02 Março 2023
O fato de a mulher ser inadequada ao exercício da autoridade e de o sexo do homem Jesus ser normativo para quem o representa parecem argumentações frágeis demais, quase inapresentáveis: deve-se reconhecer que a mulher hoje exerce de fato a autoridade e que em Cristo não há mais nem homem nem mulher.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicado por Come Se Non, 26-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A “reserva masculina” não é uma invenção da Igreja. Uma longa cultura civil separou claramente o espaço público do sexo feminino. Recordemos que, até cerca de 100 anos atrás, era impossível a uma mulher votar por ocasião das eleições, tornar-se magistrada, tocar como instrumentista na Filarmônica de Berlim, tornar-se policial ou “colocar a aliança” no dedo do marido durante o casamento.
Quando falamos de “reserva masculina”, recorremos a um imaginário cultural de séculos de história, que se enraíza na conhecida definição aristotélica da natureza feminina como “falta de algumas qualidades”, retomada pela visão da mulher que “ex natura habet subjectionem” segundo São Tomás de Aquino.
A “venerável tradição” que reservava os ministérios eclesiais aos “viri” também permaneceu como um “não dito” durante muitos séculos da tradição cristã e católica, para se explicitar plenamente apenas no Código de Direito Canônico de 1917, mediante a indicação do “vir” como condição subjetiva da ordenação.
No mundo de 1917, a “ordenação sacerdotal” era conquistada como “sétimo grau” de um cursus que, depois da premissa da tonsura, percorria sete níveis até o sacerdócio. Já em Pedro Lombardo, na Paris de meados do século XII, esta era a representação: após a tonsura inaugural, tornava-se ostiário, leitor, exorcista, acólito, subdiácono, diácono e, por fim, presbítero.
A partir dessa visão, que permaneceria central e dominante até o Concílio Vaticano II, o bispo era excluído, porque o episcopado não fazia parte do sacramento da ordem, mas era “nome de uma dignidade e de um ofício”. Ser ordenado significou, durante cerca de 800 anos, receber essas sete ordenações progressivas, até a plenitude do presbiterato/sacerdócio. Quando o Código de 1917 diz que apenas “viri” podem ser ordenados, ele pensa precisamente nessa visão. A “reserva masculina” abrange, inevitavelmente, todos os sete graus da ordem.
Para compreender os desenvolvimentos mais recentes, é preciso considerar uma dupla reestruturação interna desse “cursus honorum et sacramentorum”:
a) Por um lado, o Concílio Vaticano II reestrutura toda a matéria, porque reduz o “ministério ordenado” a apenas três graus (não mais sete), mas insere o episcopado como “plenitude do sacramento”. Por isso, os três graus hoje são “diaconato, presbiterato e episcopado”. Saem os cinco graus anteriores ao diaconato e entra o grau máximo do episcopado.
b) A saída do ministério ordenado dos cinco graus menores dá origem, em 1972, aos “ministérios instituídos”, como categoria aberta, concebida com base no batismo, identificada em dois graus residuais, o leitorado e o acolitado, mas não exclui outros novos. Em relação a esses ministérios, aos quais se acrescenta o do catequista recém instituído, o motu proprio Spiritus Domini de 2021 derrubou a “reserva masculina”.
É interessante que esse novo sistema sofra duas leituras diferentes ao mesmo tempo.
Por um lado, continua-se a pensar o sistema unitário de um “cursus” contínuo, que começa com o leitorado e se conclui com o presbiterado (ou, eventualmente, com o episcopado). São quatro ou cinco graus que são pensados, mais ou menos explicitamente, como ainda marcados pela “reserva masculina”.
Por outro lado, há uma leitura “atualizada” que pensa os ministérios instituídos como “ministérios laicais” e o ministério ordenado como outro âmbito, estruturalmente separado do primeiro. Essa segunda visão pode superar a “reserva masculina” e abrir os ministérios estabelecidos também para as mulheres.
No entanto, esse novo sistema custa a coordenar as duas visões, porque, para fazer isso, é forçado a tornar estático aquilo que é necessariamente dinâmico. Poderíamos dizer que o “sinal” dessa dificuldade surgiu ainda com a instituição do “diaconato”, como grau do ministério ordenado ao qual também podem ter acesso os batizados casados. Ele foi chamado de “diaconato permanente” para evitar a hipótese de que presbíteros ou bispos batizados casados possam ser ordenados.
O mesmo está acontecendo hoje em relação aos ministérios instituídos. No momento em que as mulheres se tornam formalmente “leitoras” ou “acólitas”, deve-se falar, também para elas, de “leitorado e/ou acolitado permanente”, para as retirar da lógica dinâmica da progressão dos ministérios.
Aqui, porém, o sistema conhece uma “falha”. Porque, se por um lado a carta Ordinatio sacerdotalis estabeleceu como princípio indiscutível a inadmissibilidade da mulher à ordenação sacerdotal (ou seja, ao presbiterato e ao episcopado), visto que o ministério ordenado é composto também pelo diaconato, nada impede que a lógica dos ministérios instituídos possa ser estendida ao primeiro grau do ministério ordenado, ou seja, ao diaconato, com uma aplicação a ele da argumentação que permitiu a superação da “reserva masculina” de leitorado e acolitado.
Gostaria de me deter brevemente nessa argumentação, que está no centro da carta do Papa Francisco ao cardeal Ladaria, que acompanhou o motu proprio Spiritus Domini.
Essa condição de “mudança de paradigma” é ilustrada de modo interessante por uma longa passagem da carta que acompanha o motu proprio. Eis a passagem central:
“Durante séculos, a ‘venerável tradição da Igreja’ considerou aquelas que eram chamadas ‘ordens menores’ – incluindo justamente o leitorado e o acolitado – como etapas de um caminho que devia levar às ‘ordens maiores’ (subdiaconato, diaconato, presbiterado). Como o sacramento da ordem era reservado apenas aos homens, isso também era válido para as ordens menores.
Uma distinção mais clara entre as atribuições daqueles que hoje são chamados de ‘ministérios não ordenados (ou laicais)’ e ‘ministérios ordenados’ permite dissolver a reserva dos primeiros apenas aos homens. Se em relação aos ministérios ordenados a Igreja ‘não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres’ (cf. São João Paulo II, carta apostólica Ordinatio sacerdotalis, 22 de maio de 1994; EV 14/1348), para os ministérios não ordenados é possível, e hoje parece oportuno, superar tal reserva. Essa reserva teve seu sentido em um determinado contexto, mas pode ser repensada em contextos novos, mas tendo sempre como critério a fidelidade ao mandato de Cristo e a vontade de viver e de anunciar o Evangelho transmitido pelos apóstolos e confiado à Igreja para que seja religiosamente escutado, santamente guardado, fielmente anunciado.
Não sem razão, São Paulo VI refere-se a uma tradição venerabilis, não a uma tradição veneranda, em sentido estrito (ou seja, que ‘deve’ ser observada): ela pode ser reconhecida como válida, e por muito tempo foi; porém, não tem um caráter vinculante, pois a reserva somente aos homens não pertence à natureza própria dos ministérios do leitor e do acólito. Oferecer aos leigos de ambos os sexos a possibilidade de ter acesso ao ministério do acolitado e do leitorado, em virtude de sua participação no sacerdócio batismal, incrementará o reconhecimento, também por meio de um ato litúrgico (instituição), da preciosa contribuição que há muito tempo muitíssimos leigos, também mulheres, oferecem à vida e à missão da Igreja.
Por tais motivos, considerei oportuno estabelecer que possam ser instituídos como leitores e acólitos não só homens, mas também mulheres, nos quais e nas quais, mediante o discernimento dos pastores e após uma adequada preparação, a Igreja reconhece ‘a firme vontade de servir fielmente a Deus e ao povo cristão’, como está escrito no motu proprio Ministeria quaedam, em virtude do sacramento do batismo e da confirmação.”
É interessante notar aqui três coisas. Em primeiro lugar, o paralelismo entre ministérios instituídos e ministérios ordenados não é perfeito. Existe uma “analogia imperfeita” entre a reserva masculina superável para os primeiros e não superável para os segundo. Com efeito, a resistência absoluta da reserva masculina segundo o princípio da autoridade (ou, melhor, segundo o princípio da falta de autoridade), conforme a passagem citada da Ordinatio sacerdotalis, não vale para todo o âmbito do ministério ordenado, mas apenas para a ordenação sacerdotal (ou seja, para o presbiterado e o episcopado).
Isso significa que o diaconato, embora pertencendo aos ministérios ordenados, não está oficialmente vinculado à reserva masculina. Também deve fazer refletir a afirmação segundo a qual “a reserva apenas aos homens” não pertence à natureza própria dos ministérios do leitor e do acólito. Na realidade, todo o sistema dos ministérios era reservado, por tradição, apenas aos homens.
Acerca do diaconato, não é possível ver em que medida se pode dizer que a reserva masculina pertence à “natureza” desse primeiro grau do ministério ordenado. Quanto ao grau do presbiterado e do episcopado, então, que seja coberto por uma reserva masculina resulta da prática histórica da Igreja, sobre a qual se pronuncia a Ordinatio sacerdotalis, mas não da natureza do sacramento. A história do sacramento e a natureza do sacramento nunca são idênticas.
Se em segundo lugar observamos o argumento "exegético" em torno da tradição "venerável" da reserva masculina, é evidente que o texto do Ministeria Quaedam de 1972 assume a reserva como continuação normal da tradição anterior. A releitura que distingue entre o termo “venerável” e o termo “veneranda” e que, portanto, identifica um espaço de discernimento eclesial para abandonar a reserva, poderia ser aplicada a todo o quadro da ministerialidade eclesial. Quando a participação no exercício da autoridade na igreja derruba a reserva masculina, e o faz com a consciência de uma grande mudança de paradigma, ela também deve considerar aquele nível do ministério ordenado que não é coberto por um pronunciamento obrigatório: ou seja, o primeiro grau do diaconato.
Em terceiro lugar, não se pode deixar de observar que a forma da argumentação, que supera a “reserva masculina”, não tem fundamento histórico, mas sistemático. Não se devem buscar “formas históricas” de leitorado ou acolitado femininos, mas sim reler sistematicamente o “ser mulher” como uma riqueza objetiva para o leitorado e o acolitado.
Essa forma argumentativa se baseia na nova evidência da “mulher no espaço público” como sinal dos tempos, do qual a Igreja Católica tomou conhecimento oficialmente desde 1963, com a encíclica Pacem in terris, do Papa João XXIII. Desde então, a problematização da reserva masculina nunca foi simplesmente a discussão de um “dado histórico”, mas a assunção de um novo “princípio sistemático”.
As objeções a essa possível extensão, se não se limitam a um argumento de autoridade, fundamentam-se em argumentações muito frágeis: o sexo masculino do candidato à ordenação seria um elemento “substancial” do sacramento e, por isso, não reformável pela Igreja.
Mas a argumentação em termos de “substância do sacramento” se fundamenta em argumentos de fato, certamente relevantes e baseados em uma práxis secular, mas parece frágil na argumentação dogmática e sistemática: tanto o argumento antropológico quanto o cristológico não conseguem sustentar a tradição, quando até não a tornam mais frágil.
O fato de a mulher ser inadequada ao exercício da autoridade e de o sexo do homem Jesus ser normativo para quem o representa parecem argumentações frágeis demais, quase inapresentáveis: deve-se reconhecer que a mulher hoje exerce de fato a autoridade e que em Cristo não há mais nem homem nem mulher.
Por outro lado, a tese formal que priva a Igreja de toda autoridade para admitir as mulheres ao ministério ordenado parece se inverter facilmente na tese que atribui à Igreja toda a autoridade para excluí-las. Talvez a solução esteja em olhar para a questão não apenas como problema do direito das mulheres a serem admitidas ao ministério, mas sobretudo como um problema do direito da Igreja a não se privar da autoridade feminina no nível do anúncio, do governo e da santificação.
E não é possível se abrir facilmente demais para o anúncio (até ao doutorado) e para governo (até ao secretariado de congregações) e fechar com autoridade para a santificação, sem fornecer razões convincentes, mas apenas com base em um problemático e taxativo “sempre se fez assim”.
Tudo isso nos leva a pensar que, no nível do primeiro grau do ministério ordenado, é possível estender a lógica da Spiritus Domini – e também o seu estilo argumentativo não histórico, mas sistemático – para se chegar à justificação do acesso da mulher ao ministério ordenado. As peripécias da reserva masculina estão destinadas a continuar e só podem ser resolvidas se os fenômenos institucionais e sacramentais forem estudados não apenas no nível do precedente histórico.
Para encerrar, uma curiosidade: o sacramento do matrimônio também superou muito recentemente uma “reserva masculina” própria, acerca do “rito das alianças”, que durante séculos foi reservado ao homem em relação à mulher e vetado à mulher em relação ao homem. Era preciso trocar o consentimento, mas não se deviam trocar os anéis.
O fato de se chegar à “troca das alianças” a partir do rito de 1969 é um dos modos pelos quais, sacramentalmente, foi superada uma reserva masculina fundada culturalmente, mas não fundada eclesialmente. O reconhecimento dessa “ausência de fundamento eclesial” de uma tradição ainda que antiga é uma mudança de paradigma que recupera a “sã tradição” e abandona as tradições doentes.
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O diaconato e a revisão da “reserva masculina” como sinal dos tempos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU