25 Abril 2023
É possível viver sem Google, Amazon, Facebook e Apple? Reapropriar-se da tecnologia para usá-la para o bem comum? Imaginar o fim do capitalismo? O cronista e estudioso tecnológico Ekaitz Cancela (Barakaldo, 1993) acredita que sim. “As utopias são a matéria-prima das opções alternativas”, aponta em sua última coleção de ensaios Utopías digitales (Verso Libros).
Cancela é editor da plataforma de curadoria de conteúdo The Syllabus, promovida pelo intelectual bielorrusso Evgeny Morozov, e doutorando sobre a transformação do Estado na era digital, no grupo de Tecnopolítica/CNSC/IN3, da Universidade Aberta da Catalunha.
A entrevista é de Carles Planas Bou, publicada por El Periodico, 15-04-2023. A tradução é do Cepat.
Fala do ‘Homo Davos’ como representação da falsa imagem da democracia tecnológica em que vivemos. Do que se trata?
Homo Davos reflete três tipos de sujeito na era digital. É um trabalhador precário, explorado e continuamente auditado pelas tecnologias. É o consumidor soberano neoliberal que só pode descobrir coisas novas através das plataformas digitais: novos casais no Tinder, novos filmes na Netflix e novas músicas no Spotify. É o empreendedor que desenvolve soluções criativas com uma finalidade produtiva, que cria uma startup, mas que para obter dinheiro de fundos de capital de risco, precisa de um modelo de negócio, que sempre é a extração de dados.
É o paradigma que as elites estabeleceram e que dilui toda a criatividade dos sujeitos, pois submete a imaginação ao mercado, em vez de coletivizá-la para levar a cenários diferentes para solucionar problemas comuns. O Vale do Silício se apresenta como a única vanguarda intelectual e criativa, quando na verdade o que faz é suprimir as vanguardas que saem de fora do mercado.
Um Vale do Silício que converteu todas as experiências de nossa vida em algo para comercializar no mercado digital, no qual competimos com os outros com o objetivo final de buscar a viralidade...
Só podemos nos relacionar com os outros mediante uma condição econômica, é algo próprio do neoliberalismo. O neoliberalismo é incapaz de ter uma teoria que não seja econômica. E quando se começa a ver o que há fora do mercado, essas esferas às quais nunca deu resposta, é a partir daí que eu acredito que seja possível pensar em alternativas.
É o que estamos vendo com a eclosão da inteligência artificial. A Microsoft já a está integrando em todos os seus serviços, prometendo acelerar a produtividade. Faremos mais coisas e de forma mais rápida, mas será que teremos mais tempo livre ou a exploração do trabalho aumentará?
É uma contradição que nem os capitalistas sabem responder. O capitalismo precisa aumentar a produtividade, mas sua história também é a da crise da produtividade. Antes, as pessoas tinham mais consciência como trabalhadoras, não queriam iniciar um processo comunista, mas, sim, ter melhores condições. Agora, diz-se que o digital eliminou a consciência de classe, mas o que eliminou é a vontade de trabalhar nesta sociedade. A ansiedade, a distração, a tristeza estão determinadas por essa condição digital.
Com a inteligência artificial, as pessoas percebem que aumentar a produtividade não faz muito sentido porque fazer mais com menos está levando a um tremendo grau de irracionalidade. Com o ChatGPT, vemos que não se automatizam tarefas para ter mais tempo para ser livre e pensar melhor, mas, ao contrário, para que se possa fazer a mesma merda de antes, mas com uma taxa de produção muito maior.
Não temos consciência de classe, mas outra coisa está despertando. Os millenials estão internalizando que o capitalismo não os agrada. Não porque estejam absorvidos pela propaganda comunista, mas porque suas condições materiais entraram em contradição com as relações de produção digital.
As plataformas também atomizaram as sociedades, reduzindo todos os grandes problemas estruturais da sociedade a uma questão subjetiva. Assim, parece que a mudança climática é responsabilidade de se reciclamos mais ou menos em casa. Isso conseguiu erodir nossa capacidade de ação coletiva?
Isso é produzido pelo neoliberalismo. As palavras de Margaret Thatcher (“Não existe sociedade. Existem indivíduos, homens e mulheres, e existem famílias”) são um elogio ao individualismo usado para eliminar a sindicalização. Um elogio a uma sociedade individualizada e que deposita mais esforço mental nas mercadorias de consumo do que em pensar sobre suas condições materiais.
O Facebook se chama rede social. Vem para solucionar os problemas gerados pelo individualismo, mas em vez de criar um espaço social, individualiza muito mais. As grandes tecnológicas contratam antropólogos e psicólogos para conhecer os mecanismos cognitivos que levam as pessoas a refugiarem em si, porque quanto mais reclusão existe, mais se interage com a tela e mais informação é gerada. Afinal, essas empresas vendem publicidade. A ação coletiva é suprimida porque a mercadoria se mete em nós como um vírus.
Barcelona reconheceu as escolas que adotaram uma plataforma pública e de código aberto como alternativa à incorporação em massa das ferramentas de gigantes tecnológicos. Esse é o caminho a seguir?
Sim e não. Precisamos de alternativas a plataformas como o Google e a Microsoft, que estão em todas as cidades. Mas não basta substituí-las, temos que repensar como a configuramos. E, aqui, a educação é um campo-chave. Teme-se que com o ChatGPT as crianças copiem as avaliações ou fiquem mais preguiçosas, mas o que essa ferramenta mostra é um sistema educacional que ficou absolutamente antiquado, pois está baseado no conhecimento enciclopédico, na memorização.
Podemos almejar desenvolver tecnologias como a inteligência artificial, mas treinadas com dados muito menores para que as pessoas nos colégios de Barcelona possam experimentar uma aprendizagem mais criativa. É preciso fazer um esforço para pensar como fazer da utopia digital um serviço público. Isso tem um potencial muitíssimo mais avançado do que substituir uma plataforma privada por uma aberta, embora isso já seja uma conquista sem precedentes.
A internet nos foi vendida como um oásis de democratização, mesmo assim, a indústria digital está concentrada de forma oligopolista em bem poucas empresas.
Uma das bases que assentam esses oligopólios é a propriedade intelectual. Um telefone tem cerca de 250.000 patentes. Desse modo, estão se apropriando da criatividade, transformando nossa capacidade de repensar. Cada parte de uma inovação tecnológica só pode beneficiar uma série de empresas que detêm essa propriedade intelectual. E quando alguém desenvolveu uma alternativa minimamente semelhante, teve que investir muitíssimo dinheiro e ter sido megacriativo para criar algo que o Vale do Silício já não tenha comprado.
A única forma de sair desses oligopólios é democratizar a criatividade, pensar o Estado e as instituições como se fossem um software aberto. As infraestruturas políticas devem ser públicas e comunitárias. É estúpido que a infraestrutura de moradia em Barcelona esteja nas mãos do Airbnb e não nas do sindicato, ou que a infraestrutura de trabalho esteja nas mãos da Uber e Glovo e não nas de correios e sindicatos da alimentação. É aí que o Estado deve intervir para acabar com os monopólios. Para que as pessoas tenham seus dados e possam decidir como usá-los.
No livro “Despertar del sueño tecnológico”, falou sobre como o capital financeiro se refugiou na indústria de tecnologia, sustentando empresas como Facebook e Uber como mecanismo para ganhar dinheiro. Isso muda depois dos cortes e demissões no setor?
A guinada para a inteligência artificial não é por acaso. A Microsoft a utiliza para buscar rejuvenescer porque já perceberam que o modelo de negócio da publicidade é preciso ser dosificado ou pode ruir. É por isso que as empresas foram se movendo para a nuvem.
Agora, tentarão construir toda uma série de nova economia digital em torno dessa inovação. Essa democratização absoluta da inteligência artificial sobre a qual fala não deixar de ser o Google com uma funcionalidade um pouquinho mais avançada. E mesmo assim, o ChatGPT continua dando respostas incorretas.
O Vale do Silício ativou sua máquina de marketing para nos vender a inteligência artificial, após um 2022 sombrio para o setor…
O populismo tecnológico se assenta na promessa de que este é o estágio mais elevado da humanidade, uma fase de progresso sem precedentes. E agora buscam convencer as pessoas com o artifício de que passar a ter um buscador com inteligência artificial é tudo o que podemos fazer.
Temos tecnologias que podem prever doenças e estão dizendo às pessoas que com o ChatGPT será possível fazer melhor os deveres. Esse populismo digital continua em boa forma, pois gastam uma barbaridade em publicidade. Sob essa camada há uma verdadeira farsa. Precisamos nos apropriar da inteligência artificial para consumir menos recursos e ter um planeta mais equilibrado.
Esse uso da inteligência artificial para pesquisa é o que o Barcelona Supercomputing Center faz…
Só que, em vez de buscar formas de usá-lo para que as empresas possam ir mais rápido, deveria ser utilizado para pensar em como decrescer. Não pode estar a serviço de empresas, mas, sim, mobilizar-se como serviço público da forma como os cidadãos e os movimentos sociais decidirem.
A União Europeia tem uma oportunidade para reduzir sua dependência tecnológica?
O problema é que na base da integração europeia está criar um mercado único comum. A União Europeia se configurou com a crença de que no mercado não se intervém e que a única coisa que pode fazer é garantir a concorrência. Contudo, isso é uma farsa. A soberania tecnológica é uma forma de fazer com que as empresas de telecomunicação europeias não sejam derrotadas e que as empresas estadunidenses não se vejam afetadas.
É uma estratégia mercantilista defendida pela França e a Alemanha. Por exemplo, a Telefónica se vê beneficiada porque recebe a permissão de manter sua cota de mercado, enquanto assina acordos com Google, Microsoft e Amazon para que lhe forneçam serviços na nuvem. A soberania digital continua sendo um modelo de mercado neoliberal voraz, mas com leis de privacidade.
Assim, parece impossível deixar de depender da infraestrutura tecnológica dos Estados Unidos...
Sim, isso não vai mudar. É impossível porque a Europa não tem o investimento em pesquisa e desenvolvimento que tiveram os Estados Unidos, historicamente, após ter vencido duas guerras. Um Estado só pode ser empreendedor se tiver por trás um exército muito grande, que combateu em meio mundo e desenvolveu tecnologias para ganhar todas as batalhas. Cada empresa do Vale do Silício gasta cerca de 20 milhões por ano em Pesquisa e Desenvolvimento.
A Europa tem que entender que não pode competir, que perdeu a batalha da concorrência e que a única coisa que pode fazer é escapar do mercado e criar um modelo alternativo democrático que não passe apenas pelo mercado. É preciso criar infraestruturas públicas, como uma biblioteca alternativa ao Google, que em vez de rastrear e vender publicidade para você, permita que aprenda.
Mais do que criar essa alternativa, o complicado é que haja a vontade para criá-la.
A nível técnico e prático, o caminho agora é muito fácil para a Europa. Contudo, é preciso sair das ideias que, há séculos, aprisionam a União Europeia, que é a do mercado como única forma de solucionar os problemas.
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“As condições materiais dos millenials entraram em contradição com as relações de produção digital”. Entrevista com Ekaitz Cancela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU