradicionalmente por decapitação, é contado de forma sugestiva por um apócrifo: Paulo se vira para o oriente, levanta as mãos para o céu, reza "longamente" em hebraico e por fim dobra o pescoço sem dizer mais nenhuma palavra.
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O padroeiro dos que pensam: por que São Paulo de Tarso foi o 'enfant terrible' do cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU