11 Setembro 2024
"ONGs ambientais e organizações filantrópicas devem se opor a projetos que colocam em risco áreas ricas em biodiversidade. A reconstrução proposta da rodovia BR-319 coloca em risco muito do que resta da floresta amazônica brasileira e é certamente um dos projetos ambientalmente prejudiciais do mundo."
O artigo é de Lucas Ferrante, Philip M. Fearnside e Monica Piccinini, em artigo publicado por Amazônia Real, 09-09-2024.
Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), onde em sua tese avaliou as mudanças contemporâneas da Amazônia, dinâmicas epidemiológicas, impactos sobre os povos Indígenas e mudanças climáticas e seus efeitos sobre a biodiversidade e pessoas. Atualmente pesquisa os efeitos do desmatamento nos rios voadores da Amazônia e o processo de desmatamento na região de influência da rodovia BR-319. Também atua oficialmente como pesquisador colaborador junto ao Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM) do Governo Federal.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É pesquisador 1A de CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Monica Piccinini é uma escritora freelancer focada em questões ambientais, de saúde e direitos humanos. É brasileira radicada em Londres, Reino Unido, onde pratica jornalism investigativo e escreve para revistas ambientalistas, tais como The Canary e The Ecologist.
O Ministério dos Transportes planeja “reconstruir” a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) (Figura 1), uma estrada que foi abandonada em 1988, mas que desde 2015 vem sendo gradualmente melhorada sob um programa chamado de “manutenção”. A BR-319 agora é transitável, pelo menos na estação seca, mas a implementação do projeto de reconstrução para construir uma nova rodovia na mesma rota ainda não recebeu uma licença ambiental. A reconstrução da rodovia BR-319 conectaria a Amazônia central, que está relativamente intacta, ao notório hotspot de desmatamento conhecido como “AMACRO”, um nome composto pelas siglas dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia.
A rota da rodovia BR-319 passa por um dos blocos mais preservados da floresta amazônica e as estradas planejadas conectando-se à BR-319 abririam a vasta área de floresta a oeste do Rio Purus que é paralela à BR-319 [2-6]. A rodovia também permitiria a migração de desmatadores do “arco do desmatamento” no sul da Amazônia para Roraima, que faz fronteira com a Venezuela no norte da Amazônia [7], bem como para outras áreas já conectadas a Manaus por estradas (por exemplo, [8]). No total, cerca de metade do que resta da floresta amazônica brasileira seria impactada, não apenas a beira da estrada da BR-319 em si, que é o foco do processo de licenciamento [9] e dos esforços de organizações não governamentais (ONGs) para mitigar os impactos. Muito mais informações sobre os impactos do projeto e por que ele deve ser interrompido são públicas [2, 3, 5, 6, 10-13].
Figura 1. Mapa de terras e comunidades Indígenas impactadas pela rodovia BR-319. Referência: [1].
Um fator-chave que impulsiona o desastre ambiental e social que o projeto BR-319 representa vem de um setor inesperado: várias ONGs ambientais e as fundações que as apoiam. É difícil imaginar uma organização ambiental que não se oponha ao projeto da rodovia BR-319, e muitas, mas não todas, se opõem a ele. O Observatório do Clima, composto por 120 ONGs brasileiras, assumiu uma posição firme contra o projeto da BR-319 e moveu uma ação civil pública (ACP) contra as autoridades ambientais federais por terem concedido uma licença prévia para o projeto. A ação foi julgada favoravelmente em 25 de julho de 2024 [14], suspendendo a licença prévia que havia sido concedida durante a administração presidencial de 2019-2022 de Jair Bolsonaro, e que havia ignorado os pareceres técnicos negativos da equipe de licenciamento para acomodar pressões políticas [14]. A licença prévia não permite a construção da estrada, mas permite preparações significativas para obter uma licença de instalação que permitiria o início da construção da estrada.
ONGs que se recusaram a condenar o projeto da BR-319 assumiram a posição de que a aprovação e execução ambiental do projeto de reconstrução são inevitáveis e que as organizações devem, portanto, ser neutras sobre a questão de se a estrada deve ser construída e se concentrarem apenas em planos de governança depois que a estrada for construída. Desnecessário dizer que a estrada não é um fato consumado e presumir que o projeto é inevitável contribui para torná-lo uma profecia autorrealizável.
Essas ONGs sustentam que o projeto deve prosseguir desde que todos os requisitos para licenciamento ambiental sejam atendidos, incluindo consulta aos povos Indígenas impactados. Isso ficou evidente em 5 de fevereiro de 2020, quando o Ministério Público Federal em Manaus realizou um evento para discutir os impactos do projeto da BR-319. O segundo autor deste texto fez uma apresentação explicando por que o projeto da estrada não deveria ser aprovado, e tanto o primeiro quanto o segundo autor participaram da discussão. Três organizações com atividades na área do projeto assumaram a posição de que o projeto de reconstrução não deveria ser contestado e que poderia prosseguir se os povos Indígenas fossem consultados e fortes condições ambientais fossem incluídas nos requisitos para licenciamento: a Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM), e o Fundo Mundial pela Natureza (WWF).
As lições do passado não devem ser esquecidas. A situação é paralela à história da luta contra a construção da Barragem de Belo Monte no rio Xingu, no estado do Pará. Embora a maioria das ONGs ambientais se opusessem veementemente ao projeto da barragem, algumas chegaram à área da barragem oferecendo-se para ajudar a população deslocada a obter melhor compensação e programas sociais, dizendo-lhes que o projeto da barragem era inevitável e que não deveriam se opor a ele. Dom Erwin Kräutler, Bispo do Xingu e um proeminente oponente da barragem, apontou o evidente conflito de interesses: as ONGs que promoviam melhor compensação para as pessoas deslocadas não teriam razão para estar presentes se a barragem não fosse construída e a população deslocada [15, 16]. No caso de Belo Monte, a empresa da barragem e os políticos que a promoveram foram bem-sucedidos em provocar discórdia entre as ONGs e entre os líderes Indígenas, contribuindo para a aprovação e execução deste projeto notoriamente desastroso [15-17].
Nenhum dos povos Indígenas impactados pelo projeto BR-319 foi consultado conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [18] e pela lei brasileira que a implementa ([19], anteriormente [20]). Entre os requisitos está que esta consulta seja anterior, não apenas ao projeto de construção em si, mas à decisão de implementar ou não o projeto, e que os povos Indígenas tenham o direito de dizer “não” ao projeto ([21, ver [1]). Algumas interpretações da convenção suavizam essa exigência para que os povos Indígenas tenham uma “voz”, mas não um veto, na decisão sobre os projetos que os impactam (ver [22]). O plano do Ministério dos Transportes tem sido de “consultar” apenas cinco grupos Indígenas ([23], p. 22), mas pelo menos 68 grupos seriam impactados pelo projeto [1]. O plano tem sido “consultar” esses grupos enquanto a construção da rodovia está em andamento, com a tarefa sendo feita antes da nova estrada ser formalmente inaugurada.
O projeto BR-319 tem uma longa história de cenários de “governança” totalmente irrealistas, incluindo a primeira Estudo de Impacto Ambiental (EIA) alegando que a rodovia seria como as estradas do Parque Nacional de Yellowstone, onde milhões de turistas dirigem sem desmatamento ([24]; ver [25]). Cenários semelhantes persistem, como demonstrado pelo relatório de um grupo de trabalho composto por cinco departamentos do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) ([26]; ver [27]). Infelizmente, a história não segue esses cenários, mesmo quando apoiada por grandes esforços do governo e de organizações da sociedade civil, como demonstrado pela rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá) que o relatório do grupo de trabalho do DNIT usa como exemplo (ver [27, 28]).
As ONGs que adotaram a posição de que incluir fortes condições ambientais nos requisitos para licenciamento evitaria um desastre ambiental e social estão fornecendo endosso de fato aos cenários oficiais de “governança” como justificativa para permitir que o projeto avance. Membros da Polícia Federal e do Exército Brasileiro com quem conversamos deixaram claro que um cenário de governança futura é fictício, pois os órgãos de fiscalização não teriam recursos e contingente para monitorar a área devido ao seu tamanho, complexidade e perigo. O crime organizado já controla a grilagem de terras e a mineração na região, o que impactou severamente as comunidades tradicionais [29].
Embora a neutralidade tenha sido professada na questão do licenciamento e reconstrução da rodovia, na prática essas organizações, especialmente o IDESAM e a FGV, estavam trabalhando para facilitar a aprovação da estrada. Um exemplo é o projeto da FGV intitulado “Promovendo transparência e governança territorial no contexto da instalação de rodovias na Amazônia brasileira – O caso da BR-319” [30]. Como o título indica, o projeto pressupõe que a rodovia será construída. Líderes indígenas que consultamos expressaram forte oposição ao projeto, preocupados que qualquer acordo pudesse ser mal interpretado pelos tomadores de decisão como apoio à construção, apesar da resistência das comunidades à rodovia.
Outro documento da FGV, intitulado “Agenda de Desenvolvimento Territorial para a região da BR-319: Fortalecendo territórios de bem viver” [31] busca promover o desenvolvimento territorial em Vila Realidade, no município de Humaitá. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) [32], a única atividade econômica dessa área é o desmatamento ilegal. Estradas ilegais originárias da área de Vila Realidade já estão invadindo territórios Indígenas [11, 33], e é improvável que grileiros e madeireiros parem suas atividades, que são movidos pela atração de lucros rápidos e fáceis.
Lideranças Indígenas têm feito uma série de denúncias a respeito dos projetos de “governança” de ONGs atuantes na BR-319. Para garantir sua proteção, ao longo deste texto omitimos os nomes das lideranças, bem como suas etnias e comunidades. Todas as denúncias foram realizadas durante um evento científico e encontro de lideranças conduzido dentro da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com presença oficial de um representante do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática (MMA).
As lideranças Indígenas declararam que representantes da FGV sugeriram que seria do seu melhor interesse aceitar as condicionantes ambientais propostas, já que a rodovia BR-319 seria construída de qualquer maneira. Eles foram informados de que a abordagem mais prudente seria se concentrar em mitigar os impactos em seus territórios negociando condições com o DNIT. Embora algumas dessas ONGs tenham expressado o desejo de promover a governança com todos os lados [31], tentar estabelecer acordos e compromissos entre invasores e invadidos é impraticável, pois isso apenas intensificaria os conflitos e aumentaria as ameaças às comunidades tradicionais [34].
De acordo com lideranças Indígenas, a violação mais grave dos direitos dos povos Indígenas foi cometida pelo Instituto Internacional de Educação no Brasil (IEB). Um documento, que os líderes Indígenas relatam ter sido preparado pelo IEB e apresentado a eles para assinatura, denuncia uma invasão de terra que é uma preocupação urgente para o grupo, mas também inclui uma declaração afirmando a aprovação do projeto de reconstrução da BR-319, desde que uma reserva extrativista seja criada para proteger os castanhais usados pelo grupo. Os líderes só tomaram conhecimento da declaração aprovando o projeto da estrada depois de assinarem o documento e seguirem as instruções do IEB para enviá-lo ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e ao DNIT.
O apoio das ONGs ao projeto da BR-319 permaneceu sutil até julho de 2024, quando o IDESAM se retirou do Observatório do Clima e enviou uma declaração para selecionados mídias e políticos pró-BR-319 [35]. O gatilho para essa ruptura foi a aprovação judicial da ação do Observatório do Clima contestando a licença prévia da BR-319, com a declaração do IDESAM endossando abertamente a reconstrução da rodovia.
A Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com um recurso na esperança de reverter a suspensão da licença prévia de 25 de julho. Observe que, diferentemente da tradição nos Estados Unidos, a AGU brasileira não goza de independência e atua para facilitar a agenda política do presidente. O projeto da BR-319 não tem uma justificativa econômica, a motivação para o projeto sendo seu valor na política eleitoral [36]. O benefício do projeto em ganhar votos no estado do Amazonas explica não apenas o apoio de políticos locais, mas também o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva [37].
Em 23 de agosto, o recurso foi rejeitado pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) [38]. No entanto, a AGU pode apelar ainda mais, e futuras apelações podem ser bem-sucedidas porque o Brasil ainda tem suas leis de “suspensão de segurança” em vigor, que foram iniciadas pela ditadura militar em 1964, permitindo que qualquer decisão seja anulada se for considerada como causadora de dano “grave” à economia, saúde ou ordem pública (por exemplo, [39-41]. Esse mecanismo já foi usado em favor do projeto BR-319 para reverter uma decisão judicial que havia suspendido a primeira audiência pública, permitindo assim que o projeto avance independentemente de irregularidades [42-44]. O sistema jurídico brasileiro permite uma sequência quase interminável de recursos, e a AGU pode continuar apelando até encontrar um juiz amigável.
Tentamos descobrir as motivações para o apoio (tácito ou explícito) ao projeto de reconstrução da BR-319 por certas ONGs. Isso não tem sido fácil, dada a falta de transparência das organizações e seus financiadores. Há uma coincidência extraordinária em que as ONGs que se recusaram a condenar o projeto da BR-319 são todas financiadas pela Fundação Gordon e Betty Moore (GBMF). A GBMF proibiu as ONGs que financia de tomar posições contrárias ao projeto da BR-319? Isso poderia ser feito ou explicitamente por uma cláusula nos contratos de concessão (que nem a GBMF nem as ONGs estão dispostas a divulgar) ou mesmo por algum tipo de advertência verbal. Esta é uma questão em aberto.
A GBMF foi criada pelo cofundador da Intel, Gordon Moore, e sua esposa Betty Moore em 2000, com o objetivo de apoiar a pesquisa científica e a conservação ambiental. As concessões da GBMF para instituições brasileiras começaram em 2004 no contexto da Iniciativa Andes-Amazônia. A Fundação concentra suas doações ao Brasil em uma área: terra, ecossistemas terrestres e uso da terra. Suas estratégias para áreas protegidas e territórios Indígenas incluem conservação, consolidação, gestão e monitoramento. A área ao longo da rodovia BR-319 é uma parte particularmente importante do financiamento da fundação. A GBMF tem fornecido financiamento para o objetivo desejável de promover a governança, mas os projetos de governança de ONGs têm um efeito claro na facilitação da aprovação do projeto de reconstrução da rodovia BR-319. Em resposta a uma pergunta sobre a BR-319, um porta-voz da GBMF compartilhou a seguinte declaração conosco: “A construção e pavimentação de estradas em regiões ecologicamente frágeis podem causar grande destruição. Não somos contra estradas; somos a favor do estabelecimento de salvaguardas ambientais e sociais que protegerão a natureza e as pessoas.”
Além do efeito dos projetos de “governança” das ONGs em facilitar a aprovação da licença para permitir a construção, esses projetos e a continuação implícita do financiamento para “governança” após a construção da estrada são parte do dilema que as ONGs e seus financiadores enfrentam com projetos de desenvolvimento prejudiciais em todo o mundo, ou seja, o fato de que as atividades das ONGs reduzem o custo geral dos projetos de construção, tornando-os mais prováveis de serem realizados. O projeto BR-319 é muito mais atraente se o governo arca apenas com o custo do asfalto e outras partes físicas do projeto, enquanto financiadores internacionais, incluindo organizações filantrópicas, pagam a conta por medidas de governança, como controle do desmatamento e proteção de territórios Indígenas. No caso da BR-319, o Ministro dos Transportes declarou que quer usar dinheiro do Fundo Amazônia para tornar o projeto BR-319 “viável” [45, 46].
Uma questão sem resposta é se a GBMF poderia estar financiando os projetos que facilitam a aprovação da BR-319 para beneficiar os próprios investimentos da fundação. Um alinhamento entre os investimentos e os beneficiários do projeto da rodovia não significa necessariamente que tal cadeia de influência exista. Muitas fundações atribuem a gestão de seus ativos a uma empresa terceirizada ou a um departamento dentro da fundação que é separado das atividades de concessão de subsídios. Esses arranjos geralmente implicam que os ativos são administrados para maximizar os lucros sem levar em conta os impactos ambientais e sociais que eles causam. Não se pode presumir que o processo de concessão de subsídios da GBMF seja influenciado pelas implicações da BR-319 para os investimentos da fundação. Sugerimos, no entanto, que esta e outras fundações na área ambiental devem se desfazer de investimentos em atividades prejudiciais ao meio ambiente.
A presença de petróleo e gás no portfólio da GBMF é notável. Além de ser globalmente prejudicial ao clima e outras preocupações, o setor de petróleo e gás é um grande beneficiário da BR-319. O portfólio de investimentos da GBMF não inclui a Rosneft, a gigante russa de petróleo e gás que comprou as primeiras 16 concessões para perfuração na área que seria aberta pela rodovia AM-366 que está planejada para se ramificar da BR-319 [47, 48]. No entanto, a GBMF já investiu no SberBank [49], o maior banco de investimento da Rússia, que é um financiador da Rosneft [50]. O enorme projeto proposto Área Sedimentar do Solimões [51] para petróleo e gás a oeste da BR-319 tem amplo escopo para investimento por outras empresas além da Rosneft. A área total do projeto é de 740.000 km², maior que o estado americano do Texas. A GBMF tem investimentos na petrolífera brasileira Petrobras, na petrolífera russa LukOil – PJSC, na empresa americana Anadarko Petroleum, na China Petroleum and Chemicals, na Perusahaan Gas Comstock (empresa americana ativa na Indonésia), na Indian Petronet LNG e na TownGas China [49].
A Agência Nacional do Petróleo do Brasil designou nove grandes blocos de direitos de perfuração ao longo da rota BR-319 [52]. Embora não estejam no “trecho médio” da rodovia, eles se beneficiariam do projeto da rodovia. Um desses blocos (AM-T-107) foi comprado pela Eneva em parceria com a ATEM [53] no “leilão do fim do mundo” de dezembro de 2023 [54]. A Eneva é uma empresa brasileira de gás e petróleo altamente recomendada pela Dynamo [55], que é a empresa de gestão de ativos da GBMF no Brasil. A própria Dynamo detém uma participação de 10,06% na Eneva, e a Eneva pode se fundir com a Vibra, uma empresa de gás e petróleo na qual a Dynamo detém uma participação de 10,28% [56]. Devido ao impacto sobre os povos Indígenas, uma decisão judicial suspendeu a assinatura de contratos de perfuração para o Bloco AM-T-107 (além de mais quatro blocos comprados por essas empresas no Amazonas fora da área da BR-319) [57]. Independentemente de essa suspensão persistir ou não, o aumento da lucratividade que a BR-319 traria ao setor de petróleo e gás em áreas acessadas por esta rodovia e suas estradas secundárias estimularia a extração de combustíveis fósseis em grande escala e aumentaria as chances de superar as objeções dos povos Indígenas impactados.
A GBMF também investiu na JBS [49], que se orgulha de ser a “maior empresa de proteína animal do mundo”. Os matadouros da JBS e as fazendas que vendem gado para eles são uma grande força no desmatamento da Amazônia. Grandes fazendeiros do hotspot de desmatamento da AMACRO, bem como interesses de soja e outros agronegócios, planejam atingir a área a ser aberta a oeste da BR-319 pela planejada rodovia AM-366 que também daria acesso às áreas de petróleo e gás [58].
O Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) recebeu um total de 10 subvenções do GBMF, entre 2004 e 2022, totalizando mais de US$ 14 milhões [59], incluindo US$ 2 milhões para obras na BR-319 [60]. Os objetivos do financiamento incluem “aumentar o engajamento” dos povos Indígenas no trecho do meio da BR-319 e aumentar a “compreensão pública” de “oportunidades e ganhos para o desenvolvimento sustentável do corredor da rodovia” [61, p. 12].
A Fundação Getúlio Vargas (FGV) recebeu fundos do GBMF que ultrapassaram US$ 6 milhões [62]. O financiamento é para conduzir estudos e promover a criação e implementação de um plano de governança territorial ao longo do corredor rodoviário da BR-319 na Amazônia [63, 64].
O Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM), ONG sediada em Manaus responsável pela coordenação do Observatório da BR-319, recebeu cinco subvenções do GBMF entre 2011 e 2023, totalizando US$ 2,4 milhões, sendo mais da metade (US$ 1,24 milhão) recebida em novembro de 2023 [65]. Um relatório do IDESAM, intitulado “Análise da Implementação de Unidades de Conservação sob a Influência da rodovia BR-319”, em colaboração com o Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade), que também é financiado pelo GBMF [66] descreveu os benefícios e oportunidades que a reconstrução da BR-319 poderia oferecer à região amazônica [67].
ONGs ambientais e organizações filantrópicas devem se opor a projetos que colocam em risco áreas ricas em biodiversidade. A reconstrução proposta da rodovia BR-319 coloca em risco muito do que resta da floresta amazônica brasileira e é certamente um dos projetos ambientalmente prejudiciais do mundo (por exemplo, [5, 6]). Essas organizações devem verificar se seus esforços realmente beneficiam os destinatários pretendidos: o meio ambiente e as comunidades Indígenas. Elas também precisam aumentar muito sua transparência.
Referência
[1] A imagem que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo/Amazônia Real e mostra o trecho do meio da BR 319, nas proximidades do distrito de Realidade, no Amazonas.
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"Lula defende obra na BR-319 e vê importância em rodovia com seca na Amazônia. Presidente prometeu retomar asfaltamento 'com responsabilidade' para evitar desmate e grilagem de terra próximo à rodovia" é o título da reportagem publicada por Folha de S. Paulo, 10-09-2024.
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Desastre ambiental na Amazônia e violação de direitos indígenas facilitados por projetos de governança na BR-319 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU