Desclericalizar e desmasculinizar a Igreja. Exigências para uma eclesiologia a múltiplas vozes. Conferência de Andrea Grillo

Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission

Por: Andrea Grillo | 19 Junho 2024

"Uma dualidade fecunda, como a dialética entre instituição e carisma, se aplicada de forma rígida e eu diria quase imposta aos gêneros masculino e feminino, acaba por confirmar sistematicamente um preconceito cultural. Que os homens seriam especializados em instituições (mesmo sem carisma) e as mulheres em carismas (mas necessariamente sem poder institucional) é um resultado que pode ser até apresentado por teologia sublime e inatingível, mas que se revela como um preconceito polido e enfeitado, numa maneira não nem tão escondida", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo. 

A seguir, reproduzimos o texto da conferência de Andrea Grillo, Desclericalização e desmasculinização da Igreja. Exigências para uma eclesiologia a múltiplas vozes, que será transmitida ao vivo, nesta quarta-feira, 19 de junho, às 10h. A atividade integra o Ciclo de estudos: O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja. A tradução é de Luisa Rabolini.

Assista no vídeo a seguir, no site do IHU ou em nossos canais

Eis a conferência. 

“A via régia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelas na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo". K. Barth [1]

No contexto de uma afirmação gradual de uma eclesiologia que assuma as duas figuras fundamentais afirmadas pelo Concílio Vaticano II e repetidas, com palavras sul-americanas pelo Papa Francisco, com as imagens da "pirâmide invertida" e do "poliedro", deveríamos dizer que não dá para imaginar que tudo possa ser invertido, que a pluralidade de figuras possa afirmar-se, e que apenas sobre a “mulher” a pirâmide deva permanecer “não invertível” e a figura do “sólido” continue sendo apenas aquela do "paralelepípedo monolítico". Por que tal contradição, que às vezes aparece flagrante até nas palavras do próprio Francisco? Acredito que este ponto, ou seja, a compreensão do “feminino” seja mais complexo do que a compreensão do “não clerical”. É mais fácil “desclericalizar” do que “desmasculinizar”. Ambas são coisas muito difíceis, porque identificam a Igreja com uma cultura histórica que assumiu uma postura e uma atitude aprendidas na “sociedade de honra”.

O que caracteriza a sociedade de honra? As suas características são duas: a diferença e a autoridade. A sociedade aplica esse duplo princípio em diferentes níveis. Vejamos os três principais:

Entre os três níveis existem muitas afinidades e algumas fundamentais diversidades. A principal delas, aquela que torna maior a inércia da diferença c) é a pretensão de que ela pertença à “natureza”. É a única a ter, ainda hoje, a pretensão de ser fundada naturalmente e criaturalmente.

Essa é a razão pela qual uma Igreja “desclericalizada” deve, em última análise, elaborar somente a recuperação de uma fundamental igualdade entre leigos e clérigos. É difícil, é dificultado, é objeto de censura, mas não é percebido como “escandaloso”. Ao passo que “desmasculinizar” parece escandaloso porque parece negar uma “verdade natural”. Por essa razão é muito fácil deslocar a questão da “mulher” para a “teoria do gênero” e assim, incorreta e arbitrariamente, silenciar tudo. Se conseguíssemos demonstrar que “desmasculinizar” é “negar a Deus”, então tudo permaneceria como está.

O que me proponho hoje, porém, é precisamente o contrário. Ou seja, mostrar como a “reserva masculina” já não tem mais razão de ser e é apenas a inércia da “sociedade da honra”, na qual a tradição católica dos últimos 50 anos (no topo da pirâmide, mas não na base) ousou identificar até a “divina constituição da Igreja”. Diante desses argumentos, hoje devemos ter duas atitudes: usar parresia (como pede o Papa Francisco) e superar os impedimentos antigos e tardio-modernos.

1. Impedimentos e parresia

A tradição eclesial viveu o sexo feminino como um “impedimento às ordenações”. Devemos também reconhecer que esse foi um ponto em comum com a cultura do ambiente durante muitos séculos. A situação não precisava ser justificada: era o legado da cultura compartilhada. A tradição eclesial deixou-se moldar pela cultura antropológica e social, que discriminava a mulher no plano da autoridade pública. Fomos cegos e surdos, como todos os outros homens. Embora nos textos tivéssemos vislumbres de uma visão diferente, os deixamos às margens e os desativamos, sob a pressão do mundo. A mulher irrelevante no plano público foi uma forma de normalizar a Igreja. Com o mundo “tardio-moderno”, graças à cultura da dignidade, que hoje permite à Igreja falar até de “dignidade infinita” de cada ser humano, pudemos reler a tradição e descobrir que também as mulheres podem ser chamadas ao ministério.

Intuímos, sentimos tudo isso, mas não temos as categorias para expressá-lo plenamente. Assim se abriram dois caminhos. O primeiro, que foi aquele que caracterizou o magistério católico dos últimos 50 anos, consistia em manter a reserva masculina, mesmo à custa de inventar “novos impedimentos”: salientam-se aqui especialmente o impedimento “histórico”, o “autoritário” e o “por princípios”. Nenhum desses caminhos chega àquela evidência teológica com a qual se pretenderia renovar o impedimento, mesmo negando em palavras qualquer discriminação. Se a reserva masculina for deslocada sobre Jesus (que a teria afirmado com as suas ações), para o Papa (que não poderia deixar de reconhecê-la com as suas palavras) ou para o casal Pedro/Maria que seria normativa de uma oposição originária entre instituição e carisma) o jogo parece encerrado. Mas assim não se resolve uma questão, pelo contrário, se tenta silenciar a pergunta, até mesmo pelo medo. Mesmo assim, a pergunta não se cala. Essa estratégia das últimas décadas é moderna, demasiado moderna: teve a pretensão de responder a uma pergunta nova por meio de uma negação de autoridade, com a qual, no entanto, se deixava de pé toda a autoridade tradicional. Negava-se a autoridade para não reconhecer autoridade exceto para si mesmos, com um dispositivo de bloqueio substancialmente autorreferencial.

Diante desse “bloqueio”, um “desbloqueio” só pode ocorrer pelas duas palavras com que termina o livro dos Atos dos Apóstolos: “com toda a parresia e sem impedimento algum”. O último olhar sobre a pregação de Paulo em Roma é caracterizado por esses dois termos. Desde que Francisco é Papa, esses foram dois dos termos mais utilizados para incentivar um debate teológico e pastoral marcado precisamente por uma grande “franqueza”. Com toda a parresia necessária, a compreensão da relação entre mulheres e ministério não parece oferecer razões teológicas suficientes para justificar os clássicos impedimentos. Os impedimentos vinham de culturas misóginas. A descoberta da igual dignidade de autoridade entre mulheres e homens elimina os impedimentos e predispõe também o catolicismo a superar os preconceitos e dispor-se a reconhecer uma autoridade pública, oficial, eclesial e apostólica a todos os batizados, sem mais “reserva masculina”. Assim, no último capítulo do livro tentei apresentar em detalhe como mudaram os argumentos sobre a "reserva masculina" ao longo da história, como tomou forma a tentação de "deriva autoritária" das últimas décadas e como formular hoje a abertura obrigatória para uma “vocação universal” ao ministério ordenado, “com toda a liberdade e sem impedimento algum” (Atos 28,31)

2. Uma igreja “mestra de suspeita”?

Vamos ouvir uma das afirmações de 30 anos atrás, que segundo alguns, teria “resolvido” definitivamente a questão:

“Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos, declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja.”

João Paulo II, Ordenatio sacerdotalis 22 de maio de 1994

Esse texto é o ponto de máxima expressão de um “dispositivo de bloqueio” com o qual se quis afirmar “não ter a faculdade de conferir a ordenação” com o objetivo de manter toda a faculdade de negar a ordenação. O jogo retórico, que inverte o ónus da prova, é bastante evidente. Mas vamos tentar reconstruir a lógica.

No debate eclesial suscitado pelo caminho sinodal (mas já profundamente determinado pela contribuição do Concílio Vaticano II), aparece claramente um défice de reflexão sobre a relação entre “tradição eclesiástica” e “formas culturais”. A ideia de que o Evangelho seja guardado por uma “tradição” que preserva o “depositum fidei” das alterações culturais é submetida a uma releitura que utiliza, muitas vezes de forma inconsciente, algumas “estilísticas antimodernistas” com as quais se confunde uma “forma da tradição” com a “tradição de sempre”. Isso vale em vários âmbitos da experiência eclesial: nas formas litúrgicas como no exercício da autoridade, na forma de compreender as instituições relacionais, assim como no pensar a liberdade e a igualdade dos sujeitos na sociedade e na Igreja.

3. Forma moderna e tradição de sempre

A “tradição de sempre” é frequentemente identificada com a forma moderna que o catolicismo assumiu com o Concílio de Trento. A grande modernização tridentina, que remonta a meados do século XVI, implica uma série de escolhas culturais, linguísticas, pastorais e institucionais que puderam se apresentar como "originárias", mas que são apenas releituras oficiais e parciais da origem, num contexto de transformação. Se pensarmos na forma de conceber o episcopado (com a novidade da obrigação de residência), na formação dos futuros ministros (com a fundação dos Seminários), na competência eclesial sobre o casamento (que assume pela primeira vez toda a autoridade sobre o contrato e sobre o rito) e na leitura geral dos sacramentos “ex opere operato” (com a perda progressiva da especificidade “cooperativa” de cada sacramento separado), podemos considerar esse caminho como uma grande “releitura cultural” da tradição. Vive de “novidades” que são introduzidas sem hesitação no corpo eclesial e que não têm precedentes históricos, exceto em alguns casos muito antigos. Depois do Concílio de Trento mais uma transição, marcada pela crise entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a autocompreensão da tradição eclesial, diante da cultura do ambiente, entra em tensão com uma contraposição sem limites. Cresce assim a ideia de que a “tradição” possa ser “autossuficiente” e que só em si mesma possa encontrar os recursos para responder a todos os desafios que a história apresenta.

4. Antimodernismo e o Código

Aqui, a partir da década de 1940, abre-se um caminho progressista que conduz a dois “eventos” um tanto distintos, mas concordantes: os documentos contra o “modernismo” (1907), por um lado, e o Código de Direito Canônico (1917) instituem, num certo sentido, a “autorreferencialidade eclesial”, que é algo absolutamente novo. Só a partir de então o catolicismo se sente autorizado (e de certa forma obrigado) a olhar para a cultura com os óculos da suspeita sempre postos na ponta do nariz. A Igreja torna-se, simultaneamente com a cultura que julga e quase “malgré soi”, “mestra da suspeita”. Desconfia de qualquer cultura diferente da sua, reconstrói também a filosofia apenas na medida em que colima com uma leitura estática da história, censura todo pensamento que queira dialogar seriamente com a cultura. Essa abordagem chega até à década de 1950, encontra uma fase de repensamento profundo em torno do Concílio Vaticano II (entre Pio XII, João XXIII e Paulo VI), mas volta a propor a solução própria a partir da década de 1980 e por inércia marcas a história dos últimos 40 anos.

5. A cultura e a mulher

Essa forma de compreender a tradição, que parece iludir-se de poder “definir” os seus próprios dados apenas com os instrumentos de um “saber interno” (garantido por um recurso à Escritura e à Tradição enrijecidas no plano fundamentalista) parece funcionar perfeitamente para "bloquear" toda tradução da tradição. O grande ideal, que abriu o Concílio Vaticano II, e segundo o qual precisamente a “formulação do revestimento” permite haurir à “substância da antiga doutrina do depositum fidei”, parece censurado na sua raiz. Isso vale, de forma muito especial, para a questão da mulher. Aqui parece-me que emerge um paradoxo realmente impressionante. Costuma-se afirmar, há pelo menos 50 anos, que a Igreja tem uma cultura antropológica sobre o masculino e sobre o feminino, que aprendeu do seu Senhor e que, portanto, não pode ceder às modas do momento.

A resistência ao mundo é interpretada como “resistência à cultura da igualdade”. A questão é reconstruída desta forma simplista: a Escritura e a Tradição dão-nos uma definição do feminino, diferente do masculino e, portanto, devemos resistir à cultura (desviante) que pretende equiparar masculino e feminino. Na realidade, creio que deveríamos não simplesmente especificar, mas inverter o modelo. Sobre quem é a mulher e o que compete à sua vocação, a Escritura e a Tradição só podem ser compreendidas “dentro da cultura”.

Nem a Escritura nem a Tradição podem ser usadas para “definir a mulher”, justamente porque a mulher (como o homem) foi criada livre. É a própria Escritura que nos diz o que não podemos fazer: isto é, não podemos usar a Escritura como se fosse um Código normativo, completo e imediatamente operacional. Sem uma reconciliação profunda entre fé e cultura, dificilmente poderíamos enfrentar de forma não fundamentalista as questões que dizem respeito à identidade e à vocação da mulher. Caso contrário, projetaremos sobre a narrativa da criação ou num texto de Paulo todos os preconceitos da nossa cultura e da nossa sociedade, disfarçando como mandamento de Deus a nossa incompreensão.

6. Preconceito invertido

A Igreja católica compartilhou durante séculos uma interpretação redutiva e marginalizante da mulher. Não é culpa de o catolicismo ter partilhado a cultura comum durante séculos, mas torna-se hoje sua culpa persistir em confundir esse preconceito com o “depositum fidei”. Aqui reside o ponto mais delicado: pensar que a “reserva masculina” pertence não às possíveis contingências da história, mas à “constituição divina da Igreja” é um preconceito que bloqueia a tradição e a vida. A “moda” é a reserva masculina, enquanto a sua superação é a disponibilidade para a escuta da Palavra de Deus.

Aqui há um traço dramático, o verdadeiro “teodrama”, que pode superar a miragem sistemática de encontrar, sob as formas históricas, um “princípio da hierarquia entre os sexos” que não só autorizaria, mas imporia a “reserva masculina” à Igreja. O argumento que confunde a “diferença” entre homem e mulher com uma “diferente autoridade pública” é uma forma de sublimação intelectual de um apego ao passado, com o qual se confunde o Evangelho. Pode-se chegar a construir toda uma cristologia como uma folha de figueira, para encobrir o próprio obstinado preconceito. É preciso justificar o que sempre foi feito, a todo custo. Mas racionalizar a discriminação, até traduzindo-a no “bem do discriminado”, é um procedimento argumentativo típico da sociedade da honra.

Assim como Tomás de Aquino dizia que há pecadores que perdem a dignidade humana e que por isso podem ser mortos não só sem culpa, mas para o seu próprio bem, hoje ouvimos teólogos e intelectuais que confirmam a “reserva masculina”, dizendo que só assim a mulher fica garantida na sua “diferença”, na sua “superioridade” e no seu alheamento ao clericalismo. Acessar o ministério, para uma mulher, seria o seu mal: quem iria querer o mal das mulheres? Essas não me parecem formas da fé eclesial, mas formas da incultura com as quais a confundimos e pretendemos defendê-la.

7. A cultura da tradição

As elaborações contemporâneas da “reserva masculina” são formas vazias, máscaras nuas. Mostram as mil variações com que um preconceito pode se perpetuar, não tendo mais a coragem de se autodenominar "apertis verbis", mas transformando-se em figuras teóricas, práticas, em formas aparentes de bom senso ou de visão de longo alcance. Pode-se até invocar um Deus paciente, um Deus onipotente na sua paciência, desde que não se toque a reserva masculina reduzida apenas a sentimento de “apego”. Uma Igreja não emocionada, mas apenas emotivamente nostálgica, faz de tudo para manter os seus preconceitos. Mas aqui está em jogo o próprio modo de compreender a tradição. Que é “escuta da Palavra” no espaço aberto da história, e não autoconfirmação no espaço fechado das sacristias. Uma tradição que saiba honrar a sua própria história, que esteja consciente de ter recorrido ao longo dos séculos à melhor cultura à sua disposição, não responde aos pedidos de vocação eclesial das mulheres com preconceitos ou proibições. Mas se dispõe com parresia a deixar que os “sinais dos tempos” lhe ensinem algo decisivo. Só assim a tradição não só dialoga com a cultura comum, mas pode tornar-se ela própria uma contribuição original para tal afinidade cultural.

8. Estratégias para mudar discurso e bloquear a vida

O magistério eclesial, ao pronunciar-se negativamente sobre a ordenação sacerdotal da mulher, manteve prudentemente distâncias de toda “teoria universal” de exclusão da mulher do ministério ordenado. Não encontramos vestígios disso nem em Inter Insigniores nem em Ordinatio sacerdotalis. A questão é resolvida no plano da “autoridade dos dados históricos” e no plano da “falta de autoridade” da Igreja perante eles. A questão resolve-se, em última instância, com uma referência ao “mistério da fé”. Embora tal solução possa ser discutida em detalhes, é evidente que ela renuncia a uma “justificação de princípio” da reserva masculina.

Igualmente óbvio é que os teólogos, se forem de respeito e se não quiserem cair numa teologia simples (e sempre frágil) da autoridade, tentam “explicar” o conteúdo do depositum fidei. Entre as diferentes formas de “teologia da reserva masculina”, certamente a mais elegante e ambiciosa é aquela produzida pelo pensamento de H. U. Von Balthasar, que identifica na “reserva masculina” o traço de uma “estrutura originária” da experiência eclesial, que como tal não pode ser superada e vincula a Igreja para sempre. Mas de onde vem essa intuição?

9. A formalização sistemática

Deve-se notar que a grande formalização de que Von Balthasar foi capaz em todas as suas obras-primas (como em Herrlichkeit ou em Theodramatik) constitui o seu maior mérito e a sua contribuição mais poderosa para a renovação do pensamento teológico do século XX. No seu Só o amor é digno de fé toda a tradição cristã é interpretada como marcada por duas instâncias (ontológicas e antropológicas) que se estendem por 2 mil anos, até a manifestação de uma nova tarefa, na forma de uma primazia não do ser, nem do homem, mas do amor. Nessas extraordinárias e maravilhosas “genealogias” do pensamento, Von Balthasar conecta entre si pensamentos, obras e eventos de uma forma completamente surpreendente. Mas ao formalizá-lo, corre sempre grandes riscos: periculum latet in generalibus.

Assim, nessas cadeias de autores e de movimentos, de pensamentos e de fatos, podem-se ler juízos ponderados, mas também ideias arriscadas e até afirmações extravagantes. Apenas um exemplo: ele consegue fazer surgir do pensamento de Emmanuel Kant até o Movimento Litúrgico, que, simplificando, pode ser reduzido, “bem no fundo”, a mero autocomprazimento do homem no culto. Esse risco de simplificação é intrínseco ao poder de toda formalização. Uma distinção assumida como “princípio” torna-se ao mesmo tempo ocasião de inteligência agudíssima e simplificação desarmante.

10. Uma verdadeira profecia ecumênica, que se corrompe

A elaboração dos “dois princípios” (Petrino e Mariano) nasceu para Von Balthasar do desejo de fugir de uma simplificação: aquela que reduz a Igreja católica a um princípio institucional. Reconduzir a experiência cristã não a um, mas a dois princípios, o institucional-petrino e o carismático-mariano, permite ao mesmo tempo ler a própria identidade e a dos outros com um instrumento mais poderoso e mais flexível. Por isso não se deve negar que essa elaboração formal, que torna mais complexa a leitura da tradição católica, constitua uma profecia objetiva, mediante a qual o catolicismo muda a forma de olhar para si mesmo e para as outras tradições. E também estabelece as bases para que as outras tradições possam compreender a riqueza e a não singularidade da tradição católica.

11. A transposição dos dois princípios “eis allo genos

O que aconteceu depois? Como não raramente acontece com as formalizações, elas podem ser aplicadas fora do contexto original em que nasceram. Aliás, faz parte das operações e das ambições mais ardentes de um grande autor o fato de saber deslocar as categorias e os princípios de um âmbito a outro. Von Balthasar utilizou assim uma distinção elaborada para uma "profecia ecumênica", a fim de justificar uma estrutura institucional dentro da Igreja católica. Mas não só, identificou a figura identificadora dos dois príncipes (Pedro e Maria) como arquétipos não de duas formas de igreja, mas da diferente vocação dos dois sexos e dos dois gêneros. Assim, “princípio petrino” e “princípio mariano” foram transformados, não mais teologicamente, mas eu diria de forma metafísica e essencialista, em “princípio masculino” e “princípio feminino”. A ponto de teorizar uma “perene hierarquia dos sexos” como horizonte (até prejudicial) de exercício dos dois princípios. Aqui a formalização fugiu ao controle de seu autor e passou a condicioná-lo como um preconceito revestido de sabedoria.

12. Algumas contradições nesse deslocamento

Como aprendi sobretudo de dois autores contemporâneos (de Marinella Perroni, que escreveu várias coisas importantes sobre o tema, entre as quais aquela relatada em um post neste blog e por Luca Castiglioni, que dedica páginas muito precisas a Von Balthasar em seu Figlie e figli di Dio. Eguaglianza battesimale e differenza sessuale, Brescia, Queriniana, 2023), nesse deslocamento do ecumenismo para a teologia do ministério os dois princípios entram em crise, pelo menos por dois motivos:

a) A primazia do princípio mariano e carismático, que é um resultado surpreendente da investigação ecumênica, converte-se na primazia do princípio petrino, como afirmação da perene hierarquia entre os sexos, reconduzida ao plano natural e criatural. Uma distinção nascida para “colocar em movimento” é utilizada para “bloquear”.

b) O deslocamento dos dois princípios no plano “pessoal e sexual” introduz uma espécie de “esquecimento” também na prodigiosa memória balthasariana. Os “princípios” nunca têm um nome e sobrenome, mas, justamente por serem princípios, são transversais às biografias, mesmo dos santos. Não é difícil encontrar o princípio mariano à obra em Pedro e o princípio petrino eficaz em Maria. A tradição sabe bem como a competência petrina sobre o perdão dos pecados não é dada a Pedro apenas pelo “princípio petrino” do poder das chaves, mas também e sobretudo pelo “princípio mariano” do chorar diante da culpa da renegação do Senhor. O carisma das lágrimas faz milagres, também nos homens. Por outro lado, o cuidado maternal que Maria reserva ao filho não impede que Paulo a considere, na única citação que lhe dedica, como a referência a um "nascimento sob a lei" que é clareza e identidade institucional, não carisma. Um Pedro mariano e uma Maria petrina são um dado da escritura que o sistema formal dos princípios não sabe mais reconhecer e tende a apagar. A idealização tem um componente violento que lhe é intrínseco e do qual é preciso defender-se.

13. As distinções como despudoradas simplificações

O deslizamento da profecia ecumênica para a apologética católica dos dois princípios leva a uma consideração final: há um efeito paradoxal de toda distinção teológica. Por um lado, aumenta a profundidade da compreensão, mas, por outro, também aumenta o risco da simplificação. Uma dualidade fecunda, como a dialética entre instituição e carisma, se aplicada de forma rígida e diria quase imposta aos gêneros masculino e feminino, acaba por confirmar sistematicamente um preconceito cultural. Que os homens seriam especializados em instituições (mesmo sem carisma) e as mulheres em carismas (mas necessariamente sem poder institucional) é um resultado que pode ser até apresentado por teologia sublime e inatingível, mas que se revela como um preconceito polido e enfeitado, numa maneira não nem tão escondida. Von Balthasar conhecia os riscos da formalização. Pode acontecer, de fato, que um uso descontrolado de boas distinções conduza a formas de cegueira, tanto mais perigosas por serem garantidas e cobertas por palavras demasiado sublimes. Von Balthasar sabia bem o que seu amigo K. Barth dissera certa vez, no início de seu grande texto sobre Santo Anselmo: ”A via régia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelas na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo".

Para uma eclesiologia “a múltiplas vozes” é necessário superar um uso clerical e masculinizante do instrumento teológico, que é sempre capaz de construir novas distinções, ou novos princípios, não para compreender, mas para bloquear qualquer compreensão. Desse perigo pode nos manter distantes o reconhecimento sereno de que a ordenação da mulher é “sem impedimentos”, como pode reconhecer qualquer um que olhe para a tradição “com toda a parresia”.

Nota

[1] K. Barth, Anselmo d’Aosta. Fides quaerens intellectum. La prova dell’esistenza di Dio secondo Anselmo nel contesto del suo programma teologico, ed. M. Vergottini, Brescia, Morcelliana, 2001, 120.

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