26 Junho 2024
"A popularidade é a âncora fundamental de resistência e o principal ativo de um governo antineoliberal. Se ele a perde, torna-se cada vez mais refém das instituições e regulações neoliberais, preparando-se o caminho para a ascensão da extrema-direita. Por que houve esta grave tendência à queda de popularidade do governo Lula?", escrevem Juarez Guimarães e Marilane Teixeira, em artigo publicado por A Terra é redonda, 24-06-2024.
Juarez Guimarães é professor titular de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).
Marilane Teixeira é pós-doutorada pelo Programa de Desenvolvimento econômico e social do Instituto de Economia da Unicamp.
É preciso superar a subordinação negociada com o sistema de poder neoliberal, expressa no chamado Novo Arcabouço Fiscal, para realizar o programa eleito pelo governo Lula e atender aos anseios majoritários da população.
Há uma convergência de pesquisas de opinião de vários institutos – Quaest, IPEC, DataFolha, Atlas, CNT/MDA – indicando que desde o início do segundo semestre de 2023 há uma tendência decrescente da popularidade do governo Lula. Esta tendência teria alcançado segundo estes institutos um ponto crítico nestes últimos dois meses. Os que avaliam o governo como ótimo/bom empatam em proporção com os que avaliam o governo como péssimo/ruim.
Estes índices seguem um padrão já conhecido nas eleições de 2022: a aprovação do trabalho do presidente Lula é majoritária apenas no Nordeste e minoritária em todas as outras regiões; é majoritária entre mulheres, negros e pardos, católicos, entre os que recebem até dois salários-mínimos; a desaprovação é majoritária entre homens, brancos, à medida em que cresce a renda.
Na pesquisa Quaest, indagam-se as razões do descontentamento com o governo. 49 % dos entrevistados avaliam que o governo está na direção errada contra 41% que afirmam o contrário. 38 % contra 27% julgam que a economia piorou. Entre os principais problemas, 23 % citam a economia, 19 % a saúde, 17 % a segurança pública. A Pesquisa IPEC feita em 4 de abril revela uma insatisfação sobre temas fundamentais. No combate ao desemprego, 40 % de ruim/péssimo contra 26 % de ótimo/bom; em relação à inflação, 45 % de ruim/péssimo contra 26 % de ótimo/bom; na saúde, 42 % de ruim/péssimo e 28 % de ótimo/bom. Na educação e no combate à fome, a avaliação do governo se apresenta melhor, com índices superiores ou em empate técnico de avaliação positiva.
Na pesquisa Quaest de abril, 63% avaliam contra 32 % que Lula não está cumprindo as suas promessas de campanha no governo. Entre os que nele votaram, 71 % repetiriam o voto e 19 % avaliam que fizeram a escolha errada. Em uma nova pesquisa Quaest realizada entre 2 e 6 de maio, 55 % avaliam que o governo Lula não deveria ter uma nova chance em 2026 contra 42 % que seriam favoráveis à sua reeleição. Dos que votaram em Lula no segundo turno das eleições de 2022, 74 % repetiriam o voto e 23 % não (quase ¼ em eleições que foram decididas por uma pequena margem).
Estas pesquisas indicam que há um perigoso processo de erosão da esperança construída nos anos de resistência aos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro e que alcançou uma decisiva mas ainda frágil maioria nas eleições presidenciais de 2022. De modo evidente, o governo Lula não vem consolidando e muito menos alargando uma maioria de apoio contra a extrema-direita neoliberal.
Este processo de erosão pode se cristalizar em uma dramática ruptura nos próximos meses, criando um cenário profundamente negativo para as candidaturas de esquerda ou de centro-esquerda nas disputas municipais das capitais e dos principais centros urbanos do país, comprometendo o futuro do próprio governo. Pode também, é claro, ser revertido a partir de novas iniciativas e estratégias do governo Lula, que o aproximem, apesar dos constrangimentos neoliberais, do programa eleito em 2022.
A popularidade é a âncora fundamental de resistência e o principal ativo de um governo antineoliberal. Se ele a perde, torna-se cada vez mais refém das instituições e regulações neoliberais, preparando-se o caminho para a ascensão da extrema-direita. Por que houve esta grave tendência à queda de popularidade do governo Lula?
A hipótese que quase sempre é levantada em primeiro lugar é que o governo se comunica mal ou de maneira insuficiente. Decerto, o governo está diante de duas poderosas redes inimigas e adversárias: aquela formada pelo bolsonarismo, com o apoio direto da extrema direita norte-americana, e aquela das grandes empresas de comunicação, empenhadas em um assédio neoliberal permanente às ações do governo. Diante delas, é evidente a deficiência comunicativa estrutural do governo e das esquerdas brasileiras, que ainda não encontrou um caminho de solução. Por esta hipótese, as boas iniciativas do governo nas políticas públicas e na própria condução macro-econômica teriam seus efeitos amortecidos ou neutralizados pela contra-propaganda inimiga e adversária.
As teorias da comunicação mais inteligentes e referenciais indicam que uma pessoa forma sua opinião recebendo a notícia e opinião, conversando sobre elas em suas redes de socialização e contrastando-a com o vivido em sua realidade. A formação do que tem se chamado de um eco-sistema de manipulação e de fake-news certamente enviesa fortemente este processo. O núcleo dos bolsonaristas mais fanáticos continuaria com uma avaliação negativa do governo Lula mesmo se este lhe oferecesse um céu. Mas uma parcela importante dos que votaram em Jair Bolsonaro, uma larga faixa de pessoas que não estão polarizadas e uma parte importante dos que votaram em Lula formam suas opiniões sobre o governo com a referência fundamental na experiência real da vida. E estas pessoas estão formulando uma avaliação negativa ou não positiva do governo Lula.
Em suma: embora seja uma questão muito influente e que age negativamente, a capacidade comunicativa deficiente do governo não explica a dinâmica principal do processo de perda de popularidade do governo Lula entre aqueles que não compõem o núcleo duro do bolsonarismo.
Uma segunda hipótese, levantada por setores da esquerda petista, é que o governo não responde à polarização permanente da extrema-direita, preferindo sempre o caminho da conciliação. Teria sido assim com a cúpula militar depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023, no encaminhamento do acordo com o capital financeiro na conformação do chamado Novo Arcabouço Fiscal, nas negociações feitas com o mal chamado “Centrão”, nas relações com o grande agro-negócio, com os evangélicos conservadores e com o próprio bolsonarismo, evitando o apelo a manifestações de rua contra a extrema direita. Esta preferência pelo caminho institucional e negociado pragmaticamente caso a caso retiraria o chão para a mobilização dos movimentos sociais, conformados a apoiar o governo.
Este seria outro ativo fundamental de um governo antineoliberal: a mobilização social, participativa, no enfrentamento dos valores da extrema direita neoliberal. Está bem nítido neste ano que a extrema-direita ocupou as ruas nos primeiros meses do ano de forma muito mais importante e simbolicamente afirmativa que as esquerdas brasileiras.
Não há como negar o que há de verdade fundamental nesta segunda hipótese. Mas há de se reconhecer em seguida que a agenda do governo Lula, sempre negociada em um ambiente institucional hostil ou adverso, não propicia a organização de campanhas nacionais massivas em apoio a elas. De novo, é a vida real das pessoas e principalmente as situações muito adversas vividas ainda pelas classes trabalhadoras que deve se consultar.
As agendas de políticas públicas e de iniciativas gerais do governo até agora são uma resposta suficiente para responder as necessidades urgentes das pessoas? A resposta é que não. Diante de uma situação difícil, mas não aguda, pode-se propor um caminho gradual e processual que vá construindo ao longo de uma série de anos respostas para aquelas pessoas que vivem carências fundamentais.
O próprio sentido da resposta vai sendo gradualmente construído, passo a passo, na medida em que as respostas vão criando novas possibilidades. Mas esta não é a situação vivida pelo Brasil após um impasse profundo dos governos democrático populares, que estava já evidente em 2014, tornou-se crise aberta em 2015 e 2016, agravou-se profundamente durante o desgoverno de Michel Temer e alcançou um padrão calamitoso durante o governo de destruição de Jair Bolsonaro.
Após a grande tragédia do Rio Grande do Sul, a consciência ecológica dos brasileiros já não é mais a mesma. O Brasil vive uma experiência particular de predação da natureza em meio à grave crise ecológica mundial: uma economia periférica de predação (produção de grãos, carnes e minérios de exportação), com padrões baixíssimos de regulação e com todos os seus biomas fundamentais sob pressão destrutiva. É certo que virão novos fenômenos climáticos extremos com vasto grau de destruição. Não seria emergencial um grande programa de intervenção público de prevenção, dotado de vultosos investimentos públicos e com uma articulação ministerial e federativa?
Após a criminosa tragédia vivida na pandemia da Covid, com mais de setecentos mil mortos, diante do governo mais negacionista do mundo e com a militarização e desmonte do Ministério da Saúde, desde sempre com grave insuficiência de aporte de recursos pelo governo federal, pode-se pensar uma gestão normalizada do SUS como se nada houvesse acontecido?
A epidemia da dengue bateu recorde nestes anos com mais de 400 mil brasileiros infectados, gerando inclusive mortes evitáveis. Como enfrentar demandas represadas de consultas e operações, precarizações do trabalho em saúde, vazios sanitários que geram enorme custo social, sem um plano emergencial de investimentos e programas estruturais de construção do SUS?
Não se pode subestimar, sobretudo, a grave crise social vivida pelas classes trabalhadoras no Brasil. Se o impasse vem mais claramente desde 2014, quando houve praticamente uma estagnação econômica (aumento de 0,5 % do PIB), os anos seguintes agravaram profundamente as dinâmicas de desemprego e precarização. Há um contexto estrutural de diminuição da abrangência dos direitos do trabalho em relação à População Econômica Ativa, uma dinâmica econômica de permanente pressão pela precarização em meio a uma regulação crescentemente neoliberal do mundo do trabalho e sindical.
Sem direitos do trabalho nunca se construiu uma base estável para um regime democrático. O terceiro governo Lula está diante de um impasse histórico: este não pode ser superado por uma dinâmica resultante de um crescimento econômico baixo em meio a uma economia profundamente financeirizada. De novo: seria necessário um programa emergencial e histórico de reconstrução dos direitos das classes trabalhadoras a partir de políticas públicas de emprego e de forte elevação do salário mínimo.
Em síntese: há um erro fatal de diagnóstico na estratégia de um governo que pensa em resolver, de modo negociado, gradual e processualmente, uma crise social, ecológica e sanitária que têm um caráter dramático e emergencial. E na dura lida da vida cotidiana dos brasileiros, a esperança vai se desfibrando.
De acordo com os resultados recentes de três pesquisas de opinião – o Instituto França (11/2023),[i] Datafolha (12/2023) e o Instituto IPEC (4/2024) – o tema do desemprego aparece com destaque entre os principais problemas do Brasil e objeto de avaliação negativa do governo. Na primeira, os principais problemas mencionados de forma espontânea pelos entrevistados, a saúde pública lidera com 19,9% das menções, seguido pelo desemprego/subemprego com 12,5% das menções.
Na pesquisa do Datafolha de dezembro de 2023 o tema do desemprego ocupa a quarta posição com 7% de menções. Na comparação com a pesquisa anterior, caiu levemente: em setembro do mesmo ano havia registrado 9%. Para a mesma pesquisa, o combate ao desemprego no governo Lula é visto como ótimo ou bom por 26%, enquanto 41% consideram ruim ou péssimo e 33% regular.[ii] Para o Instituto IPEC, a atuação do governo Lula no combate ao desemprego é considerada regular, ruim ou péssimo para 70% das pessoas entrevistadas, levemente superior para mulheres e jovens de até 24 anos, justamente um segmento que concentra as maiores taxas de desemprego.
Desde o início do terceiro mandato do presidente Lula, as expectativas sobre as mudanças no nível e estrutura do emprego passaram a se apoiar fortemente na retomada da atividade econômica. Contudo, as evidências vêm demonstrando que, ainda que persista uma forte tendência de geração de postos de trabalho, eles são insuficientes diante de um mercado de trabalho altamente desestruturado e desigual.
As condições gerais do trabalho se alteraram de forma absolutamente desfavorável nesta última década. Ampliou-se sobremaneira a participação de múltiplas formas de trabalho precário, marcadas pela ausência de vínculos, contratos em tempo parcial, contratos intermitentes, pejotização, liberação da terceirização irrestrita, trabalho por conta própria, autônomo, potencializados pela reforma trabalhista e pela forte presença de trabalho organizado e controlado por empresas em plataformas digitais.
A desocupação é um desafio em todo o território nacional, embora se concentre nas regiões Nordeste e Sudeste pela sua dimensão populacional. Em torno de 76% das pessoas desempregadas vivem nestas duas regiões. A taxa de desocupação de 7,9% no 1º trimestre de 2024, não reflete a realidade de vários estados brasileiros, cujas taxas estão acima de dois dígitos, evidenciando as desigualdades regionais, considerando que as maiores taxas estão concentradas na região Nordeste e Norte.
Ao longo da última década, a desocupação passou de 7,1 milhões em 2012, menor patamar no governo Dilma, para 13,4 milhões em 2017, 12,8 milhões em 2019 e 10,0 milhões em 2022, reduzindo-se para 8,6 milhões em 2023 e se estabilizando no 1º trimestre de 2024. Ainda assim, seguimos com um nível de desocupação acima de 2012 em 1,5 milhão e uma taxa 0,5% superior. A taxa atual de desemprego é de 7,9%.
Os dados também revelam que as pessoas sem ocupação são mulheres negras, com índices mais altos de desemprego em 11,7% e jovens. 35,7% das pessoas desocupadas estão na faixa etária entre 14 e 24 anos; 91,7% se concentram em áreas urbanas e têm baixa escolaridade. O tempo na busca por trabalho também é mais desigual entre as mulheres, 24% das mulheres brancas e 27% das mulheres negras se encontravam a mais de 2 anos sem conseguir trabalho.
Dois aspectos dessa realidade precisam ser evidenciados. O primeiro diz respeito ao número expressivo de pessoas que abandonaram a busca por trabalho revelado pelos dados referentes à Força de Trabalho Potencial[iii] que se ampliou de 5,6 milhões em 2012 para 6,9 milhões no 1º trimestre de 2024.O segundo refere-se ao desalento, condição em que as pessoas desistiram de buscar trabalho: cresceu 91%, de 1,9 milhões para 3,6 milhões, entre 2012 e 2024. Portanto, se considerarmos a força de trabalho potencial mais os desalentados, o número de pessoas desempregadas dobraria, uma vez que são 10,5 milhões de pessoas que se encontram nestas duas condições. Entre aquelas na condição de desalentadas 74,7% são compostas por pessoas negras.
E para as pessoas que conseguiram se inserir no mundo do trabalho, destaca-se a subocupação, o assalariamento sem carteira e o trabalho por conta própria. A subocupação por insuficiência de horas trabalhadas[iv] é uma condição em que os indivíduos gostariam de trabalhar mais horas do que efetivamente estão realizando: são 5,2 milhões nestas condições, de acordo com os dados do 1º trimestre de 2024. A hipótese e de que os setores mais vulneráveis (jovens, menor escolaridade e das regiões com mercado de trabalho menos organizado) são os que se encontram em faixas mais extremas de tempo dedicado ao trabalho, por estarem em atividades por conta própria e na subocupação por horas insuficientes. 49,9% das pessoas declaradas como subocupadas recebiam até ½ salário mínimo.
O trabalho por conta própria representa 25% do total de pessoas ocupadas (25,4 milhões) e 66,4% não contribuem para a previdência social. Se considerarmos apenas os que estão fora do sistema de proteção social, são 16,8 milhões por conta própria, 13,4 milhões de assalariados sem carteira, 4,4 milhões de empregadas domésticas sem carteira e 1,4 milhões que trabalham em auxilio as famílias. No total, são 36,1 milhões, ou seja, 36% do total de pessoas ocupadas. Mas se incluirmos as pessoas que estão desocupadas, subocupadas, em desalento ou na Força de Trabalho Potencial teremos 52,2 milhões de pessoas que se encontram com algum grau de vulnerabilidade ou de precariedade.
O desmonte nos direitos do trabalho com a aprovação da reforma trabalhista e a ampliação da terceirização em 2017 aprofundou ainda mais o nosso já frágil mercado de trabalho e a sua reversão pressupõe reduzir a pressão sobre o elevado número de pessoas que compõem o exército de reserva. Essas formas atípicas podem ser contidas desde que haja um vigoroso programa de geração de ocupações por parte do Estado.
Outro aspecto igualmente importante diz respeito a distribuição dos rendimentos. De acordo com os dados do IBGE, em 2023, os 10% da população brasileira com maiores rendimentos domiciliares per capita tiveram renda 14,4 vezes superior aos 40% da população com menores rendimentos. Essa diferença é a menor já registrada pela PNAD contínua. O 1% da população com maior rendimento recebe 39,2 vezes mais em relação aos 40% de menor renda.
Em 2019, a diferença era de 48,9 vezes[v]. Os fatores que ajudam a explicar essas diferenças mais favoráveis para redução das diferenças estão associados à ampliação do valor do Bolsa família, à redução do desemprego e à valorização do salário mínimo. Ainda que estes resultados sinalizem melhoras na distribuição dos rendimentos, seguimos como um dos mais países mais desiguais do mundo. Em 2023, 57,9% das pessoas viviam em domicílios cuja renda per capita domiciliar era de até 1 salário mínimo.
É a falsa a suposição de que o governo ao financiar por meio de gastos a geração de ocupações se opõem aos interesses dos empresários, o emprego obtido por meio da ampliação dos gastos beneficia a todos porque contribui para a expansão econômica, a renda, o consumo e os investimentos, mas se considerarmos apenas as motivações políticas qualquer poder que possa ser dado ao governo para ampliar de forma autônoma suas próprias despesas se torna um poderoso instrumento em que o controle do capital com base no “equilíbrio” perde a sua eficácia, como já dizia Kalecki.
Entre a esperança dos brasileiros e uma nítida dinâmica de sua realização está o sistema de poder do neoliberalismo, herdado das últimas décadas e dramaticamente aprofundado nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que impõe uma dinâmica de financeirização da economia. Esta é definida como um processo de acumulação capitalista orientada para os ganhos financeiros improdutivos, que reforça os laços coloniais de subordinação histórica-estrutural do país, subordina em redes toda a economia e a própria ação do Estado à sua lógica.
O que isto significa na prática? Para 2024, o pagamento de juros da dívida pública está previsto em 740 bilhões, ou seja, 6,9 % do PIB. É mais do que o triplo dos investimentos em saúde pelo governo federal, cerca de nove vezes o investimento federal em educação, mais de sete vezes o gasto do governo Lula com infraestrutura. A financeirização afeta gravemente o consumo das famílias, já que a taxa média de credito pessoal em 2022 era de cerca de 30 % ao ano.
Os investimentos empresariais, que diante do alto custo são desincentivados em prol da aplicação rentista em títulos de valor pré-fixado. De acordo com cálculos do professor Ladislau Dowbor, 82% do estoque da dívida pública de sete trilhões de reais são o resultado da dinâmica de juros sobre juros e não de gastos diretos do Estado.
Ora, esta dinâmica de financeirização impede o enfrentamento profundo e estrutural do desemprego e precarização do trabalho, a recuperação dos salários e o investimento necessários e incontornáveis nas políticas sociais, além de incentivar cada vez mais a concentração de renda. Em suma, impede a reconstrução das bases sociais da democracia no país.
Uma excelente plataforma para pensar este impasse, de um ponto de vista histórico e estrutural, está na reflexão da economista Leda Paulani em um longo ensaio “Caminhando sob gelo fino. O Novo Arcabouço Fiscal e seus antecedentes”, escrito em maio deste ano. Ele procura explicar porque o Brasil sem dívida líquida externa e com vastas reservas em dólar, sem a injunção do FMI, com uma dívida interna relativamente baixa se comparada internacionalmente, persistia na aplicação de políticas macro-econômicas neoliberais, praticando juros exorbitantes e a mal chamada austeridade fiscal.
A resposta que constrói é histórica e remonta a 1980, com a chegada de Reagan ao governo dos EUA, e a súbita e radical elevação da taxa de juros dos EUA, que levou à crise das dívidas externas em países endividados a juros flutuantes, como o Brasil. A partir daí, no governo Fernando Henrique Cardoso foram-se construindo novas regulações, leis e dinâmicas institucionalizadas que, de fato, significavam a cristalização de uma estrutura de poder de financeirização da economia, tendo como centro agora a dívida pública.
Os governos Lula, mesmo após 2006, operaram nas brechas existentes, explorando uma conjuntura favorável à exportação de commodities, mas “sem mexer nos marcos legais, institucionais e socioeconômicos que davam protagonismo à riqueza e aos interesses financeiros”. Houve um importante momento, como resposta à crise financeira internacional de 2008, no qual se iniciou um processo de saída desta dinâmica, mas ela não se consolidou. Os governos Dilma se instalaram em meio a esta limitação institucional estrutural, já diante de uma conjuntura econômica internacional adversa, tendo uma dinâmica irregular e em desequilíbrio, terminando por ceder, no início de seu segundo mandato, o próprio Ministério da Fazenda a uma governança abertamente neoliberal.
Esta herança institucional neoliberal teria sido aprofundada com as leis anti-trabalhistas aprovadas durante o governo Temer, que levaram à generalização dos processos de terceirização e precarização, e a mal chamada autonomia do Banco Central, aprovada no governo de Jair Bolsonaro, que retirou do controle soberano do presidente eleito a escolha da direção daquela instituição inteiramente hoje capturada pelos grandes bancos e financistas.
Neste contexto, o Novo Arcabouço Fiscal seria uma espécie de escolha pragmática, fortemente circunstanciada pela existência da EC-95 (que impedia novos investimentos públicos e sociais constitucionalmente por um longo período) e por um Congresso Nacional fortemente conservador e neoliberal. Ele seria menos um ato soberano de uma vontade e mais uma decisão fortemente constrita e que exporia o terceiro governo Lula a um passo fortemente limitado e sob risco permanente.
Pode-se e deve-se dialogar com uma reflexão tão inteligente e que expõe, sobretudo, a política da economia e como ela condiciona o próprio caminho da reconstrução democrática do país. O seu centro é expor a contradição entre a vontade soberana saída das urnas com a eleição de Lula, condicionada pela forte votação da extrema direita neoliberal, e o legado institucional do regime de poder neoliberal. Há, neste sentido, três hipóteses que deveria se trabalhar.
A primeira hipótese seria a de claramente sobrepor a vontade soberana resultante das eleições ao legado institucional do regime de poder neoliberal. Isto é, iniciar já na instalação do governo um processo de ruptura e transição para uma nova institucionalidade macro-econômica, que permitisse uma forte retomada do crescimento econômico, com uma retomada e aprofundamento estrutural das políticas sociais de inclusão e distribuição de renda. Chama-se esta hipótese de transição para a superação da financeirização.
Esta hipótese estaria, no entanto, impedida institucionalmente pela “autonomia” do Banco Central (dirigido por um bolsonarista orgânico) e por um Congresso Nacional conservador, que provavelmente resistiria a uma revisão da EC-95, que precisaria de uma maioria de 2/3 para ser revogada. Frente a uma tentativa de golpe militar, que exigiu a formação de uma frente ampla em defesa do mandato do recém-eleito, uma tal hipótese de transbordamento da legalidade neoliberal instituída não teria legitimidade democrática para se processar.
Uma segunda hipótese, que foi praticada pelo governo Lula após 2006 e pelo primeiro mandato de Dilma, seria arbitrar através de uma estratégia decidida pelo Ministério da Fazenda, bancos públicos, estatais um contraponto à institucionalidade neoliberal, para criar dinâmicas autonomizadas em relação à financeirização.
Como a opção dos governos Lula e Dilma foi a de sempre manter uma direção neoliberal no Banco Central, em um claro compromisso de governança com o capital financeiro, este contraponto significou sempre uma permanente instabilidade, exposta às conjunturas econômicas internacionais, e incapaz de estabilizar um ciclo sustentado de crescimento com reindustrialização, consolidação de um mercado de trabalho formalizado, distribuição de renda e uma qualitativa reconstrução, em um novo patamar, das políticas sociais. Chama-se a esta hipótese de arbitral, isto é, ela pragmaticamente arbitraria políticas desenvolvimentistas, de sentido trabalhista e de inclusão social em disputa permanente com a lógica da financeirização, que permaneceria.
Uma terceira hipótese, que está sendo praticada pelo terceiro governo Lula é a de uma subordinação negociada. Ela se diferenciaria da segunda hipótese, no sentido de que o contraponto do Ministério da Fazenda, dos bancos públicos, das estatais se daria de modo constrangido por um poder sistêmico da financeirização mais desenvolvido institucionalmente do que nos governos Lula e Dilma anteriores. Pode haver diferentes graus de subordinação e negociação.
Em uma análise objetiva, o Novo Arcabouço Fiscal apresenta um grau importante de subordinação, ainda mais aprofundado a partir da meta de um déficit zero no superávit primário em seu primeiro ano. Ele já se instala e projeta-se em meio a uma tal dinâmica de financeirização, sem um contraponto decisivo, que impede um curso de reconstrução.
Os meses finais do primeiro semestre de 2024 viram dramatizar o impasse da subordinação negociada ao sistema de poder neoliberal. Em uma clara campanha midiática liderada pelo presidente bolsonarista do Banco Central, ao mesmo tempo em que o presidente do Senado barrava projetos para aumentar a arrecadação do governo diante de escandalosos privilégios fiscais, houve uma paralisação do processo de redução dos juros básicos da economia, e uma pressão, apoiada por neoliberais inseridos no Ministério da Fazenda, pela desarticulação dos pisos constitucionais de investimento em saúde e educação, uma nova investida sobre direitos dos trabalhadores, uma proposta de desvincular as aposentadorias do INSS dos reajustes do salário-mínimo. Enfim, trata-se de passar de uma subordinação negociada para um processo de aberta autodestruição do governo Lula frente às suas bases sociais.
Três fatos altamente positivos até agora se contrapuseram a este movimento da extrema-direita neoliberal. O primeiro foi a maior greve nacional de técnicos-administrativos e professores das universidades e institutos federais do país da última década, reivindicando reajustes salariais após anos de arrocho, recomposição dos orçamentos das universidades e mudanças fundamentais na carreira dos técnico-administrativos.
A greve, apesar de não obter plenamente a sua pauta, foi capaz de mover o governo Lula para a mesa de negociação e fazer concessões que alteram a posição inicial de incorporar em seus quatro anos o arrocho do funcionalismo herdado dos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, além de iniciar uma recomposição orçamentária do investimento nas universidades.
O segundo foi o movimento geral do governo Lula frente à tragédia anunciada do Rio Grande do Sul. Legitimado pela resposta à situação de calamidade, o governo federal aprovou um plano, com o apoio do Ministro da Fazenda, de investimento de dezenas de bilhões de reais não contingenciados pelo Novo Arcabouço fiscal.
O terceiro foi a movimentação da Frente pela Vida, que reúne unitariamente entidades do movimento sanitarista, o Conselho Nacional de Saúde e entidades democráticas de todo o país, em defesa aberta dos pisos constitucionais de investimento em saúde e educação. Após terem sido recebidos pelo Ministério da Fazenda, houve uma declaração pública do próprio Lula de que não haveria nenhuma redução em relação aos pisos constitucionais definidos.
A estes três movimentos positivos, soma-se a vitória nas ruas e nas redes obtida pelo movimento feminista e pelas mulheres brasileiras, obrigando ao recuo do chamado PL do estupro, apoiado por Arthur Lira, pelos evangélicos bolsonaristas e vergonhosamente pela direção da CNBB, agora dominada pelos setores conservadores, em uma posição das mais obscurantistas da entidade nas últimas décadas.
A grande lição deste episódio, em torno a uma agenda sob forte pressão conservadora, é que há um potencial feminista e também social de mobilização por agendas de transformação que precisariam ser mais ativadas, até como modo de alterar a correlação de forças conservadora quem emana da institucionalidade neoliberal.
Não deixa de ser interessante que duas pesquisas divulgadas nos últimos dias, do DataFolha e da CNT, registraram melhoras na margem mas importantes da popularidade do governo Lula. Elas certamente revelam estes momentos positivos antes indicados.
Esta micro-conjuntura de retomada de posições de princípio, de valores fundamentais, de justa indignação e mobilização contra a ofensiva da extrema-direita neoliberal, pode e deve ganhar corpo neste período imediato em cinco grandes iniciativas.
A primeira grande iniciativa é sair da posição pública governamental de se conformar, justificar e, alguns momentos, até fazer apologia da subordinação negociada ao sistema de poder neoliberal, traduzido no Novo Arcabouço Fiscal. A extrema e aberta politização da estratégia neoliberal, capitaneada pelo Banco Central e apoiada por Arthur Lyra, pode e deve ser denunciada publicamente com a defesa dos valores republicanos e os direitos fundamentais do povo brasileiro e das classes trabalhadoras.
É preciso falar em uníssomo: governo, partidos de esquerda e centro-esquerda e movimentos sociais contra este verdadeiro golpe no programa eleito democraticamente em 2022. Foi muito importante, neste contexto, o posicionamento da direção Executiva Nacional do PT em forte denúncia do Banco Central, seguindo o posicionamento de Lula e de outras lideranças parlamentares. Quem define a agenda já tem metade da luta política ganha. Que os bolsonaristas paguem caro nas urnas neste ano por serem contra os direitos fundamentais do povo brasileiro!
A segunda grande iniciativa é liberar o BNDES, os bancos públicos, a Petrobrás e todos os instrumentos que o governo federal dispõe para agir imediatamente contra a política de financenceirização e recessionista organizada pelo Banco Central. Na posição de subordinação negociada, estes instrumentos poderosos de alavancagem do investimento e do crédito estão amarrados e em grande medida neutralizados. Não há nenhuma razão para não romper com este vergonhoso conformismo.
O terceiro movimento político é o de iniciar já a construção de uma alternativa que permita a saída da saúde, educação e previdência da canga do arcabouço fiscal neoliberal, como já foi proposto pela esquerda petista em seu posicionamento público em 2023. A redução do déficit público deve priorizar o corte dos gastos financeiros e aqueles subsídios e isenções fiscais escandalosos. Uma campanha como esta tem todo o potencial de ganhar o apoio entusiasmado da maioria do povo brasileiro, ainda mais se visualizado com programas de investimento fundamentais nestas áreas que passam, em particular a saúde, por situações emergenciais de carecimento.
O quarto grande campo de iniciativas é o de criar oportunidades por meio da economia solidária, empreendimentos solidários, economia popular e ação direta do Estado para que as pessoas tenham acesso a trabalho e renda, especialmente entre os mais desfavorecidos. O Estado atuaria por meio da criação de um programa de geração de “Ocupações Sociais” para incluir pessoas que estejam desempregadas ou empregadas de forma precária.
Ele seria o embrião de uma proposta mais ampla e estruturante de criação de ocupações que sejam relevantes para sociedade, a partir de três pressupostos essenciais: atender as necessidades socioambientais, ampliar a oferta de bens públicos e garantir maior soberania nacional (política de cuidados, ciência, tecnologia, domínio da biodiversidade, entre outras). Isto será fundamental para iniciar um verdadeiro movimento de reconstrução do mercado de trabalho dos brasileiros, hoje tão desestruturado pelas políticas neoliberais.
Além disso, o consumo é um componente fundamental de nossa matriz econômica. Em geral, os trabalhadores gastam tudo o que ganham. 32,6% das pessoas ocupadas recebem até 1 salário-mínimo. Uma política vigorosa de recuperação do valor do salário-mínimo deve ser considerada uma prioridade para o governo. Assim como no passado recente, ela pode ser decisiva para a retomada do crescimento econômico, da capacidade de consumo e da redução do endividamento das famílias. Essa política é perfeitamente compatível com nossos objetivos econômicos e sociais com efeitos distributivos reais entre as pessoas mais pobres.
Enfim, o quinto grande campo de iniciativas é o de retomar os fundamentos e iniciativas de participação popular no governo Lula. Frente a uma conjuntura que aponta cada vez mais para iniciativas de desestabilização do governo Lula por parte do mal chamado “Centrão”, a governabilidade vai depender cada vez mais do apoio direto de mobilização e de participação social como modo de ir legitimando suas agendas.
Este cinco campo de iniciativas poderia certamente permitir às esquerdas e centro-esquerdas brasileiras retomaram o diálogo com a esperança majoritária dos brasileiros, preparando já um novo momento macroeconômico e de governança do Banco Central após a substituição de seu atual dirigente bolsonarista.
[i] Governo Lula é aprovado por 49% e reprovado por 41%, diz pesquisa Instituto França - Jota.info
[iii] A força de trabalho potencial é definida como o conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade que não estavam ocupadas nem desocupadas na semana de referência, mas que possuíam um potencial de se transformarem em força de trabalho. Este contingente é formado por dois grupos: I. pessoas que realizaram busca efetiva por trabalho, mas não se encontravam disponíveis para trabalhar na semana de referência; II. pessoas que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas gostariam de ter um trabalho e estavam disponíveis para trabalhar na semana de referência.
[iv] São as pessoas ocupadas na semana de referência que trabalhavam habitualmente menos de 40 horas e gostariam de trabalhar mais horas que as habitualmente trabalhadas, ou seja, com disponibilidade para trabalhar mais horas no período de trinta dias a partir do início da semana de referência.
[v] Renda dos 10% mais ricos é 14,4 vezes superior à dos 40% mais pobres - Agência Brasil.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Lula e os caminhos (sem atalhos) da esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU