Uma reportagem sobre uma rodovia deveria percorrer a própria extensão da estrada. Na BR-319, isso é impossível. Durante seis meses em um ano, vários trechos entre Manaus e Porto Velho ficam intrafegáveis. Pode-se culpar o inverno amazônico com suas chuvas torrenciais ou até a floresta, que há décadas engoliu o asfalto sem dó. Pode-se, sem surpresa, atribuir aos governantes o abandono da rodovia federal que só operou, de fato, por 12 anos. Inaugurada em 1976, a BR-319 não é reconstruída porque os povos que habitavam o País antes mesmo de ele ser chamado Brasil não aceitam mais deixarem de ser ouvidos. Eles resistem bravamente.
A reportagem é de Leanderson Lima e Alberto César Araújo, publicada por Amazônia Real, 03-06-2023.
Na Amazônia, estradas são sempre relacionadas a problemas ou soluções, a depender de quem esteja falando delas. O corte raso de árvores nativas para dar passagem a vias transitáveis tem trazido bem mais do que veículos para dentro da floresta. O ciclo é conhecido: primeiro o desmatamento desenfreado, acompanhado da grilagem de terras e de extensas áreas que viram pasto, o gado chega, parte e, em poucos anos, dá lugar à monocultura, na maioria das vezes, de soja. As precárias condições da BR-319 têm freado essa lógica destrutiva.
A Amazônia Real percorreu, literalmente aos trancos e barrancos, trechos da BR-319 para buscar respostas a uma só pergunta: como salvar a Amazônia? Dom Phillips, o jornalista britânico assassinado em 5 de junho com o indigenista brasileiro Bruno Pereira no rio Itacoaí, na divisa com a Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas, dedicou seus últimos anos de vida para responder a essa questão central para a Humanidade. Dom já sabia dos riscos do garimpo e da pesca ilegal, da exploração madeireira, das grandes obras de infraestrutura, das fraudes na compra de vastas áreas de mata e dos povos da floresta ameaçados. E alertava que estradas abrem caminho para a degradação ambiental.
Convidada a integrar o Projeto Bruno e Dom coordenado pela Forbidden Stories, consórcio internacional para dar continuidade ao trabalho de jornalistas assassinados ou sob ameaça, a agência transitou pela rodovia BR-319 em março deste ano. Estava acompanhada de uma equipe do jornal Expresso, de Portugal, um dos 16 veículos de comunicação de 10 países do consórcio. O que se lerá a seguir é o relato de uma viagem e de muitas escutas. Era importante ouvir aqueles que sonham com a sua pavimentação e também os contrários à conclusão das obras; o que têm a dizer os cientistas e ambientalistas sobre essa estrada que é usada como “muleta eleitoral” por políticos há 35 anos.
Esta é uma narrativa sobre a BR-319, uma estrada que se estende por 877 quilômetros e foi parcialmente tomada pela floresta no fim dos anos 1980. Se reconstruída, como planejado, o asfaltamento da rodovia pode irradiar o desmatamento a até 150 quilômetros de suas margens esquerda e direita, atingindo o coração ainda bem preservado da Amazônia, na região que fica entre os rios Purus e Madeira, entre os estados de Rondônia e Amazonas. É uma área maior que o estado do Rio Grande do Sul. E representa também o maior desafio para o futuro da maior floresta tropical do mundo. Na encruzilhada da história, havia uma BR-319 no meio do caminho, parafraseando o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Um dos destinos principais desta viagem era chegar à aldeia São Francisco, na TI Apurinã do Igarapé Tauá-Mirim, no município de Tapauá, na parte sul do Amazonas, a área do estado mais impactada por desmatamento, grilagem e queimadas. Autorizadas previamente pelo cacique-geral, Marino Adriano Batista, o Marino Apurinã, as equipes da Amazônia Real e do Expresso teriam a oportunidade de presenciar o “Kenêre”, uma grande festa de celebração que reuniu indígenas da região em torno da BR-319. A pauta não era propriamente os admiráveis festejos, mas a possibilidade de ouvir lideranças de povos que até agora têm impedido que a rodovia seja a mais nova porteira para a destruição da floresta. Sem mesmo saber, eles representam parte da resposta que Dom Phillips procurava em suas andanças pela Amazônia.
Trecho sem asfalto da BR 319, entre Humaitá e Realidade (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Quem é da região Norte sabe que para empreender uma viagem, seja por terra, água ou ar, recomenda-se evitar o inverno amazônico. Com média mensal de 285 milímetros de chuva e tempestades que ocorrem a qualquer momento entre novembro a março, a rodovia BR-319 é tomada pela lama. Se fosse no verão, período mais seco, ainda é possível trafegar em muitos trechos, mesmo que deixando pelo retrovisor nuvens de poeira.
No último ano, duas pontes desabaram no lado amazonense da rodovia, no município do Careiro da Várzea. A primeira, que ficava sobre o rio Curuçá, no Km 23, cedeu em 28 de setembro de 2022. Quatro pessoas morreram. A segunda ponte, no Km 24, sobre o rio Autaz-Mirim, foi interditada um dia antes de desabar, em 8 de outubro. A viagem de uma capital a outra teria, assim, de ser parcial, e não em toda a extensão entre Porto Velho e Manaus.
Na terça-feira de 21 de março, as equipes de reportagem da Amazônia Real e do Expresso, em sua primeira incursão pela floresta amazônica, se encontram num saguão de um hotel em Porto Velho, capital de Rondônia. Uma chuva fina e persistente toma conta do dia e a previsão climática não era nada animadora. Nesse dia, era preciso acertar o aluguel do carro, as compras de mantimento para as equipes, os mosquiteiros para dormir no território indígena. E, com os jornalistas debruçados sobre um mapa, repassar ponto por ponto os locais a serem percorridos até a aldeia São Francisco.
Outdoor de propaganda do ex presidente Bolsonaro ao longo da BR 319 no município de Humaitá, sul do Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Na quarta-feira, a viagem começa pela estrada nos primeiros 200 quilômetros asfaltados, partindo de Porto Velho. Como qualquer outra rodovia federal, não faltam placas indicativas de obras de serviços de manutenção, conservação e recuperação. A primeira parada é na ponte sobre o rio Madeira, ainda na capital rondoniense. Ali de cima pode-se ver balsas de garimpo ilegal e, ao fundo, um terminal graneleiro. Naquela mesma localização, em setembro de 2022, ergueu-se uma cidade-flutuante de balsas, chamada de “fofoca”. Essas imagens varreram o mundo.
A viagem segue em direção a Humaitá (AM), um município de menos de 60 mil habitantes. Por dezenas de quilômetros, não importa o lado da pista, à direita ou à esquerda, enormes áreas desmatadas trazem monotonia à paisagem. Plantações de soja e arroz se alternam com enormes pastagens para a criação de gado, e nada mais. Mas não imagine rebanhos grandiosos. A impressão é que existe terra demais para gado de menos.
Bandeiras do Brasil, já desbotadas pelo sol, são presença constante. Num dos descampados, avista-se um outdoor do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O outdoor diz: “Somos Bolsonaro, acreditamos em Deus e valorizamos a família”. No segundo turno das eleições presidenciais, em 2022, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 53,15% dos votos válidos, derrotou o político da ultra-direita (46,85%) em Humaitá. Ambos são personagens centrais para o futuro da BR-319.
De Porto Velho a Humaitá, já no estado do Amazonas, não há dificuldade em percorrer esse trecho da rodovia, cujo asfalto facilita o trânsito de pessoas, animais e produtos. Mas essas cidades estão ainda muito distantes do “progresso”. Em 2021, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma organização independente de monitoramento da região, Humaitá tinha um Índice de Progresso Social (IPS) de 54,3, numa escala de 0 a 100 – a capital Manaus tem IPS de 65,3. No último Índice de Desenvolvimento Humano, de 2010, a cidade amazonense estava na 4.029ª posição do ranking municipal, à frente de 1.536 outros municípios. O Produto Interno Bruto per capita de um humaitense é de 13.907 reais, bem inferior aos 60.750 reais de um paulistano.
Quando ainda faltam 67 quilômetros para chegar ao distrito de Realidade, uma comunidade surgida por migrantes que chegaram na BR-319 para explorar madeira e se transformou em distrito de Humaitá, as placas de sinalização evidenciam a dimensão das distâncias amazônicas: Manaus está a 656 quilômetros, enquanto Careiro Castanho a 544 quilômetros. Nada parece próximo. Uma grande madeireira com os pátios cheios trabalha de forma frenética. O desmatamento está próximo. O asfalto acaba no Km 253. Dali para frente, será apenas poeira. O sol forte favorece a viagem, enquanto o fluxo de veículos se reduz drasticamente. Pode-se ver alguém montado a cavalo, sinal do isolamento chegando.
É fim de tarde no pequeno distrito de Realidade. Em um campo de terra batida, jovens disputam uma animada partida de futebol. Ao ver a equipe que chegava em um SUV (veículo utilitário esportivo), um jovem se aproxima e pergunta sem rodeios: “Vocês são da Polícia?” Diante da negativa, ele decifra sua curiosidade. “Ah, tá. É que ontem mataram um cara aí nesse campinho.” A informação funciona como um “cartão de visitas”, que pouco difere de outras realidades pelo Brasil afora, marcadas pela violência e ausência do Estado.
Nas ruas de Realidade, falta asfalto, mas isso não impede que motocicletas, do tipo motocross, dominem a cena. Há poucos carros, é verdade, mas não é raro ver algumas carretas que insistem em trafegar pela BR-319, mesmo na época mais complicada do ano. Não faltam pequenos empreendimentos. Há oficinas mecânicas, lojas de roupas, drogarias e lanchonetes. E comércios voltados ao agronegócio. Estes estão por toda parte.
O pequeno distrito lembra as típicas cenas do Velho Oeste norte-americano, com estabelecimentos construídos um ao lado do outro. No verão, a poeira suspensa aumenta as semelhanças. Na via principal, sempre tem um saloon onde homens bebem cerveja enquanto disputam uma partida de sinuca, e olham com certa desconfiança os forasteiros. A reportagem retornará à história do distrito, mas somente daqui a alguns dias.
Viagem pelo Igarapé Realidade e rio Ipixuna, entre Realidade e Tapauá no Amazonas nas proximidades da Floresta Estadual de Tapauá (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
É chegada a hora de deixar o distrito amazonense rumo a uma nova realidade. A melhor forma de chegar até o município de Tapauá, onde fica a aldeia indígena São Francisco, do povo Apurinã, é trocar o SUV por uma embarcação. É assim que os ribeirinhos, indígenas e habitantes deste município se acostumaram a se movimentar. Mas uma perigosa ramificação emergiu, oferecendo um atalho ameaçador.
A estrada AM-366 começou a ser aberta em duas frentes. A primeira, saindo de Tapauá; a outra, vindo da BR-319. Os dois extremos ainda não se encontraram. A estrada está na rota do Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, uma unidade de conservação federal, e das TIs Igarapé Tauá Mirim e Igarapé São João.
Esse atalho é simbólico. Ele nasceu como um ramal e, se depender de grileiros, madeireiros, invasores e até políticos locais, é só questão de tempo para se conectar e virar uma estrada. A AM-366 é um exemplo daquilo que cientistas e pesquisadores chamam de efeito “espinha de peixe”, que diz respeito à infinidade de ramais e estradas adjacentes que são abertas sem qualquer tipo de controle. No centro da “espinha”, fica a BR-319.
“Estamos vendo um movimento de grileiros partindo da rodovia BR-319 tentando encontrar esse ramal no meio do caminho. É algo bem preocupante e já está tudo georreferenciado”, denuncia o biólogo e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Lucas Ferrante. Ele trabalha com o cientista Philip Fearnside, uma das vozes mais respeitadas mundialmente quando o assunto é Amazônia e, particularmente, a BR-319. “Temos acompanhado através de imagens de satélite e em campo pelos impactos sobre as comunidades tradicionais, principalmente na Terra Indígena de Tauá Mirim”, diz o jovem biólogo.
A viagem pelo igarapé Realidade começa às 8h40, num barco que percorrerá os “furos” – atalhos estreitos dos igapós, como é chamada a parte da floresta alagada. São eles que fazem a comunicação entre rios maiores, como o Ipixuna e o Purus. A pequena embarcação cruza os “furos” até acessar o rio Ipixuna, em uma paisagem em que prevalece a mata fechada e densa. Logo se vê a Floresta Nacional de Balata-Tufari, criada em 2005, que fica entre os municípios de Tapauá e Canutama. Na sequência, é possível passar por comunidades ribeirinhas, algumas como a Central, com um surpreendente, bem-vindo e forte sinal de internet.
A previsão é de uma viagem de seis horas, mas ela vai durar três horas a mais. Uma pane seca, por um erro de cálculo e troca de embarcações, obriga o barqueiro e a tripulação a improvisar remos com tampas de caixa de isopor e tripés. É preciso encontrar um refúgio. Por sorte, uma pequena rabeta de um ribeirinho surge e permite ao barqueiro buscar combustível para prosseguir viagem. Salva a equipe de pernoitar no rio, mas não de ter de dormir em Tapauá (AM), já que a chegada ao município ocorre no fim de tarde. Não é aconselhável seguir pelo rio até a aldeia indígena na escuridão.
Tapauá é uma curiosa cidade dois-em-um. Parte dela é como qualquer outro município em terra firme do interior do Amazonas. A outra parte é a cidade-flutuante que existe ao longo do rio Purus. A prefeitura de Tapauá estima que existam 500 flutuantes onde vivem aproximadamente 2 mil pessoas. São casas, igrejas, estabelecimentos comerciais e moradias de todos os tipos. “O povo que morava no interior, com dificuldade de energia e outras coisas, migrou para a cidade. Tapauá é a cidade que tem mais flutuantes no mundo”, arrisca o prefeito Gamaliel Andrade (PSC).
A população estimada de Tapauá é de 21 mil habitantes para um total de 94 comunidades ribeirinhas e área de 89.324 km² – é o quinto maior município brasileiro. As duas principais atividades econômicas são a extração de castanha e o pescado, que responde por 60% dos peixes consumidos em Manaus. No retorno da aldeia, a reportagem irá ao encontro de mais personagens deste município.
Cacique Marino Adriano Batista Apurinã na aldeia São Francisco, na Terra Indígena Igarapé Tauá Mirim no final do ritual “Kenêre” (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A viagem pelas “estradas de rio” recomeça pela manhã de sexta-feira. São mais três horas de barco. À medida que a embarcação se aproxima da aldeia São Francisco, a vegetação vai ficando cada vez mais densa, fechada ou com novos “furos” para atravessar. A sensação é a de adentrar em mata fechada. A chegada à aldeia São Francisco interrompe a rotina dos Apurinã, naquele que seria um dia de festa para eles. Na beira do igarapé Tauá Mirim, a recepção é feita pelo anfitrião, o cacique-geral Marino Adriano Batista, o Marino Apurinã, de 49 anos. Com um sorriso no rosto, ele autoriza a entrada dos jornalistas.
A aldeia São Francisco fica em um terreno que começa com uma subida íngreme. Logo de início, surge uma casa grande, de dois andares, construída de madeira sobre pilotis. Não há paredes dividindo cômodos. A área aberta funciona como um grande galpão onde os visitantes penduram suas redes para a hora de dormir. As bagagens ficam ali antes de continuar a subida.
Um pouco mais acima, no terreno, outras casas têm o mesmo estilo, com tamanho reduzido e apenas um piso. Em uma delas, as mulheres preparam as refeições. Na outra, funciona a escolinha da aldeia, que provê a educação infantil para os pequenos. Uma outra casa está começando a ser construída e lá vai funcionar a igreja dos Apurinã, religião evangélica da Congregação Cristã do Brasil. É por essa razão que não há mais a figura do pajé na aldeia.
A ausência de um pajé não significa perda da identidade dos Apurinã. A celebração do “Kenêre”, que inclui dança e cantos que começam no início da tarde e se estendem até a manhã do dia seguinte. É parte dessa tradição cultural preservada pelos indígenas. Marino compara o “Kenêre” com uma espécie de “forró” dos nordestinos, mas apenas no sentido da dança.
No “Kenêre”, os Apurinã começam uma dança que vai até o centro da aldeia. Eles carregam palmeiras de buriti (kinare na língua Apurinã), uma planta sagrada para eles. Cada um usa um cocar feito com fibra do buriti ” a saporenta”, decorado com grafismos. Ao fim da celebração, todos os cocares são ofertados à natureza, sendo lançados no rio. “Essa festa ensina para as crianças a nossa cultura, para que elas possam levar isso à frente”, explica o cacique-geral.
Marino é um homem de baixa estatura, de olhar firme e uma expressão facial que transmite tranquilidade. É um líder muito respeitado pelo povo Apurinã, e se provou hospitaleiro. Ele recebeu os jornalistas com iguarias como beiju, café quente e generosidade. Em todos os momentos, parecia escolher cada palavra para ser bem compreendido.
Na aldeia São Francisco, o cacique-geral não demora a questionar a construção da AM-366, que está no arco de influência da BR-319. Para não invadir a TI Igarapé Tauá Mirim e Igarapé São João, essa outra estrada passa por fora dessa área protegida, mas isso não foi o suficiente para afastar os impactos da obra. Com o aterramento de igarapés, a oferta de pescado já diminuiu. E o barulho das máquinas rasgando a floresta vem afastando os animais, o que dificulta a caça. “Estamos sentindo (os efeitos da AM-366). Antigamente, o [igarapé] Tauá Mirim era bonito, limpinho. Hoje, parece a água do rio Purus, barrenta, né? A gente depende da natureza, da água pura. O peixe também está lá, pode acontecer de os peixes morrerem por conta da contaminação”, alerta ele.
Para Marino, os Apurinã sabem que precisam da floresta para continuar existindo, assim como a floresta agora precisa deles para continuar de pé. “Com a floresta viva, estamos vivos também, porque a gente não precisa destruir. Na nossa mente, a nossa intenção é proteger a madeira, a caça, porque ela serve para nós, por isso não queremos invasão no nosso território”, pontua.
Ele não está sozinho. Augostinho Batista da Silva, o Augostinho Apurinã, é cacique da aldeia Santo Agostinho, localizada na TI Igarapé do São João. Ele não tem dúvida de que seu povo já sofre com o impacto da BR-319. “Os peixes começaram a rarear a partir da abertura desse ramal que chamam de AM-366. O pessoal foi abrindo e embargaram [na Justiça], daí abriram de novo. O próprio pessoal da cidade foi derrubando. No verão, tacavam fogo e assim iam abrindo a estrada. Agora está imenso lá. Já abriram uns 10 quilômetros”, denuncia a liderança.
Com 34 anos, Augostinho desponta como uma liderança jovem entre os Apurinã. Ele tem um perfil mais sério e desconfiado. A aldeia dele destaca-se pela organização e é outro território que já começa a ser afetado pela ramificação da estrada clandestina. “É promessa (de político) e abrem um pouquinho. O pessoal da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) embarga, aí depois abrem de novo e vão abrindo. Os moradores da cidade (Tapauá) querem fazer roçado no verão e tacam fogo. Aí já tem um caminho, usam motosserra, trator de esteira e vão fazendo o ramal, vão abrindo a estrada assim”, descreve o líder.
As “espinhas de peixe” surgem sempre que uma estrada é asfaltada na Amazônia. A AM-366 é um caso exemplar. A ramificação se acelerou ainda mais pelo fato de o Ibama ter concedido licença prévia para o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte) asfaltar o chamado “trecho do meio” da BR-319. Esse licenciamento foi retomado e aprovado em 29 de julho de 2022, ainda sob o governo de Jair Bolsonaro (PL). Marino Apurinã afirma que não foi feito o protocolo de consulta sobre as obras da rodovia federal e, como já vem acontecendo com a abertura da AM-366, o líder teme que novos problemas possam chegar à TI do Igarapé Tauá Mirim.
“A nossa preocupação é o que vai trazer daqui pra frente, porque através da BR-319 vão abrir ramais, chegarão os agricultores, fazendeiros, caçadores. O medo é que eles cheguem dentro do nosso território”, relata o cacique-geral.
O caminho para a estrada AM-366 é fácil de encontrar, e o início dela, em Tapauá, fica dentro da área urbana da cidade, bem próxima ao aeroporto Luiz Ribeiro Maia (sim, há um aeródromo no município). Qualquer pessoa pode acessar o ramal. Por não ter asfalto, a estrada passa pelo mesmo dilema da BR-319. Vira um lamaçal durante o inverno e “levanta a poeira” no verão. Embora ela esteja sendo feita de forma clandestina, trata-se de um projeto real. Documentos do Dnit, explica Lucas Ferrante, mostram que não é de hoje que se cogita reavivar a BR-319 e construir a AM-366.
Uma equipe do DNIT visitou em 2022 a aldeia São Francisco e levou até eles uma planta cartográfica da BR-319. Segundo o cacique Marino Apurinã, os técnicos do órgão federal mostraram que a obra teria, inclusive, corredores exclusivos para a passagem de animais silvestres. Apesar da visita, o líder ressalta que a conversa com o Dnit não definiu a posição dos Apurinã. “Eles disseram que aprovamos, que vai ser tudo bacana, mas isso não foi uma consulta. Estamos esperando que falem conosco”, diz Marino.
O indígena Apurinã, Constantino Inácio Batista (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Em uma das casas, Constantino Inácio Batista, de 63 anos, aponta o dedo indicador para o chão, como se quisesse escrever a história de seu povo no piso de madeira. Ele viu a aldeia São Francisco nascer. Com uma voz em um tom baixo e pausado, ele afirma que os Apurinã foram esquecidos, sobretudo pelos que poderiam fazer diferença. “Os políticos não querem saber dos indígenas”, lamenta.
Raimundo do Amaral, de 56 anos, tem uma relação antiga com os indígenas da BR-319, o que o liga à história de Bruno Pereira, com quem conviveu em algumas ocasiões. O indigenista era funcionário concursado da Funai até pedir exoneração por conta da perseguição que sofria dentro do órgão. Já Amaral, que não era concursado, foi exonerado em 24 de janeiro de 2021, enquanto estava de férias.
Em 2002, Amaral foi prestar um serviço de carpintaria na TI Paumari do Lago Marahã, no município de Lábrea, também no sul do Amazonas. Ele conta que morou por um ano e oito meses na aldeia, tempo suficiente para criar laços com os indígenas. Depois que saiu de lá, Amaral foi contratado pela Funai para atuar em um projeto de demarcação. O primeiro trabalho foi como piloto de barco. “Daí continuei trabalhando e até hoje estou aqui com os povos indígenas. Não consegui fazer outra coisa”, lembra.
Amaral conheceu os Apurinã da aldeia São Francisco em 2004. Quatro anos mais tarde, foi contratado pela Funai para trabalhar na Frente de Proteção Etnoambiental do Purus, trabalho que era desenvolvido com indígenas de recente contato. Em 2012, assumiu, na Funai, o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial, que respondia pelos municípios de Pauini, Lábrea, Canutama e Tapauá. Neste último município, onde nasceu, Amaral foi enviado para intermediar um conflito entre os indígenas. Depois de concluir a missão, foi a vez de os Apurinã não quererem mais que ele fosse embora.
Raimundo Amaral é um homem sério, com semblante fechado, mas amolece quando fala de Bruno Pereira. Eles se encontraram pela primeira vez em 2019, em um treinamento em Brasília. Teve as melhores impressões do indigenista. “Bruno foi exonerado da Funai, mas não conseguia ver as coisas acontecendo em desfavor daquele povo e simplesmente ficar quieto”, revela. É por isso que sofria ameaças, como ele próprio já recebeu as suas. Sobre a BR-319, ele pede que o processo não atropele os direitos dos povos originários.
“A questão não é dizer que é contra [a estrada]. O que nós queremos é que se tiver que acontecer, que seja de forma legal, responsável, consultando a população indígena, vendo qual o prejuízo que essas construções vão trazer e o que pode ser feito para diminuir esse impacto”, suplica Amaral.
Sandra Batista, com o filho em lancha a caminho da aldeia dos Apurinã (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
A coordenadora da Federação e Organização das Comunidades Indígenas do Médio do Purus (Focimp), Sandra Batista do Amaral, que pertence à TI Apurinã Água Preta Inari, explica como funciona o processo de consulta. O primeiro passo é ir às aldeias indígenas para colher informações sobre como os indígenas querem ser ouvidos – e não apenas mostrar um mapa.
“É preciso ter a autorização deles. Saber se eles estão de acordo [com a consulta]. Se estiverem de acordo, marcamos uma reunião e não é o governo que vai marcar. É no tempo deles. E tem que ser feito antes que as coisas aconteçam. Sobre a BR-319, eles não foram consultados ainda”, explica Sandra. A consulta prévia é um dos direitos fundamentais dos povos indígenas no Brasil, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “De um tempo para cá, eles não têm tido o direito deles respeitados. Eles estão muito revoltados.”
O cacique-geral Marino Apurinã exige esse direito de consulta. “Tem que conversar com nós primeiro. Consultar. O governo tem que ouvir nós, porque vamos ser afetados. Para eles está bom, mas para nós (a estrada) traz problemas, consequências com madeireiros, caçadores. Nossa preocupação é essa”, diz.
“É uma rodovia que não tem estudo de viabilidade econômica, nem estudos ambientais concluídos”, acrescenta Lucas Ferrante. O pesquisador diz ter encontrado “evidências de fraude” nos últimos estudos ambientais apresentados, inclusive a ausência de um levantamento de fauna e dos impactos sobre os igarapés. Essa denúncia já foi publicada em artigos científicos.
Um total de 63 áreas indígenas devem ser impactadas com a pavimentação da BR-319, além de comunidades ainda não reconhecidas e uma população indígena isolada que vive próxima a Tapauá. Ferrante detectou que em Manicoré (AM), município vizinho, houve um aumento de 400% de casos de malária, desde que a licença de manutenção foi expedida em 2015. O motivo é o desmatamento. “Vemos uma endemia, a região se tornando um epicentro de malária por conta da degradação ambiental”, diz ele.
Em agosto de 2020, o cacique Waldemiro Silva, ex-coordenador da Focimp, denunciou o “genocídio anunciado do povo Apurinã”. Ele enviou um documento por escrito ao Ministério Público Federal que aponta que o Dnit se recusou a realizar a consulta prévia, livre e informada e o trecho do meio lote “C” não contava com estudos ambientais. E lembrava que a mera manutenção da BR-319 já trazia impactos visíveis às TIs de Tapauá, incluindo ameaças, invasões e a proliferação da Covid-19 nas comunidades.
O lote citado pelo cacique corresponde a 52 quilômetros da BR-319, que corresponde ao “trecho do meio” entre os quilômetros 198 a 250. Em dezembro de 2020, o Dnit, sem ter pedido estudos de impacto ambiental ou obtido qualquer licença prévia, contratou um consórcio de empresas para tocar as obras do lote C. Em setembro de 2022, o MPF pediu e a Justiça Federal decidiu pela suspensão da obra por conta de todas as irregularidades.
Vista aérea do inicio do trecho da rodovia AM 366 ao lado do aeroporto de Tapauá, no Amazonas, norte do Brasil (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
No caso da AM-366, o biólogo Lucas Ferrante denuncia que os equipamentos usados para abrir o ramal foram da própria prefeitura de Tapauá. “Naquela área, não existem produtores. No CAR, que é o Cadastro Ambiental Rural, verificamos que são terras declaradas pelos próprios invasores, um desmatamento recente que não segue as normas de regularização fundiária do Brasil. Então estamos falando puramente de uma atuação criminosa. Existem criminosos com vínculo com o crime organizado ao qual o prefeito de Tapauá tenta passar pano”, diz.
Para o prefeito de Tapauá, Gamaliel Andrade, o rasgo na floresta foi iniciado pelos próprios produtores rurais da cidade, muito antes de sua gestão, iniciada há dois anos. Mas desconversa sobre quem poderia estar por trás da abertura que começa na BR-319. “Eu não conheço a outra parte de lá. Segundo algumas pessoas falam, são plantadores de café. Muita gente está vindo de outros Estados para plantar café no município de Tapauá”, responde alguns dias depois da passagem da reportagem pelo município. Segundo ele, já foram abertos 26 dos 90 quilômetros dessa hipotética estrada que ligará Tapauá até a BR-319.
O prefeito de Tapauá, de fato, não esconde o desejo de conectar a BR-319 à AM-366, pois essa ligação vai ajudar o município na exportação de castanha e do pescado. “Temos um rio baixo, que na estiagem o município às vezes chega a ficar isolado. Vai ser qualidade de vida e renda para o nosso povo. A BR é um sonho para o Estado e um sonho para o povo tapauaense”, explica.
[Pausa breve: em 9 de maio, tempos depois de conceder esta entrevista, Gamaliel prestou esclarecimentos à Superintendência da Polícia Federal, em Manaus, por portar 100 mil reais em espécie. O dinheiro foi apreendido, quando ele se preparava para retornar à Tapauá, ainda no Aeroclube de Manaus. A PF também apreendeu o celular do prefeito. Ele teria dito aos policiais que poderia comprovar a origem do dinheiro]
Em Tapauá, fica localizada a Abufari Produtos Amazônicos, uma usina de beneficiamento de castanha do Brasil que, em 2022, faturou 3,8 milhões de reais. O empresário Leonardo Baldissera Santos está à frente do negócio, para o qual investiu 4 milhões de reais na compra de equipamentos e da planta industrial. A empresa começou a operar em 2019 e, desde então, a produção cresce de forma acelerada. No primeiro ano foram processadas 25 toneladas de castanha; no segundo 47 e, no ano passado, chegou a 82 toneladas.
Parte dessa produção vem da fazenda da própria empresa, onde cerca de 450 pessoas atuam na retirada da castanha. Baldissera afirma que 1.400 pessoas trabalham de forma indireta na retirada do fruto e 25 pessoas que trabalham de forma direta, na usina. A Bertholletia excelsa é uma árvore de grande porte abundante no Brasil e na Bolívia. Seu nome mais comum é castanha do Brasil, mas também recebe as denominações de castanha-da-amazônia, castanha-do-acre, castanha-do-pará, noz amazônica, noz boliviana, tocari ou tururi. A extração desse produto amazônico é um exemplo de iniciativa sustentável. Mas para a empresa Abufari alavancar sua escala de produção precisa ter uma estrada para escoar a mercadoria. E estradas, na Amazônia, estão longe de serem sustentáveis.
“A gente entende que uma ligação do município de Tapauá através da AM-366 conectaria o Brasil a essa região remota e traria desenvolvimento para as pessoas daqui, oportunidades, melhorias econômicas, como de escoamento de produção, e também de uma maior facilidade de chegada de produtos e insumos”, diz Baldissera. “Obviamente levando-se em conta medidas também de preservação ambiental. Pode existir um equilíbrio entre meio ambiente e desenvolvimento econômico.”
Os problemas em Tapauá não se restringem à estrada aberta “na marra” para ligar o município à BR-319. Por lá, o desmatamento só avança, inclusive na Floresta Estadual (FES) Tapauá, que no ano passado perdeu 1.830 hectares, de acordo com informações divulgadas pelo Observatório BR-319. O aumento corresponde a um crescimento de 891% de desmatamento no intervalo de um ano.
Para o secretário de Meio Ambiente do Estado do Amazonas, Eduardo Taveira, o problema na FES Tapauá decorre de sua localização. “Tem a pressão do desmatamento e é uma das áreas que está diretamente ligada a esse eixo da BR-319, que mesmo sem estar asfaltado se tornou um vetor de conexão entre duas áreas de avanço dessa fronteira do desmatamento. Tem pressão do distrito de Realidade, tem pressão de outras áreas”, alinhava.
Para o biólogo e pesquisador australiano do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), William E. Magnusson, “uma coisa é demarcar uma área e dizer: isto é uma reserva. Depois temos de ser capazes de a fazer cumprir”. O alerta do pesquisador cabe como uma luva no que vem acontecendo dentro da FES Tapauá, onde foi criada uma área de preservação e que já se encontra ameaçada.
É no mínimo curioso ouvir do secretário de Meio Ambiente que a própria condição precária da BR-319 implica na dificuldade em combater o desmatamento. “Chegar no monitoramento das áreas é extremamente difícil”, justifica. O governo do Amazonas cancelou licenciamentos que foram concedidos dentro da área de conservação da FES Tapauá. Em uma operação de fiscalização promovida pelo Batalhão Ambiental, cogitou-se acesso por rio e também pela via aérea, mas este último custo seria elevado. Ao optar pelo rio, os criminosos informaram aos demais sobre a chegada dos agentes públicos. Não houve flagrante dos crimes.
O secretário conta que em uma dessas operações três viaturas acabaram sendo inviabilizadas: duas da Polícia Militar e uma do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). “Agora, a Secretaria de Segurança Pública conseguiu adquirir um caminhão-tanque para fornecer combustível para helicópteros, porque eles não têm alcance saindo de Manaus. Tem que abastecer em Humaitá, mas lá não tem combustível adequado para helicóptero”, conta Taveira.
Moradora pioneira de Realidade, comunidade ao longo da BR 319, Maria de Fátima Santana, 60 anos (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
De volta a Realidade, já no fim da tarde do domingo, sobra um tempo para a reportagem conhecer mais personagens que sonham com a BR-319 asfaltada. Com passos firmes e uma certa pressa, a agricultora Maria de Fátima de Santana atravessa, a pé, a pequena ponte de madeira que dá acesso a esse distrito de Humaitá. Foi sorte se deparar com aquela mulher de 60 anos que faz parte da primeira família a chegar no local, quando sequer havia um distrito.
“Era tudo mato”, descreve Maria de Fátima, que tinha 9 anos em 1972, quando chegou ao local, junto do pai, João Ferreira de Santana, que ficou conhecido como João Cuiabano; e da mãe, Nilza Francisca Santana. João Cuiabano foi a primeira pessoa a morar no que hoje é o distrito de Realidade. Ele morreu três meses atrás. A viúva dele ainda é viva e já passou dos 80 anos, como conta Maria. A família aceitou o convite de um primo de Nilza, que era do Mato Grosso, que disse que ali encontrariam terras disponíveis para plantar.
Disposto a conquistar um pedaço de chão, João Cuiabano chegou até certo ponto da BR-319 de carona, depois andou mais de 30 quilômetros até se fixar onde se tornaria, anos depois, o distrito de Realidade. “Não havia nada aqui. Comíamos peixe, carne de caça e palmito”, descreve. O pai de Maria de Fátima “não sabia cortar a seringa ou quebrar castanha”. Aos poucos, foram chegando mais pessoas, a estrada “acabou” e a família de João Cuiabano decidiu ficar. Por teimosia.
Maria defende o asfaltamento da BR-319 para que os moradores possam chegar mais rápido em Manaus e para que os agricultores possam escoar a produção. “Não tem mais o que desmatar, tudo já foi desmatado. Tem que plantar, quem vai morar em cima de uma terra sem plantar? Tem que tratar o açaí para vocês aí, a mandioca, o arroz, não é? Eu sou a favor de quem planta”, diz.
O empresário Antônio Bertola, 55 anos carrega motosserra na moto na saída de seu hotel em Realidade, no sul do Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Nascido na cidade de Dois Vizinhos, no interior do Paraná, mas radicado em Rondônia, o empresário Antônio Bertola, de 55 anos, vendeu tudo que tinha e se mudou há dez anos para o distrito de Realidade. Ao contrário dos primeiros migrantes que chegaram ainda nos anos 1970, o empresário paranaense se mudou para Realidade ao ouvir a promessa de asfaltamento da rodovia feita pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). E lá ele construiu o hotel La Kasita, o maior da cidade. Trata-se de uma edificação simples, o que espelha o estilo de Bertola. Ele recebe os hóspedes de bermuda jeans, sandálias, camisa de algodão e um boné para poupar a pele branca castigada pelo sol.
O empresário evita usar a palavra “arrependimento”, mas não esconde a frustração que sente por ver que a estrada segue, depois de tanto tempo, sem sair do papel. “Ela [Dilma] falou que ia asfaltar. A gente pensava que ia melhorar muito, mas aí ela não asfaltou e estamos aqui. O dinheiro que a gente tinha aplicado foi usado aqui, então tem que ficar, agora”, diz o empresário. Suas economias foram investidas em um sítio onde mantém plantações de banana e café, mas que “não tem como tirar nada de lá por conta da estrada”, e no Hotel La Kasita.
“Não pode dizer que é ruim e não pode dizer que é bom também, porque no tempo das águas (inverno amazônico) é muito ruim. O hotel fica muito fraco porque na estrada não passa nada”, lamenta. Nesta época do ano, a chuvosa, praticantes de motocross que decidem se aventurar pela estrada são alguns de seus clientes.
Bertola notou uma mudança recente no perfil de novos moradores de Realidade. Estão chegando mais fazendeiros que investem em rebanhos bovinos, com gado leiteiro e de corte. Ele é outro defensor da reconstrução da BR-319, mas tem pouca esperança. “Acho meio difícil enquanto ficar a Marina Silva lá”, diz, referindo-se à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
O vaqueiro André Bispo, de 29 anos, migrou do município de Presidente Médici, no interior de Rondônia, para o distrito de Realidade há três meses. Veio acompanhado da mulher, Gisele Cristina, de 21 anos, da filha Ive Cristina, de 1 ano. Na bagagem, o sonho de virar fazendeiro. O primeiro passo já foi dado. “Eu ainda não comprei gado, não. Comprei uma terra, só que não tem cerca, né? Aí eu tenho que fazer a cerca para depois comprar o gado”, explica.
Enquanto o rebanho não começa, Bispo decidiu montar uma lanchonete. Com a doação de restos de madeiras, obtidos de serrarias vizinhas, está construindo mesas e cadeiras. Tudo improvisado, mas ele está feliz com o resultado.
Bispo conta que com o dinheiro que se adquire dois hectares de terra na região de Presidente Médici é possível comprar 90 hectares em Realidade. “Lá o valor é muito alto”, conta o vaqueiro que, mesmo sem ter a sua fazenda pronta, não deixa o estilo de lado. É chapéu na cabeça, bota de couro, cinto de fivela grande e a crença de que precisa desbravar algo para vencer na vida.
O vaqueiro, por ora, está às voltas com problemas comuns a qualquer localidade brasileira sem infraestrutura. A energia elétrica cai a todo instante. Quando a luz acaba, as escolas dispensam os alunos e o posto de saúde realiza um atendimento precário. O esgoto ainda é a céu aberto. O jovem vaqueiro acredita que esse é o destino de toda vila que está começando. Mas isso vai mudar se e quando chegar o asfalto. “Se tiver a estrada vai ajudar muito. Vou conseguir ir a hora que quiser de carro, a cidade vai estar muito melhor, vai ter saneamento básico melhor”, torce.
Os sonhos dos que chegaram há décadas e dos que não param de chegar formam a linha temporal da BR-319. É uma história feita de política. Durante o regime militar, nos anos 1960 e 1970, um dos lemas relacionados à região Norte era “integrar para não entregar”.
“A BR-319 era parte de um grande projeto para a Amazônia, que era integrar a região por estradas ao restante do País. Fazia parte de uma série de iniciativas que envolvia estabelecer frentes de expansão da ocupação, principalmente com atividades agropecuárias, e agricultura de culturas não amazônicas”, explica o diretor da WCS Brasil, o geógrafo Carlos Durigan.
A mesma política que deu início a construção da estrada no ano de 1968 serviu para criar, na década seguinte, a Zona Franca de Manaus, que foi capaz de atrair empresas da chamada “indústria limpa” para a capital amazonense, por meio de benefícios fiscais. A BR-319 foi inaugurada em 27 de março de 1976, com a presença do então presidente, o general Ernesto Geisel. Apenas 12 anos depois, no ano em que o Brasil promulgava a Constituição de 1988, a estrada foi declarada intrafegável. A empresa que cuidava da via suspendeu os serviços de manutenção.
Nos primeiros anos do restabelecimento da democracia no Brasil, a BR-319 foi deixada de lado pelos governantes. Ela só voltou ao debate público em 1996, já no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), mas mais seriamente em meados dos anos 2000, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2011), e na de Dilma Rousseff (2011-2016). O ex-ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento (2004 a 2006/2007 a 2011), tratou de recuperar os dois extremos da rodovia. Mas não conseguiu avançar sobre o “trecho do meio”, segundo Nascimento, por causa do licenciamento ambiental que nunca saiu.
A 2ª Vara Federal do Amazonas, em 2005, determinou que a BR-319 precisava ser reconstruída, e não apenas pavimentada novamente. Isso implica começar do zero o processo de licenciamento ambiental. Segundo Carlos Durigan, o “trecho do meio” é formado por um grande mosaico de paisagens com uma diversidade relativamente alta de ambientes florestais, com áreas com florestas de terra firme e inundáveis.
A região pela qual passa a BR-319 é um grande interflúvio das bacias hidrográficas do rio Purus e do rio Madeira, que, por sua vez, formam a bacia amazônica. É um mar de água, portanto. “O trecho do meio praticamente perdeu todo o seu pavimento por conta desse processo erosivo, de falta de uma manutenção adequada e a própria obra em si não ser adequada para esse tipo de ambiente”, explica o geógrafo.
As equipes da Amazônia Real e do Expresso retornaram a Porto Velho e, em seguida, a Manaus, no dia 28. As apurações em torno do tema da BR-319, contudo, ainda não terminaram. É preciso ainda um capítulo final para mostrar por que o destino da rodovia e da Amazônia passa pelas mãos dos políticos.
Trabalhadores durante manutenção da BR 319 no trecho entre Porto Velho e Humaitá, onde uma tubulação rompeu abriu um grande buraco na pista (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O ex-vice-presidente e hoje senador da República, general Hamilton Mourão (Republicanos), chegou a prometer que “comeria a própria boina”, se ele, Bolsonaro e o ex-ministro da infraestrutura e atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), saíssem do governo sem cumprir a promessa de pavimentar a BR-319. Não há notícias de que Mourão tenha cumprido a promessa.
Eleito para um terceiro mandato, Lula mandou incluir o asfaltamento da BR-319 nos planos do Ministério do Transporte, embora durante a campanha presidencial tenha se esquivado desse tema. Em março, contudo, a ministra Marina Silva questionou a licença expedida durante o governo Bolsonaro (2019-2023). “Estamos vivendo a mudança do clima em função do aumento das queimadas e do desmatamento, se não pararmos para pensar na situação da Amazônia, a situação vai se agravar. A questão da BR-319 está sendo avaliada. Tem uma licença que foi dada e ela está sendo revisitada. Tem que fazer a análise do projeto”, disse.
No dia 24 de maio, numa audiência na Comissão de Desenvolvimento da Câmara dos Deputados, Marina Silva afirmou que o caso do trecho do meio da BR-319 necessita de uma avaliação ambiental estratégica. “O problema é que é uma estrada para atividades econômicas de alto impacto no coração da Amazônia. E se a Amazônia ultrapassar os 20%, ela entra num ponto de não-retorno. Eu não quero destruir recursos de milhares de anos pelo lucro de poucas décadas.”
De acordo com o Imazon, no primeiro trimestre de 2023, foi registrada a segunda pior marca de área desmatada da Amazônia em 16 anos. Foram derrubados 867 quilômetros quadrados de mata nativa nos três primeiros meses do ano, o equivalente a quase mil campos de futebol por dia. Essa marca só perdeu para os 1.185 quilômetros quadrados registrados no primeiro trimestre de 2021, durante o governo Bolsonaro.
Desde que iniciou o novo mandato, Lula mostrou uma retórica mais favorável à proteção da Amazônia. Além da operação de emergência para salvar o povo Yanomami, com ações concretas para acabar com o garimpo no território deste povo, o presidente petista conseguiu, por vias diplomáticas, que o Fundo Amazônia fosse reativado pelos governos da Alemanha e da Noruega e até ampliado, com doações suplementares de países como Estados Unidos e Inglaterra. Os 5,5 bilhões de dólares do fundo serão utilizados para projetos de combate ao desmatamento e estímulo ao desenvolvimento sustentável.
O interesse internacional pela Amazônia, bem-intencionado ou não, serve de munição para políticos insuflarem seus discursos. Mas, internamente, o debate em torno da reconstrução da BR-319 tem contaminado a lógica e o bom senso. Em janeiro de 2021, o governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), afirmou que o asfaltamento da rodovia teria evitado mais mortes por Covid-19. Naquele fatídico mês, Manaus enfrentou uma grave crise de falta de oxigênio e 2.522 pessoas morreram pela doença no Estado amazonense.
Mas Lucas Ferrante publicou um artigo, assinado também por Philip Fearnside, que sugere que a crise do oxigênio em Manaus teria sido “fabricada para providenciar lobby” pela pavimentação da BR-319. Segundo o biólogo, o Dnit afirmou à época que a rota ideal seria transportar o oxigênio por essa rodovia, saindo de Santarém. “Se o oxigênio estava em Porto Velho, demonstramos que era muito mais barato e mais rápido transportar pelo rio Madeira. Mas foi uma estratégia adotada para tentar promover a pavimentação da rodovia, que custou muitas vidas para Manaus”, aponta o pesquisador.
Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), o cientista Philip Martin Fearnside, colaborador da Amazônia Real, tem alertado o mundo sobre os inúmeros riscos de uma hipotética reconstrução da BR-319. Pesquisador titular do Inpa, Fearnside acrescenta um elemento que poucas pessoas se deram conta nesse debate. Trata-se do gigantesco projeto de petróleo e gás da chamada “Bacia Sedimentar do Solimões”, situado no lado oeste da rodovia federal.
Para o cientista do Inpa, a AM-366 é parte do projeto de petróleo e gás. “Os blocos deste projeto que ficam diretamente no caminho da AM-366 estão entre os 16 blocos para os quais os direitos de perfuração já foram vendidos para a Rosneft, a gigante russa de petróleo e gás”, explica Fearnside.
Na Rússia, a organização ambiental Greenpeace acusa a empresa de causar mais de 10 mil derramamentos de petróleo em todo o mundo. “O dinheiro e a influência de uma empresa do porte da Rosneft significam que ela provavelmente conseguirá convencer os governos federal e estadual a priorizar a construção de estradas que beneficiem suas operações, como a BR-319 e a AM-366”, descreve Fearnside.
Além do petróleo, há ainda o interesse econômico na extração de potássio, fonte de conflitos territoriais, bastante vísivel no município de Autazes (AM). Para o antropólogo e coordenador do grupo de pesquisa Nova Cartografia Social da Amazônia, Alfredo Wagner, as extrações de potássio no Baixo Madeira estão intimamente ligadas à rodovia federal. “Porque a BR-319 será o escoadouro dessa produção que vai para fábricas de adubo que estão querendo montar no Mato Grosso, que é a principal área do agronegócio. Então essa região é estratégica”, explica o antropólogo.
O potássio é matéria-prima para a indústria de fertilizantes. Atualmente, o Brasil importa 85% dos fertilizantes. Deste total, 23% vem da Rússia. A promessa é a de que a jazida existente em Autazes seja suficiente para suprir 100% das necessidades do mercado nacional. “Neste momento muitos economistas falam de re-primarização da economia. Nós voltamos a uma situação quase que colonial. Voltamos a exportar produtos agrícolas para as metrópoles europeias, agora no caso, para a China e Europa”, pontua Wagner.
Em outras palavras, o que os cientistas afirmam é que a pavimentação da BR-319 envolve questões mais complexas do que o “direito de ir e vir” das pessoas e da integração terrestre do Amazonas com o resto do País. A BR-319 se tornou a última barreira para a preservação do que sobrou da floresta amazônica, ao mesmo tempo em que é cobiçada como uma “joia” para bilionários e poderosos mercados econômicos, como o de gás, petróleo e potássio.