20 Março 2021
“Acredito que seria razoável pensar, para o futuro, em um compromisso honesto: reconhecer o acesso ao ministério ordenado a todos os "nascidos de mulher", porque também cada mulher é capaz de representar Cristo, pois também ela é 'nascida de mulher', assim como ele. E será possível continuar a invocar o princípio de autoridade, mas apenas para cobrir uma reserva masculina do presbitério e do episcopado, que aparece como matéria reservada por uma decisão tomada com a autoridade de quem não reconhece a autoridade para mudar uma práxis antiga. No entanto, deve-se reconhecer que a possibilidade dessa práxis nova foi inaugurada com a decisão histórica a respeito dos ministérios instituídos, que pela primeira vez superou a teoria da 'incapacidade de representação' atribuída à mulher, podendo, portanto, reconhecer que elas podem ser, até mesmo em público, 'sinal oficial de Cristo e da Igreja'”, escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, teólogo leigo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come se non, 13-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em um artigo publicado no "Herder Korrespondenz" - Doppelte Buchfuehrung, 3/2021, 46-48, que em português seria algo como "Jogo duplo" - dois teólogos alemães de renome - Matthias Reményi e Thomas Schaertl - discutem com bons argumentos as posições expressas por seu colega de Viena Jan-Heiner Tueck sobre aquela “representância/representação de Cristo”, que no ministério eclesial estaria estruturalmente vedada às mulheres. Como já observamos em um post do ano passado neste blog, uma contribuição decisiva para a discussão atual sobre o acesso das mulheres ao ministério ordenado passa pelo esclarecimento das únicas afirmações explícitas que o magistério pós-conciliar ofereceu sobre o tema da ordenação feminina. Ou seja, o que diz a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Inter Insigniores (1976) sobre a "similitudo naturalis" entre Cristo (homem) e o bispo/presbítero/diácono (homem), que constituiria a condição factual e natural capaz de garantir a adequada representação da relação esponsal de Cristo - et quidem do ministro - com a Igreja. O artigo procede de forma sistemática ao identificar com precisão o argumento central empregado pelo documento de 1976. E destaca sua fragilidade, da qual, aliás, a própria Declaração está ciente, como emerge do n. 5, onde texto propõe uma reflexão sobre “ministério e semelhança natural” com explícita cautela. Com efeito, diz a esse respeito:
Depois de termos recordado a norma seguida pela Igreja e os seus fundamentos, tem utilidade e é oportuno esclarecer esta regra mostrando a conveniência profunda que a reflexão teológica descobre entre a natureza própria do sacramento da Ordem, com a sua referência específica ao mistério de Cristo, e o fato de somente homens terem sido chamados a receber a Ordenação sacerdotal. E não se intenta aduzir aqui uma argumentação demonstrativa, mas tão somente esclarecer esta doutrina pela analogia da fé.
Essa "analogia da fé" merece um esclarecimento cuidadoso, pois utiliza os textos da tradição de forma não rigorosa. Já vimos, nas ricas intervenções do professor Riccardo Saccenti neste blog (me reporto aqui apenas à primeira de uma série de seis), como as citações de Tomás que encontramos na Inter insigniores são todas forçadas e gravemente fora de contexto. Tomás nunca fala de "naturalis similitudo" com referência à determinação sexual dos ministros e de Cristo. Em vez disso, o caminho seguido por Tomás é o oposto. Todo ser humano pode ser ministro de Cristo, exceto pelos motivos que constituem um impedimento à ordenação, ligados a uma "carência de autoridade" mais ou menos superável.
Muito interessante é o redimensionamento que os dois teólogos alemães oferecem da "relação esponsal" entre Cristo e a Igreja como critério de discernimento normativo para o ministério ordenado. Eles atestam, com boa argumentação, que o tema está completamente ausente em boa parte da tradição e, em especial, no pensamento de Santo Tomás de Aquino, de quem citam um trecho da Summa contra Gentiles bastante eficaz. Trata-se da ScG IV, 74, onde Tomás afirma:
"Minister autem comparatur ad dominum sicut instrumentum ad principale agens: sicut enim instrumentum movetur ab agente ad aliquid efficiendum, sic minister movetur imperio domini ad aliquid exequendum. Oportet autem instrumentum esse proportionatum agenti. Unde et ministros Christi oportet esse ei conformes. Christus autem, ut dominus, auctoritate et virtute propria nostram salutem operatus est, inquantum fuit Deus et homo: ut secundum id quod homo est, ad redemptionem nostram pateretur; secundum autem quod Deus, passio eius nobis fieret salutaris. Oportet igitur et ministros Christi homines esse, et aliquid divinitatis eius participare secundum aliquam spiritualem potestatem: nam et instrumentum aliquid participat de virtute principalis agentis".
A lógica do ministério, para Tomás, é uma lógica "instrumental": os ministros devem ser "conformes" o agente principal. Para isso, eles devem ser "homens". A conformidade com o Senhor Jesus é de fato a humanidade e a divindade. A primeira é mediada por ser “nascido de mulher”, a segunda por “receber o Espírito Santo”. Na lógica argumentativa de Tomás, a mulher não pode ser ordenada não porque ela não seja conforme com a humanidade do Senhor, mas porque “carece de autoridade” por ser caracterizada criaturalmente por subordinação, inferioridade e passividade. O limite da mulher não é cristológico, mas antropológico. É o "saber antropológico e sociológico" que guia Tomás nessa conclusão, não a cristologia ou a lógica sacramental. O erro hermenêutico da Inter insigniores reside em ter deslocado para o plano cristológico e sacramental o que Tomás fala sobre o plano antropológico e social. A estratégia desse deslocamento é clara: ao atribuir a analogia normativa ao sacramento e à cristologia, torna-se rígida e quase se dogmatiza um aspecto que, ao contrário, depende simplesmente de uma leitura antropológica e sociológica, que como tal também pode mudar.
É evidente que para Tomás a questão decisiva não está na conformidade e na representação biológica ou natural, mas na "inferioridade criatural da mulher", que não pode ser superada de forma alguma e que, portanto, cria um impedimento à ordenação "necessitate sacramenti". É diferente para o escravo e o incapaz, que podem recuperar a autoridade. De qualquer forma, referir a Santo Tomás a relevância de uma "semelhança natural" parece ser uma manobra arbitrária. De forma alguma o texto de Tomás pode dar aval a tal entendimento, que não faz parte de seus argumentos.
O artigo de HK consegue sinalizar que a pretensão de opor "lógica da representação sacramental" e "redução funcional da igualdade entre os sexos" aparece como algo forçado de forma arbitrária. É a própria lógica do "signo" enquanto tal que é assim submetida a uma forte redução: se a semelhança se mede numa qualidade biológica como o “ser homem”, isso significa não salvaguardar, mas ter perdido a função “icônica" do signo. Em nome de uma lógica sacramental, desmente-se justamente a lógica do sacramento. Os argumentos elaborados sobre o tema da "ordenação", ao tentarem fundar um "simbolismo ministerial exclusivamente masculino", entram numa área muito arriscada, na qual cristológico e antropológico não se situam em planos distintos e se confundem. Assim, se desloca no plano cristológico e se tenta tornar imutável o limite histórico da consciência antropológica. Ao enrijecer a "natureza masculina" e aquela "feminina" em uma forma aistórica e imutável, pretende-se bloquear toda evolução com uma "semelhança natural" que teria dignidade não só criatural, mas sacramental e cristológica. Assim, é possível confundir a encarnação com uma determinação normativa não apenas da humanidade de Jesus, mas de sua masculinidade.
Os dois teólogos alemães, com um trabalho de cuidadosa conceituação, nos lembram que a tarefa de uma boa teologia sistemática não consiste em tornar fortes os argumentos fracos, mas em discernir entre bons raciocínios e raciocínios frágeis. Por exemplo: deve-se admitir que Jesus era sem dúvida um homem judeu. Se essa determinação fosse normativa em sentido absoluto também para a identidade do ministro que o representa – justamente assim exigiria uma interpretação ingênua do "naturalis similitudo" - não haveria alternativa ao ordenar apenas "viri judaei". Se a circuncisão ou incircuncisão pode de alguma forma se tornar uma variável independente, também o fato de ser homem ou mulher não será mais um discriminante para o ministério. E assim poderemos ordenar, para o diaconato, todos os "nascidos de mulher". Mas não seria novidade: já aconteceu, há pouco mais de um mês, para os "ministérios instituídos", onde a reserva masculina foi eliminada. Portanto, não é certo que isso também não possa acontecer para o acesso ao ministério ordenado. As razões para a proibição agora parecem poder ser expressas apenas como "argumentos de autoridade". Pelos quais se deve manter todo o devido respeito: “ad descendum dupliciter ducimur: ratione et auctoritate” (Agostinho); mas a razão não pode deixar de interpelar tais temas, de modo que oferecem argumentos menos formais e "analogias de fé" mais convincentes.
Acredito que seria razoável pensar, para o futuro, em um compromisso honesto: reconhecer o acesso ao ministério ordenado a todos os "nascidos de mulher", porque também cada mulher é capaz de representar Cristo, pois também ela é "nascida de mulher”, assim como ele. E será possível continuar a invocar o princípio de autoridade, mas apenas para cobrir uma reserva masculina do presbitério e do episcopado, que aparece como matéria reservada por uma decisão tomada com a autoridade de quem não reconhece a autoridade para mudar uma práxis antiga. No entanto, deve-se reconhecer que a possibilidade dessa práxis nova foi inaugurada com a decisão histórica a respeito dos ministérios instituídos, que pela primeira vez superou a teoria da "incapacidade de representação" atribuída à mulher, podendo, portanto, reconhecer que elas podem ser, até mesmo em público, “sinal oficial de Cristo e da Igreja”. Sobre todo esse âmbito de questões delicadas e decisivas, o debate foi objetivamente reaberto justamente pela esperada assunção de autoridade deliberada pelo Motu Proprio Spiritus Domini.
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A “semelhança natural” com Cristo é dos “nascidos de mulher”. Um debate que se renova. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU