15 Janeiro 2021
O filósofo analisa a relação entre liberdade de expressão e mídias sociais depois do bloqueio de Trump. “As mídias sociais estão na infosfera. São necessárias novas regras. Os Estados devem retomar a soberania digital.”
A reportagem é de Adele Sarno, publicada por L’HuffingtonPost.it, 13-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fato de que dois CEOs desconectaram as contas de Donald Trump no Twitter e no Facebook já é bem conhecido. O motivo também: durante o ataque ao Capitólio, o presidente em exercício, Trump, jogou lenha na fogueira, incitando seus partidários com uma série de tuítes, continuando a afirmar falsamente que as eleições haviam sido fraudadas.
Mark Zuckerberg e Jack Dorsey intervieram e tomaram a decisão que surpreendeu a todos: bloquear os perfis sociais do presidente. Essa operação das Big Techs abriu hoje o debate: um CEO pode decidir o que se pode fazer ou não nas redes sociais? Isso está certo ou errado? As redes sociais são um espaço privado, público ou privado com acesso público, como um ginásio de esportes, por exemplo? Twitter e Facebook fizeram certo ao fechar as contas de Trump?
Luciano Floridi é uma das vozes mais autorizadas da filosofia contemporânea. É professor titular de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, onde dirige o Digital Ethics Lab, foi presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute, o instituto britânico de ciência de dados e inteligência artificial. Floridi publicou “Il verde e il blu” [O verde e o azul] (Ed. Raffaelo Cortina). No livro, ele sugere uma série de boas ideias para gerir uma sociedade da informação madura. Há muitos anos, seus estudos investigam o mundo digital.
Por isso, pedimos a ele que nos explicasse como as redes sociais atuam na nossa vida e na nossa liberdade de expressão. E que desse um passo à frente e nos ajudasse a entender qual é a natureza delas.
“Essas plataformas têm um impacto muito profundo. A nossa vida hoje transcorre onlife (nem online nem offline), onde tudo está sempre conectado, dentro de um espaço digital e analógico, feito de comunicação e de relações, que pode ser chamado de infosfera. Essa infosfera é um lugar novo e se baseia na circulação das informações. Aqui, quem controla as informações tem as chaves de tudo. Por isso, são necessárias regras claras. Que não se deixem decisões tão fundamentais para as grandes empresas de Big Tech do Vale do Silício. Não acho de modo algum que elas façam um péssimo trabalho, mas certamente não é aquilo que esperávamos nos anos 1990.”
Professor Floridi, existe o público, o privado e o privado aberto ao público. O que são as redes sociais hoje? Tentar, de todos os modos, encaixá-las em uma dessas três categorias não corre o risco de ser uma forçação, que nos obriga, a todo o custo, a encaixar algo novo em velhas categorias? De que espaço estamos falando?
É uma das questões fundamentais que diz respeito ao mundo das redes sociais: perguntar-nos hoje qual é a ontologia desse espaço nos ajuda a escrever o capítulo dois da história. Digamos logo: esse espaço não é nem público nem privado, é a infosfera, um espaço relacional. Não é físico, não é virtual. Não é Netflix, não é um jogo. Essa infosfera é um lugar completamente novo, feito de regras e de protocolos que o definem. Por isso, deve ser gerido de forma inteligente.
Ajude-nos a entender melhor.
A analogia mais próxima é aquela com a “Tragedy of commons”, isto é, a “tragédia dos bens comuns”. Os commons não eram espaços nem públicos nem privados, mas um recurso coletivo e compartilhado, aonde os pastores levavam as suas ovelhas para pastar. Se cada pastor perseguir apenas o seu próprio interesse racional, no fim todos perdem, porque as ovelhas de cada pastor consumirão o máximo possível, sem levar em conta os custos coletivos, e, no fim, não haverá mais nada para nenhuma ovelha pastar. Por analogia, poderíamos falar de “commons digitais”. Se quem vive nesses espaços age apenas com base no próprio interesse pessoal, comportando-se de forma contrária ao bem comum de todos os usuários, então esse recurso se esgota.
No início dos anos 1990, havia grandes expectativas em relação àquilo que era então o ciberespaço: comunicação, transparência, envolvimento político, todos ingredientes bons que ainda estão por aí. Mas, depois, veio a web, a comercialização, o mercado, e começou a erosão desses commons, isto é, desses espaços comuns onde hoje nos confrontamos a golpes de aplicativos e contas.
Portanto, podemos dizer que as redes sociais fazem parte de um espaço novo que é a infosfera.
É um espaço que devemos aceitar que existe. É como se tivéssemos desembarcado em um continente novo e tivéssemos decidido entregá-lo nas mãos das empresas. Esses grandes poderes estão determinando o modo como percebemos o mundo e podemos interagir com ele. Por isso, é fundamental criar novas regras. A ontologia do espaço é o primeiro ponto fundamental. O segundo é o da confiança nas instituições que deveriam ir retomar a soberania digital no espaço relacional, ditando justamente as regras do jogo. Este é o segundo capítulo da história que estamos escrevendo. A questão não é tanto o Facebook ou o Twitter que banem o Trump de plantão, mas sim que a legislação europeia está chegando.
Em que ponto está a legislação europeia?
Para regulamentar essas plataformas, a Europa apresentou o Digital Service Act e o Digital Market Act nas últimas semanas, reivindicando uma liderança na adoção de leis que limitem fenômenos como a incitação ao ódio e ataques racistas online, incitação à violência, fake news e outros conteúdos ilegais. Melhor não deixar a mão livre para que uma nova oligarquia digital, as cúpulas das Big Techs, estabeleçam suas próprias regras de forma anárquica. Mas o que deve ser lido com atenção é o artigo 20. A abordagem parte novamente do regulamento GDPR (o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados Pessoais), um ponto fundamental: desvincula a legislação da localização. Em outras palavras, se o usuário for europeu, aplica-se a legislação europeia. Este é o século XXI: onde quer que você esteja, se os seus dados são europeus, aplicam-se as regras europeias.
Por que se fala de redes sociais e de leis precisamente agora?
Em todas as transformações históricas, identificamos o fato que representa um ponto de virada. O bloqueio das contas de Trump é a faísca, o momento de luz que fez com que, 30 anos após o nascimento da internet, todos se dessem conta, e não apenas o filósofo, de que quem faz as regras faz o jogo. O fato de Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Apple e as várias empresas digitais (pensemos na Amazon) gerirem aquilo que no passado se chamava de ciberespaço. O bloqueio das redes sociais de Trump é a tempestade perfeita. A questão fez tanto barulho porque quem foi silenciado foi o presidente dos Estados Unidos. Mas também porque ele foi silenciado no momento em que todos estavam online no Zoom, no WhatsApp, forçados pela pandemia a passar a própria vida online, na infosfera. Quando Trump foi apontado pelos fatos de Minneapolis, em maio passado, não se falou muito sobre isso, porque a opinião pública não tinha a maturidade para entender o que estava acontecendo. Paradoxalmente, deveríamos ser gratos a Trump. Se ele não tivesse pressionado tanto, não teria havido a ruptura, e não estaríamos hoje discutindo sobre como consertar tudo.
Os novos termos de serviço do WhatsApp também deve ser lido nessa chave?
É a mesma história. É o impulso dessas grandes empresas para a conquista desse espaço. A soberania digital é exercida de vários modos, na segurança, na saúde, no controle das fronteiras, na escola. Hoje todos esses papéis veem o digital na primeira fila. O digital está nas mãos das empresas, então podemos dizer que a soberania digital está nas mãos das Big Techs. E, para mantê-la, fazem o que podem.
Quais são as modalidades para pedir que Facebook, Twitter, Microsoft, Google façam um trabalho melhor?
É necessário um maior controle. E isso pode ser feito com quatro alavancas: a legislação, a autorregulamentação setorial, a pressão social da opinião pública e as regras de mercado, neste caso sobretudo com a concorrência. Temos que encher esses quatro copos. Hoje, só dois deles estão meio cheios. Ou seja, o da legislação europeia e o da opinião pública, que está começando a levantar o problema. A autorregulamentação é praticamente inexistente, e o mesmo vale para a concorrência. Nós, europeus, estamos agindo sobre a legislação de forma ótima. Os estadunidenses talvez não conseguirão fazer o mesmo, mas há sinais de mudança em relação à concorrência. Eu ficaria surpreso se não se chegasse a rever a lei antitruste.
Como a concorrência pode conter o poder do Twitter ou do Facebook?
Se eles tivessem concorrentes sérios, provavelmente agiriam de maneira diferente. Acredito que a legislação do antitruste estadunidense vai mudar: porque é o século XX, com base no valor econômico dos serviços, não social. A ideia é que, se duas empresas se unem e trazem uma vantagem para os clientes, tudo bem; se houver uma desvantagem, então não. É preciso um antitruste baseado no valor social capaz de avaliar o quanto a fusão entre duas empresas pode impactar a estabilidade da democracia ou o pluralismo da informação, por exemplo. No dia seguinte ao Facebook ser forçado a vender o WhatsApp, Zuckerberg terá que concorrer com uma empresa séria e, portanto, se comportar de forma diferente em relação a hoje.
Uma previsão para o futuro?
Vejo um potencial descolamento da Europa em relação aos Estados Unidos, Rússia e China. Temos uma legislação ótima sobre o GDPR. É preciso algo semelhante em relação ao 5G, à inteligência artificial e às mídias sociais. Assim que tivermos fechado o arco, a Europa será um lugar autônomo com uma abordagem mais democrática. Desvinculando a legislação do espaço físico, poderemos dizer a quem vende os produtos quais são as regras, reapropriando-nos assim da soberania digital da infosfera. Aquele espaço onlife, nem público nem privado, mas “commons”, em que vivemos.
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“Os Estados devem retomar a soberania digital.” Entrevista com Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU