10 Mai 2024
Tirar a dignidade dos homens, reduzindo-os a brutos, é um artifício “racional” que vem de longe. Para resistir, a razão é um instrumento necessário, mas não suficiente.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo é publicado por Come Se Non, 04-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Também no texto de “Dignitas Infinita”, como já aconteceu em “Fiducia supplicans” e em “Gestis verbisque” – para citar os principais documentos publicados pelo Dicastério para a Doutrina da Fé sob a orientação do novo Prefeito Fernández – notam-se duas dimensões que entram em certa tensão: por um lado, o propósito da reelaboração aberta da tradição (sobre o tema da bênção dos casais em condições irregulares, a validade dos sacramentos e a doutrina sobre a dignidade do homem), um objetivo coloca-se na perspectiva da “Igreja em saída” e da “mudança de paradigma” afirmada pelo Papa Francisco já há uma década. No entanto, os instrumentos doutrinários e disciplinares com os quais essa instância é promovida não são adequadas ao intento e deprimem a própria intenção. Em outras oportunidades, já falei sobre os dois primeiros documentos. Aqui gostaria de mostrar os pontos pouco convincentes do documento Dignitas infinita. Apresento-os de forma sintética, segundo as diferentes perspectivas.
Já na Apresentação do texto ressalta-se a afirmação da “dignidade infinita” como “verdade universal”, que existe “para além de toda circunstância”, mas também “além de qualquer aparência exterior ou de toda característica da vida concreta das pessoas”. Já na apresentação é mostrada uma correlação entre dignidade humana, verdade universal, realidade “infinita” e irrelevância das circunstâncias. Todo o primeiro número da Declaração assume claramente essa perspectiva. Reproduzo-o na íntegra:
“1. Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre. Esse princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela de seus direitos. A Igreja, à luz da Revelação, reafirma de modo absoluto esta dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e redimida em Jesus Cristo. Desta verdade extrai as razões do seu empenho em favor daqueles que são mais fracos e menos dotados de poder, insistindo sempre “sobre o primado da pessoa humana e sobre a defesa da sua dignidade para além de toda circunstância.”
Nesse primeiro número do documento são feitas algumas observações fundamentais:
– o ser do homem e da mulher tem “dignidade infinita” e para falar do infinito especifica-se o seu “nível ontológico” e a “irrelevância das circunstâncias”
– esse “princípio” é “princípio de razão”
– a tradição eclesial, que depende das circunstâncias da história da salvação, confirma “de modo absoluto” essa verdade da razão.
Como é apresentada a “dignidade do homem”? Como uma dimensão “ontológica”, que merece respeito pela razão. Esse respeito deve ser “incondicional”. A elaboração desse “ente”, porém, parece totalmente mínima. A referência “para além das circunstâncias” traduz a instância do incondicional. A tradução objetiva, ontológica, dessa incondicionalidade, no entanto, resulta problemática, porque se abstrai das suas “condições”. Esse é o ponto de virada, que o pensamento moderno tardio elaborou com elegância e do qual não há vestígios no texto. No lugar desse confronto existe o que poderíamos chamar de “revisão das concepções” da dignidade. Encontramos 4 definições de dignidade (DI 7-8), que são apresentados de forma muito sintética e quase “acadêmica”, mas com pouco aprofundamento: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial falam da dignidade como “substância” que depois entra em relação com as normas, com a sociedade e com a consciência.
O tema, entendido objetivamente, cria dificuldades. A linguagem utilizada se mantém oscilante: “para além das circunstâncias” é linguagem jurídica, “absoluto” e “infinito” é linguagem metafísica. Falta o uso de “incondicional”, o que teria trazido uma dimensão moral muito mais para o centro. E falta a dimensão “constitutiva” do nível social e existencial, que pelo contrário resulta recuperada, mas apenas em negativo: como se a referência à relação social e à complexidade do sujeito caísse facilmente num relativismo que se quer evitar. Isso dá origem também à “desconfiança em relação aos direitos subjetivos”, que parecem ser lidos como uma “ameaça”, mas que historicamente criaram o espaço para a reflexão eclesial sobre o tema de uma “dignidade infinita”. Evidentemente, a Igreja fala principalmente da dignidade do outro, não de si mesma. Mas pode fazê-lo hoje graças à elaboração refinada dos direitos do sujeito pessoal.
Um segundo aspecto que merece atenção, e que o documento não enfoca, é a correlação entre “verdade da razão” e “verdade da fé”. É claro que a intenção do texto, que deve ser levada a sério e que o qualifica de forma positiva, é “mostrar” que cada homem e cada mulher, “independentemente das circunstâncias”, são dotados de “dignidade infinita”. Esse é um dos conteúdos fundamentais da mensagem cristã, que podemos reconhecer como originário em toda a tradição judaico-cristã.
Mas em que sentido esse “conteúdo” pode ser considerado e anunciado “sola ratione”? Se “dar razão à esperança” é um dos atos fundamentais que empenha a Igreja ao longo dos séculos, de que maneira é possível reconhecer a “dignidade infinita” como um “conteúdo de sempre”, que pode ser acessível mesmo “sem qualquer revelação”? Se apenas no final do Concílio Vaticano II um documento como Dignitatis humanae pôde assumir a “liberdade de consciência” como conteúdo revelado, como poderia a dignidade humana (de cada homem e de cada mulher) ser uma “evidência” que pode ser alcançada como um “princípio da razão”? O pecado, isto é, a injustiça contra a dignidade de si e do outro, poderia ser entendido apenas como uma “razão doentia”? O debate dos últimos 200 anos, que ofereceu mediações decisivas sobre esse ponto, parece completamente ausente e resolvido com citações de Boécio ou de um genérico “personalismo” não melhor definido e não relevante para o teor da argumentação.
Um documento eclesial, que parte da nobre intenção de garantir uma “dignidade infinita” à “dignidade do homem e da mulher”, parte claramente da confissão do amor infinito de Deus, que olha com graça e benevolência para cada criatura. Uma mística crente é o suporte do discurso eclesial. Mas essa “história”, que chamamos de “história da salvação”, certamente não é uma “circunstância irrelevante”. Contudo, as “circunstâncias do Credo” (criação, encarnação, morte e ressurreição, ascensão, dom do Espírito, retorno à Glória) não podem ser reduzidas a uma mera “pedagogia da razão”. Aqui talvez uma reflexão sobre a natureza incondicional da dignidade poderia ter se enriquecida por uma maior correlação entre fé e razão.
Diante da fé, a razão tem a vantagem de ser “comum” e “universal”. Mas são precisamente essas características da razão que a tornam fraca e complacente. Há sempre boas razões para não respeitar a dignidade. A incondicionalidade da dignidade do outro baseia-se num “dom recebido”: aqui reside uma raiz irredutível à razão. Aqui, como afirma Marion, é necessário um embasamento não ontológico. Para cada estrategista que justifica os bombardeios ou os atentados nas cidades, o olhar aterrorizado de uma criança que mora naquelas casas produz uma “alteração da razão” que é o único vestígio de humanidade ainda possível. Dignitas infinita pretende chegar ao resultado “para além das circunstâncias da fé”. Mas essa circunstância nunca pode ser suspensa. Se o incondicional se dá como circunstância, se Deus se mostra como homem histórico e um homem vive após a morte, tudo muda, em primeiro lugar nas relações entre razão e fé.
A afirmação que acabamos de apresentar implica um segundo passo, bastante doloroso, mas necessário, e que Dignitas infinita não realiza. Em Amoris laetitia, a apresentação da “alegria do amor” exigiu um difícil passo “autocrítico”. Se não nos libertarmos das reconstruções domesticadas da tradição cultural e eclesial, não compreenderemos a dimensão do desafio de um “novo paradigma”. Em Dignitas infinita prevalece uma reconstrução apologética da história eclesial. Vou dar apenas um exemplo. No no. 3 da DI afirma-se:
“Desde o início da sua missão, impelida pelo Evangelho, a Igreja se esforçou para afirmar a liberdade e para promover os direitos de todos os seres humanos.”
Curiosamente, a nota 3, que especifica precisamente essa afirmação, cita, porém (com o comentário “pondo atenção somente à época moderna...) exclusivamente documentos de 1891 em diante. Por que não se coloca “desde sempre”, mas o primeiro papa citado é Leão XIII? Porque a elaboração eclesial foi lenta e procedeu na esteira das evidências culturais a partir do século XIX.
Uma prova dessa “lentidão” encontra-se em todos os grandes pensadores pré-modernos, que não têm culpa pelo fato de terem vivido no seu tempo. Um exemplo notável é encontrado em São Tomás de Aquino. A dignidade humana, como dignidade infinita, não é um conceito conhecido por São Tomás de Aquino. Na grande questão II II q 64 da Suma Teológica, dedicada ao homicídio, o artigo 2º justifica o assassinato do pecador no plano da dignidade. Nos argumentos a favor cita o Salmo “Pela manhã destruirei todos os ímpios da terra” (Salmo 101, 8) e no corpus se afirma:
“Quem peca, afasta-se da ordem, racional. E, portanto, decai da dignidade humana, pois que o homem é naturalmente livre e tem uma finalidade própria... E portanto, embora seja em si mesmo mau matar um homem, enquanto ele se conserva na sua dignidade, contudo pode ser bem matar um pecador” (S. Th. II II, 64, 2, ad 3):
De fato, um homem mau é pior e mais prejudicial do que um bruto, conclui Tomás, citando Aristóteles.
Tirar a dignidade dos homens, reduzindo-os a brutos, é um artifício “racional” que vem de longe. Para resistir, a razão é um instrumento necessário, mas não suficiente.
Trabalhar por uma “evidência da fraternidade” continua a ser uma tarefa eclesial. Mas o caminho para instruir a causa não pode advir de uma mera justaposição entre fé e razão e, por outro lado, de um uso da razão que, de forma pré-moderna, deixa como “espaços autônomos” a ontologia, a ética, a sociologia e a consciência existencial dos indivíduos. Essa abordagem já nasce datada. Por isso não poderá dar uma grande contribuição na preciosa direção em que é justo trabalhar com empenho e com confrontos muito mais amplos.
Uma nota curiosa para concluir. O texto declara que o percurso de “composição” começa em 2019. Observo que no mesmo ano o “Prêmio Ratzinger” foi concedido ao filósofo Charles Taylor. Um dos méritos desse pensador católico consiste em ter refletido com nova radicalidade justamente sobre o conceito de “dignidade”. No entanto, no texto da Declaração parece não haver qualquer vestígio daquela “sociedade da dignidade” que Taylor configura como o ambiente em que a tradição deve assumir o seu significado, para além da “sociedade da honra”.
O texto da Declaração, ao contrário, parece ainda orientado para um “significado ontológico” de dignidade, que está aquém do significado moral, social e existencial. Raciocina como se ainda estivéssemos na “sociedade da honra”, embora admitindo que em grande parte do mundo não é mais assim. Ouvir também Charles Taylor poderia ter dado muito mais força ao documento. Talvez na nova concepção do Dicastério, aquela que Francisco escreveu ao novo prefeito em 2023, uma consulta ao prof. Taylor teria sido possível e talvez necessária.
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Dignidade “infinita”, “de acordo com a razão” e “além das circunstâncias”. O Evangelho e o incondicional que é comum. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU