28 Outubro 2023
Neste texto, o teólogo italiano Andrea Grillo reflete sobre a profecia e o abuso da distinção entre princípio petrino e princípio mariano.
O artigo foi publicado em seu blog, Come Se Non, 26-10-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A via regia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelamente na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo” (K. Barth)
O magistério eclesial, ao se pronunciar negativamente sobre a ordenação sacerdotal da mulher, manteve prudentemente a distância de toda “teoria universal” da exclusão da mulher do ministério ordenado. Não encontramos nenhum vestígio disso nem na Inter Insigniores, nem na Ordinatio sacerdotalis.
A questão é resolvida no nível da “autoridade dos dados históricos” e no nível da “falta de autoridade” da Igreja diante deles. A questão se resolve, no fundo, com uma referência ao “mistério da fé”. Embora tal solução possa ser discutida no detalhe, é evidente que ela renuncia a uma “justificação de princípio” da reserva masculina.
Igualmente óbvio é que os teólogos, se forem de qualidade e não quiserem cair em uma simples (e sempre frágil) teologia da autoridade, tentem “explicar” o conteúdo do depositum fidei. Entre as diversas formas de “teologia da reserva masculina”, a mais elegante e ambiciosa certamente é aquela produzida pelo pensamento de H. U. von Balthasar, que identifica na “reserva masculina” o traço de uma “estrutura original” da experiência eclesial, que, como tal, não pode ser superada e vincula a Igreja para sempre. Mas de onde vem essa intuição?
Deve-se notar que a grande formalização de que Von Balthasar foi capaz em todas as suas obras-primas (como em “Herrlichkeit” ou em “Theodramatik”) constitui seu mérito mais alto e sua contribuição mais poderosa para a renovação do pensamento teológico do século XX. No seu “Só o amor é digno de fé”, toda a tradição cristã é interpretada como marcada por duas reivindicações (ontológicas e antropológicas) que atravessam 2.000 anos, até à manifestação de uma nova tarefa, sob a forma de um primado não do ser, nem do ser humano, mas do amor.
Nessas extraordinárias e maravilhosas “genealogias” do pensamento, Von Balthasar conecta entre si pensamentos, obras, eventos de uma forma totalmente surpreendente. Mas, justamente formalizando, ele sempre corre grandes riscos: periculum latet in generalibus.
Assim, nessas correntes de autores e de movimentos, de pensamentos e de fatos, podem ser lidos julgamentos ponderados, mas também ideias arriscadas e até afirmações extravagantes.
Apenas um exemplo: ele consegue fazer emergir do pensamento de Immanuel Kant até mesmo o Movimento Litúrgico, que, em uma nota, pode ser reduzido, “por baixo”, a mera autossatisfação do ser humano no culto.
Esse risco de simplificação é intrínseco ao poder de toda formalização. Uma distinção assumida como “princípio” torna-se tanto oportunidade para uma inteligência muito aguçada quanto para uma simplificação desarmante.
A elaboração dos “dois princípios” (petrino e mariano) nasceu para Von Balthasar do desejo de sair de uma simplificação: aquela que reduz a Igreja Católica a um princípio institucional. Remeter a experiência cristã não a um, mas sim a dois princípios, o institucional-petrino e o carismático-mariano, permite, ao mesmo tempo, ler a própria identidade e a alheia com um instrumento mais poderoso e mais flexível.
Por isso, não se deve negar que essa elaboração formal, que torna mais complexa a leitura da tradição católica, constitui uma profecia objetiva, mediante a qual o catolicismo muda a forma de olhar para si e para as outras tradições. E também lança as premissas para que as outras tradições possam compreender a riqueza e a não univocidade da tradição católica.
O que aconteceu depois? Como frequentemente acontece com as formalizações, elas podem ser aplicadas fora do contexto original em que nasceram. De fato, faz parte das operações e das ambições mais ardentes de um grande autor o fato de saber deslocar as categorias e os princípios de um âmbito para outro.
Assim, Von Balthasar utilizou uma distinção elaborada para uma “profecia ecumênica” a fim de justificar uma estrutura institucional interna à Igreja Católica. Mas não só isso, identificou a figura identificadora dos dois príncipes (Pedro e Maria) como arquétipos não de duas formas de Igreja, mas da vocação diferente dos dois sexos e dos dois gêneros.
Assim, “princípio petrino” e “princípio mariano” foram transformados, não mais teologicamente, mas eu diria metafísica e essencialistamente em “princípio masculino” e “princípio feminino”. A ponto de teorizar uma “perene hierarquia dos sexos” como horizonte (até mesmo preconceituoso) de exercício dos dois princípios. Aqui a formalização escapou do controle de seu autor e começou a condicioná-lo como um preconceito revestido de sabedoria.
Como aprendi sobretudo com dois autores contemporâneos (com Marinella Perroni, que escreveu várias coisas importantes sobre o tema, inclusive aquela relatada em um post neste blog [e traduzido pelo IHU], e com Luca Castiglioni, que dedica páginas muito acuradas a Von Balthasar no seu “Figlie e figli di Dio. Eguaglianza battesimale e differenza sessuale” [Filhas e filhos de Deus. Igualdade batismal e diferença sexual] (Bréscia: Queriniana, 2023), nesse deslocamento do ecumenismo para a teologia do ministério, os dois princípios entram em crise, pelo menos por dois motivos:
a) O primado do princípio mariano e carismático, que é um resultado surpreendente da investigação ecumênica, converte-se no primado do princípio petrino, como afirmação da perene hierarquia entre os sexos, remetida ao nível natural e criatural. Uma distinção nascida para “pôr em movimento” é utilizada para “bloquear”.
b) O deslocamento dos dois princípios para o nível “pessoal e sexual” introduz uma espécie de “esquecimento” também na prodigiosa memória balthasariana. Os “princípios” nunca têm nome e sobrenome, mas, precisamente como princípios, são transversais em relação às biografias, até mesmo dos santos. Não é difícil encontrar o princípio mariano em ação em Pedro e o princípio petrino eficaz em Maria. A tradição conhece bem como a competência petrina sobre o perdão dos pecados não deriva para Pedro apenas do “princípio petrino” do poder das chaves, mas também e sobretudo do “princípio mariano” do pranto diante da culpa de renegar o Senhor. O carisma das lágrimas faz milagres, também nos homens. Por outro lado, o cuidado materno que Maria reserva ao filho não impede que Paulo a considere, na única citação que lhe dedica, como a referência de um “nascer sob a lei” que é clareza e identidade institucional, não carisma. Um Pedro mariano e uma Maria petrina são um dado da Escritura que o sistema formal dos princípios não sabe mais reconhecer e tende a apagar. A idealização tem um componente violento que lhe é intrínseco e do qual é preciso defender-se.
O deslizamento da profecia ecumênica para a apologética católica dos dois princípios leva a uma consideração final: há um efeito paradoxal de toda distinção teológica.
Por um lado, ela aumenta a profundidade da compreensão, mas, por outro, aumenta também o risco da simplificação. Uma dualidade fecunda, como a dialética entre instituição e carisma, quando aplicada de forma rígida e eu diria quase imposta ao gênero masculino e feminino, acaba valorizando sistematicamente um preconceito cultural.
O fato de os homens serem especializados em instituições (mesmo sem carisma) e as mulheres em carismas (mas necessariamente sem poder institucional) é um resultado que pode ser vendido como uma teologia sublime e inatingível, mas que se revela como um preconceito polido e ornamentado, de um modo sequer escondido demais.
Von Balthasar conhecia os riscos da formalização. Pode acontecer, de fato, que um uso descontrolado de boas distinções leve a formas de cegueira, ainda mais perigosas pelo fato de serem garantidas e encobertas por palavras sublimes demais.
Von Balthasar sabia muito bem aquilo que seu amigo K. Barth dissera uma vez, no início de seu grande texto sobre Santo Anselmo: “A via regia da simplicidade divina e a via da mais inaudita ilusão correm paralelamente na história da teologia, em todos os tempos e em todos os desenvolvimentos, separadas apenas pela espessura de um fio de cabelo”.
1. K. Barth, Anselmo d’Aosta. Fides quaerens intellectum. La prova dell’esistenza di Dio secondo Anselmo nel contesto del suo programma teologico. Bréscia: Morcelliana, 2001, p. 120.
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Von Balthasar e a hierarquia dos sexos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU