01 Dezembro 2023
“A econormalização permite a Israel reconfigurar a sua posição nos setores da água e da energia a nível regional e global, fortalecendo assim o seu poder político e diplomático na região e no mundo. O agravamento das crises climáticas e energéticas fez com que os países que dependiam da energia e da água (bem como da tecnologia) de Israel começassem talvez a ver a situação dos palestinos como menos importante do que a sua segurança hídrica e energética. A econormalização reforça o papel do greenwashing israelense como máquina de fazer dinheiro para as empresas israelenses, ao mesmo tempo que mina a democracia energética e a soberania alimentar da Palestina, inextricavelmente ligadas à luta palestina pela autodeterminação”. A reflexão é de Manal Shqair, Hamza Hamouchene e Hafawa Rebhi, em artigo publicado por El Salto, 29-11-2023. A tradução é do Cepat.
Manal Shqair é ativista do clima e pesquisadora palestina. Atualmente está fazendo o doutorado em sociologia na Universidade Queen Margaret, na Escócia.
Hamza Hamouchene é pesquisador e ativista argelino radicado em Londres. Coordena o Programa Norte da África no Instituto Transnacional (TNI). É coeditor do livro Dismantling Green Colonialism: Energy and Climate Justice in the Arab Region (O desmantelamento do colonialismo verde: energia e justiça climática na região árabe).
Hafawa Rebhi é jornalista independente tunisina especializada em questões ambientais.
“Não fornecerei eletricidade ou água aos meus inimigos”, disse o ex-primeiro-ministro israelense de extrema direita, Naftali Bennett, em resposta à pergunta do apresentador da SkyNews, Kamali Melbourne, sobre o que aconteceria aos bebês que se encontram nas incubadoras e aos pacientes mantidos vivos artificialmente se Israel cortasse permanentemente o fornecimento de eletricidade e combustível a Gaza.
Bennett, um fervoroso sionista que apoia a anexação da Cisjordânia a Israel, em flagrante violação do direito internacional, perdeu a paciência quando o jornalista insistiu nos danos sofridos pelo lado palestino. Bennett perguntou se Londres havia pensado nos civis ao bombardear a cidade alemã de Dresden em resposta aos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Na entrevista, o ex-ministro demonstrou mais uma vez o seu ódio visceral aos palestinos, a quem comparou aos nazistas, demonstrando que a água e a energia são armas tão letais quanto as bombas. Têm sido instrumentos estratégicos na opressão e expropriação dos palestinos desde a Nakba e a fundação do Estado de Israel em 1948.
Israel apresentou uma imagem da Palestina antes de 1948 como um lugar vazio e desértico, que se tornou um oásis próspero após a criação do Estado de Israel. Israel encobre os seus crimes de guerra contra o povo palestino, passando a imagem de um país verde e avançado, que está numa posição superior diante de um Oriente Médio temível e árido. Os seus conhecimentos sobre o agronegócio, a silvicultura, as soluções hídricas e a tecnologia em matéria de energia renovável são usados como uma plataforma chave para os seus esforços de lavagem verde (greenwashing) em nível mundial.
Desde a assinatura dos Acordos de Abraão com os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão em 2020, a afirmação de superioridade de Israel sobre o Oriente Médio (e o Norte da África) foi reforçada. Os Acordos de Abraão são acordos de normalização mediados pelos Estados Unidos, que também tentam fortalecer as relações de normalização existentes com outros países árabes que não fazem oficialmente parte do acordo, incluindo aqueles que ainda não formalizaram as suas relações de longa data com Israel, como a Arábia Saudita e Omã, e os países que o fizeram, como o Egito e a Jordânia. A coligação de Estados árabes criada no âmbito dos Acordos de Abraão comprometeu-se a aumentar a sua colaboração com Israel em questões de segurança, economia, saúde, cultura e ambiente, entre outras. Nos últimos três anos, em virtude deste acordo, Israel e estes Estados árabes pró-normalização assinaram uma série de memorandos de entendimento para realizar projetos conjuntos de energia renovável, agronegócio e água.
Os projetos colaborativos, supostamente amigos do ambiente, entre Israel e os Estados árabes são uma forma de econormalização, ou seja, usam o “ambientalismo” para fazer greenwashing e normalizar a opressão israelense e as injustiças ambientais que ocorrem como consequência na região árabe e em outros lugares. Na verdade, a normalização das relações entre Marrocos e Israel em dezembro de 2020 ocorreu através de um acordo entre duas potências ocupantes, facilitado pelo seu patrono imperial (os Estados Unidos sob a administração Trump), por meio do qual Israel e os Estados Unidos também reconheceram a soberania do Marrocos sobre o território disputado do Saara Ocidental. Desde então, houve um aumento de investimentos e acordos anunciados por Israel no Marrocos em diversas áreas, particularmente no agronegócio e nas energias renováveis.
No dia 8 de novembro de 2022, durante as negociações climáticas das Nações Unidas em Sharm El Sheikh (COP27), a Jordânia e Israel assinaram um memorando de entendimento, mediado pelos Emirados Árabes Unidos, para continuar um estudo de viabilidade de dois projetos interrelacionados: o Prosperity Blue (Prosperidade Azul) e o Prosperity Green (Prosperidade Verde), que juntos constituem o Projeto Prosperidade. Nos termos do acordo, a Jordânia comprará 200 milhões de metros cúbicos de água por ano de uma central de dessalinização israelense, que será instalada na costa do Mediterrâneo (Prosperity Blue). A central de dessalinização de água utilizará eletricidade produzida por uma central solar fotovoltaica de 600 MW, que a Masdar, uma empresa estatal de energia renovável dos Emirados, construirá na Jordânia (Prosperity Green). As partes do acordo pretendem apresentar planos mais concretos sobre a implementação dos projetos nas próximas negociações sobre mudanças climáticas (COP28), que serão realizadas nos Emirados Árabes Unidos em novembro.
A retórica benevolente por trás do Prosperity Blue obscurece o papel de Israel na pilhagem de água palestina e árabe, que dura há décadas, e ajuda a negar a sua responsabilidade pela escassez de água na Jordânia, ao mesmo tempo que afirma oferecer uma solução e retratar-se como um guardião do ambiente e do poder hídrico regional.
A Mekorot, um ator-chave na dessalinização da água em Israel, posicionou-se como líder em soluções de dessalinização e água a nível mundial, em parte através da narrativa da lavagem verde de Israel. O dinheiro gerado por estas operações financia o apartheid hídrico, e o apartheid do Governo israelense, contra o povo palestino. Além de usurpar o rio Jordão, Mekorot desempenha um papel crítico na construção da infraestrutura hídrica do apartheid em Israel, uma vez que controla a maior parte dos recursos hídricos palestinos na Cisjordânia e os desvia para assentamentos israelenses ilegais.
O mesmo acontece no território bloqueado da Faixa de Gaza, onde, durante décadas, Israel destruiu o setor agrícola. Desde 2007, o cerco a Gaza limitou o acesso dos agricultores palestinos às suas terras agrícolas e exacerbou a grave crise hídrica da região.
Poucos meses antes da COP27, em agosto de 2022, Jordânia, Marrocos, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Egito, Bahrein e Omã assinaram um memorando de entendimento com duas empresas da área de energia israelenses para implementar projetos de energias renováveis nestes países. Enlight Green Energy (ENLT) e NewMed Energy (doravante ENLT-NewMed), as duas empresas israelenses envolvidas neste enorme projeto energético, irão iniciar, financiar, construir, desenvolver e operar usinas de energia renovável em terras árabes. Estes projetos de energia “verde” incluirão a produção de energia eólica e solar e o armazenamento de energia.
Os dois projetos de energia renovável na agenda da econormalização, Prosperity Green e ENLT-NewMed, promovem a imagem de Israel como um centro para tecnologias criativas de energia renovável. Ao enaltecer Israel neste sentido, a narrativa dominante omite que as suas inovações no setor da energia se baseiam no colonialismo da energia verde na Palestina e no Jawlan (as Colinas de Golã).
O colonialismo energético refere-se a empresas e países estrangeiros que saqueiam e exploram os recursos e as terras de países e comunidades do Sul global, a fim de gerar energia para seu próprio uso e benefício. O colonialismo energético também prejudica as vidas e os ambientes socioeconômicos das populações locais do Sul. Assim como defendemos na nossa publicação Desmantelar o colonialismo verde: justiça climática e energética na região árabe, o “colonialismo verde” ou o “colonialismo da energia renovável” pode ser definido como a extensão das relações coloniais de pilhagem e desapropriação (bem como a desumanização do outro) para a era verde das energias renováveis, que implica a transferência dos custos socioambientais para países e comunidades periféricas, priorizando as necessidades energéticas de uma região do mundo em relação a outra. Preserva-se o status quo, mas com diferentes fontes de energia, passando dos combustíveis fósseis à energia verde, mantendo ao mesmo tempo padrões de produção e consumo intensivos em energia, e as estruturas políticas, econômicas e sociais que geram desigualdade, pobreza e desapropriação permanecem intactas.
Isto é evidente em projetos orientados para a exportação, como Desertec, Xlinks, TuNur e projetos de hidrogênio verde previstos no Norte da África, e se vê mais claramente nas centrais de energia solar e parques eólicos construídos no território do Saara Ocidental ocupado pelo Marrocos.
Ao mesmo tempo, na Palestina e em Jawlan, o colonialismo energético, inclusive através de fontes de energia verde, é outra faceta do colonialismo de assentamento de Israel. Este país utiliza-o como uma forma de desapropriar e segregar a população palestina e do Jawlan (os 26.000 sírios que vivem atualmente nas Colinas de Golã ocupadas por Israel) em enclaves muito pequenos, ao mesmo tempo que expande a supremacia judaico-israelense nos seus territórios. Tanto o Prosperity Green como o ENLT-NewMed podem ser considerados exemplos de colonialismo energético (verde) que permitem a Israel continuar o seu projeto de colonialismo de assentamentos e aumentar o seu poder geopolítico no Oriente Médio e no Norte da África, escondido sob a narrativa assassina do greenwashing. Israel nega a soberania da população colonizada da Palestina e das Colinas de Golã sobre os seus recursos energéticos e perpetua a sua dependência do mercado energético. Entretanto, a Faixa de Gaza, não muito longe dos campos de gás de Leviatã e Tamar, está às escuras há anos porque Israel negou aos habitantes de Gaza o pleno acesso à eletricidade.
A econormalização permite a Israel reconfigurar a sua posição nos setores da água e da energia a nível regional e global, fortalecendo assim o seu poder político e diplomático na região e no mundo. O agravamento das crises climática e energética fez com que os países que dependiam da energia e da água (bem como da tecnologia) de Israel começassem talvez a ver a situação dos palestinos como menos importante do que a sua segurança hídrica e energética. A econormalização reforça o papel do greenwashing israelense como máquina de fazer dinheiro para as empresas israelenses, ao mesmo tempo que mina a democracia energética e a soberania alimentar da Palestina, inextricavelmente ligadas à luta palestina pela autodeterminação.
Existe uma vinculação permanente entre o greenwashing israelense, que é reforçado através da econormalização, e a consolidação do apartheid e do colonialismo de assentamentos na Palestina e em Jawlan. Em consequência do aumento da violência israelense e da expansão dos assentamentos nos territórios palestinos ocupados, a luta anticolonial palestina encontra-se num momento crítico. O túnel escuro que é a vida dos palestinos sob a opressão israelense está se tornando cada vez mais escuro. No entanto, há um raio de luz que ilumina o longo caminho dos palestinos rumo à libertação: essa luz é a resistência crescente do povo palestino, que recusa ser isolado, desumanizado e destruído.
A luta para derrubar o regime opressivo israelense também faz parte de uma luta mais ampla pela autodeterminação e pela emancipação de outros povos do mundo. O poder coletivo dos povos árabes e de outros povos é capaz de impedir tentativas coloniais de isolar ainda mais a Palestina do resto do mundo (árabe) através da (eco)normalização. Para este efeito, os movimentos sociais, grupos ambientalistas, sindicatos, associações estudantis e organizações da sociedade civil na região árabe e em outros lugares devem intensificar os protestos contra os seus governos para acabar com a normalização dos laços com Israel. Finalmente, os movimentos populares internacionais deveriam aumentar o seu apoio ao boicote, ao desinvestimento e às sanções contra Israel.
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Econormalização árabe-israelense: apartheid da água e colonialismo verde na Palestina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU