09 Dezembro 2020
Ao imaginar um futuro próximo pós-pandemia, existem duas questões que dizem respeito ao modo de viver e de produzir riqueza no nosso planeta: a revolução digital, recentemente rebatizada de Transição 4.0, que já mudou as nossas vidas, e o New Green Deal, que promove um uso inteligente dos recursos, adotando modelos de economia circular a fim de garantir um sistema mais justo e inclusivo.
A entrevista é de Simone Intermite, publicada por DomaniPress, 02-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Esses dois objetivos, porém, não devem ser entendidos como realidades individuais. Pelo contrário, estamos assistindo a uma abordagem cada vez mais integrada entre as políticas mundiais e europeias, e os objetivos de desenvolvimento sustentável definidos no âmbito da Agenda 2030 das Nações Unidas.
Investir em tecnologias que respeitem o ambiente e favorecer um modo de vida juntos, centrado na qualidade das relações e dos processos, em vez do consumo e das coisas, é um dos novos focos que Luciano Floridi, uma das vozes mais autorizadas da filosofia contemporânea, professor de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford, fotografa através da combinação de duas cores que compõem o título do seu novo livro, publicado pela Raffaello Cortina Editore, “Il verde e il blu, idee ingenue per migliorare la politica” [O verde e o azul, ideias ingênuas para melhorar a política].
As ideias de Floridi são definidas como ingênuas no sentido positivo, pois reivindicam uma visão altruísta, cosmopolita e ambientalista do mundo. As mesmas que chamaram a atenção do público italiano que premiou o filósofo italiano, que primeiro falou em fake news com noites esgotadas no Teatro Parenti e referências aos seus neologismos que se tornaram virais, como infosfera, quarta revolução, hiper-história e onlife, que já entraram no uso linguístico cotidiano.
Nós, da DomaniPress, tivemos o prazer de acolher o Prof. Luciano Floridi na nossa sala virtual e de falar com ele sobre sustentabilidade, tecnologia, ciência e prerrogativas humanas utópicas e visionárias.
No seu último livro, “Il verde e il blu, idee ingenue per migliorare la politica”, traça-se uma união entre o verde do nosso ambiente e a revolução digital em curso. O digital e o Green Deal são dois conceitos que podem se comunicar?
Sim. Já tendo alguns cabelos brancos, há algum tempo eu me ocupo em aproximar esses dois elementos aparentemente distantes: o verde, que não é só o natural, mas também o urbano, social, da família, onde nós vivemos, o nosso habitat, e o azul do digital com a inteligência artificial, os bancos de dados e a telefonia móvel, só para citar alguns exemplos. São dois vasos comunicantes que podem nos ajudar a pensar em um futuro mais sustentável e que é hora de pensar como um unicum. Se tivermos uma visão “ambientalista” do digital, podemos entender as problemáticas do ambiente, desde a injustiça social do nosso pequeno centro urbano e familiar até o urgente aquecimento global e as mudanças climáticas. Estamos falando, no fundo, de duas faces da mesma moeda. O verde e o azul são dois componentes complementares.
Você acreditou na revolução digital e tem falado sobre a questão ambiental desde o início dos anos 1990, quando ainda não estava na moda...
Sim, já faz muito tempo que iniciei esse caminho, porque já nos anos 1980 eu tinha imaginado que a tecnologia seria a nossa aliada para a proteção do ambiente. Na década passada, pensava-se que o digital era duas coisas: instrumentação, ou seja, que servia para fazer algo, ou que era comunicação, ou seja, evolução da televisão, do rádio, da telefonia móvel e das mídias sociais. Não são linhas equivocadas, mas marginais.
A Transformação Digital, por outro lado, entrou com força nas nossas vidas, borrando as fronteiras entre o que é tangível e o que não é. Mas estamos perdendo alguma coisa nessa mudança?
O aspecto mais importante do digital que não deve ser subestimado é que ele representa um novo ambiente em que vivemos. Certamente, há a comunicação, os tools, a instrumentação, mas, acima de tudo, estamos nós e o nosso espaço dentro do qual desenvolvemos a nós mesmos, no qual é possível amadurecer as consciências.
Todo esse espaço também precisa de regras e de instrumentos para que se possa desenvolver uma proteção, assim como ocorre na vida offline...
Claro, é necessário também adotar medidas políticas para tornar esse espaço agradável e profícuo para o desenvolvimento, mas, se não for compreendido e continuarmos nos aproximando dele como se não tivéssemos entendido metade do problema, dificilmente poderemos captar todas as nuances dessa grande mudança.
Voltando à cor verde, qual você acha que poderia ser o papel das tecnologias digitais para alcançar os objetivos da sustentabilidade?
As tecnologias que terão maior impacto positivo sobre o ambiente serão compostas pela integração do big data e da inteligência artificial. Hoje, podemos dar um salto qualitativo, ou seja, fazer mudanças em termos de produção industrial e consumo, e, portanto, de capitalismo no sentido mais amplo do termo, porque o digital nos permite ter enormes quantidades de dados a serem explorados por meio de inteligência artificial.
A ideia é bastante simples de implementar, mas é o paradigma e o hábito que são difíceis de mudar. O velho modelo analógico da produção industrial considera o mundo como uma enorme reserva de recursos que podem ser utilizados de uma forma mais ou menos eficiente. É um ciclo em que simplesmente produzo, elimino os resíduos e recomeço. Imaginemos o petróleo... Os combustíveis fósseis tão caros aos processos industriais são o ponto de partida da economia linear para a produção. A digital não considera “o mundo” como um recurso e explora como matéria-prima os dados que nós produzimos e pode criar um produto finito partindo até mesmo de um resíduo.
Os efeitos decorrentes do empobrecimento dos recursos são devastadores, tanto para o ambiente quanto para as populações, em sua maioria indígenas, que vivem nos territórios mais ricos em matérias-primas... A economia circular poderá pôr fim ao esgotamento do nosso exuberante planeta para fins puramente comerciais?
Essa inversão de tendência – sendo positivo – já está acontecendo. Por exemplo, recentemente em novembro, uma empresa muito importante, por meio da utilização da tecnologia, anunciou que vai explorar o átomo de carbono no dióxido de carbono para produzir diamantes que, como sabemos, tem como base o carbono. No ano que vem, poderíamos comprar um diamante de dois quilates de uma indústria que consome o equivalente a sete anos do impacto ambiental de um indivíduo na Itália. Imagine um indivíduo de 30 anos, com expectativa de 70 anos de vida, que decide comprar sete diamantes: o seu impacto ambiental seria reembolsado.
Tudo isso é mérito da tecnologia... Mas será que tudo isso estará ao alcance de todos? Podemos pensar em uma economia verde de massa?
Não sei quanto vão custar esses diamantes, mas o que é que permite essa transformação do dióxido de carbono que nós achamos que é um mero resíduo e que não sabemos onde eliminar? As novas tecnologias integradas com a inteligência artificial. Outro exemplo poderia ser o do setor têxtil: hoje, podemos produzir produtos semelhantes ao couro utilizando a casca das maçãs. É por isso que precisamos de inovação, inteligência e muita tecnologia. Existem milhares desses exemplos. Por meio da exploração dos dados e da inteligência artificial, nós conseguiremos produzir mais, desperdiçando menos recursos. Pensemos na revolução que foram as LEDs alguns anos atrás. Se eu usasse velas, deveria ter pelo menos 200 delas ao meu redor para iluminar uma sala. Este é o mundo do século XXI, onde é preciso continuar investindo.
A revolução digital reontologizou a nossa realidade, modificando-a profundamente. Em um futuro não muito distante, a inteligência artificial nos imporá uma reflexão atenta sobre os seus usos éticos. A propósito do emprego, a robótica, a inteligência artificial e a digitalização ainda despertam algumas preocupações. O que você acha?
Como você aponta, há limites que não deveriam ser ultrapassados, mas não devemos nos deixar intimidar. Em grande parte, os dados que nós utilizamos não são pessoais. A indústria automotiva, por exemplo, utiliza a inteligência artificial, a robótica e aprendizado de máquina [machine learning] com dados funcionais e não pessoais, e isso também ocorre na indústria do descarte dos resíduos. Mas há muitas áreas, como a médica, em que precisamos explorar os dados pessoais. Obviamente, quando se tratam essas informações, é bom lembrar que elas são protegidas pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Existem parâmetros, vínculos e limites que nos garantem onde deve valer o anonimato, a possibilidade de desanonimizar, as finalidades de utilização dos dados. E, se houver uma extensão ilegal do motivo pelo qual os dados foram coletados, pode haver penalidades até mesmo graves.
Vou dar um exemplo em relação ao mundo dos dados: se olharmos para as análises do compartilhamento dos dados, o que vem à tona é que, se perguntarmos às mulheres com câncer de mama se podemos usar os seus dados para tratar outras mulheres com a mesma doença, poderíamos registrar uma boa resposta à pergunta. Se, em vez disso, perguntássemos: “Podemos utilizá-los para o câncer em geral?”, o consenso diminuiria, em geral. Se, por outro lado, disséssemos: “Podemos utilizá-los?”, a resposta seria: “Não, porque eu não sei a motivação”. A pessoa se sente mais próxima em quem compartilha o mesmo problema, e isso poderia dar um valor diferente à dor e ao sacrifício. Há também razões humanas e psicológicas que explicam isso. Quanto mais a motivação se afasta da nossa vontade, menos somos levados a compartilhar. Há vínculos não só éticos, mas também legais muito fortes, e eles se tornarão cada vez mais fortes. Na Europa, estamos muito atentos a esse aspecto.
Permanecendo no nível ético, o aprendizado de máquina, por meio da elaboração de parâmetros biométricos, poderá se tornar um substituto das relações humanas?
Essa é uma boa pergunta. Eu acho que as instrumentalizações negativas da inteligência artificial poderão exacerbar ou extremizar tendências já presentes. Se eu sou uma pessoa sociável, eu continuo assim; se sou tímida, tendo a brincar com a inteligência artificial em vez de com outras pessoas. Tenho a impressão de que há uma tendência à polarização, à extremização de algo já presente. Se o tipo de extremização que poderia ocorrer pode se tornar um perigo, poderíamos acrescentar algo mais em termos de educação. Em 2018, a União Europeia já havia publicado as suas diretrizes para garantir uma abordagem ética à inteligência artificial. A iniciativa foi lançada com a criação de um grupo de trabalho e com uma consulta pública, da qual também participaram os cidadãos, além de pesquisadores e instituições.
Hoje o debate ainda está aberto...
Claro, pensemos nos sistemas de inteligência artificial para os “recommended systems”, aqueles que o aconselham sobre filmes ou compras. Eles são úteis, mas queremos impor um limite? Queremos disponibilizá-lo para qualquer idade? Até hoje, também existem perfis destinados a menores. Acredito que deve haver momentos de proteção e que eles deveriam ser exercidos, assim como ocorre com a pornografia. Poderíamos também precisar de medidas semelhantes para outras utilizações do digital que consideramos como não adequadas para o desenvolvimento do indivíduo, mas avaliaremos isso ao longo do tempo.
Existe algum país que, a esse respeito, está se adequando melhor do que outros e que poderia ser um farol, ou estamos todos no mesmo nível?
Se há um ponto de orientação, um farol, é a União Europeia, mesmo que os países dentro dela variem muito, razão pela qual é difícil escolher o melhor. Há quem se saia melhor na proteção dos dados, mas depois faz demais na proteção dos direitos autorais, como a Alemanha. A legislação alemã é muito mais presente no bloqueio dos direitos autorais, talvez exagerando. Mas, por outro lado, é muito firme, no bom sentido, na proteção dos dados pessoais. As questões éticas digitais são muitos capítulos de um grande livro. Para mim, é mais simples dar uma resposta em termos do sistema europeu, até porque é a legislação europeia que faz a diferença. Na União Europeia, estamos em melhor posição para a discussão sobre os dados pessoais: ensinamos ao mundo como fazê-lo bem, e, na minha opinião, ainda hoje estamos chegando antes da China e dos Estados Unidos na questão da inteligência artificial. Poderíamos literalmente ter um EUA muito diferente em questão de dias, por causa da eleição de Biden-Harris. Se eles decidirem levar a questão a sério, poderiam se recuperar rapidamente. Imaginemos se o novo governo decidisse levar a sério a questão do antitruste e decidisse que o Facebook deve vender o WhatsApp e que o Google deve vender o YouTube: seria um mundo diferente, você não acha?
No livro, você fala de “100 ideias ingênuas”... A política pode ser uma delas?
A política deveria voltar a ser. Esse aspecto é importante, porque a engenhosidade de que eu falo no livro é de retorno, não de partida.
E qual é a diferença?
A ingenuidade de partida pertence a quem cria ilusões, é típica de quem observa tudo superficialmente e faz perguntas simples e básicas. Ao invés disso, a de retorno se adquire com muito esforço, estudando, pensando, debatendo, ouvindo outras pessoas e fazendo as perguntas fundamental a partir de uma perspectiva e com uma riqueza bem diferentes. Tomemos Ulisses antes e depois de Troia, por exemplo: ele parte e volta para Ítaca, mas não é o mesmo homem. Poder voltar a fazer política a sério, pensando que é um instrumento de uso e consumo da sociedade em longo prazo, e não um meio para ser reeleito. Ela deveria ser clarividente, competente e altruísta. Prefiro ser considerado ingênuo de retorno do que espertalhão.
Você também está se engajando ativamente na política, ao lado de Marco Bentivogli no movimento “Base”. Quais são os seus objetivos?
Estamos nos organizando e ainda estamos em diálogo para a identificação mais precisa das ideias e da agenda. Pessoalmente, não gostaria de falar como presidente da associação, mas sim como Luciano Floridi. Gostaria de tentar impulsionar a política para uma visão competente, clarividente e altruísta, e trabalhar pela sociedade em longo prazo, partindo de baixo, pensando em um planejamento local que, de forma reticular, se transforme em sistema, não de forma mecanicista, mas com muitos nós que podem criar uma rede robusta, concreta e real que parte dos problemas vividos pela pequena localidade da província até a grande metrópole. Todos problemas muito diferentes: porém, é preciso partir de uma localização que forme rede, caso contrário o local não ultrapassa o limiar da diferença.
Se você empurra o carro que não pega, depois volta para casa, então venho eu para empurrá-lo, e depois outra pessoa, o carro nunca conseguirá se mover. Devemos ir todos juntos na mesma direção para empurrá-lo. Existe um limiar abaixo do qual o esforço individual é zero. É isto, na minha opinião, que devemos fazer: unir os esforços para fazer a diferença. Na minha opinião, isso pode ser feito porque há muita boa vontade, capacidade e prática que não estamos transformando em sistema. Pelo contrário, as pessoas se desligaram da política e não se interessam mais em participar.
Na sua opinião, a política deveria voltar a sair para as ruas ou é possível agir – retomando o seu neologismo – “onlife”?
Tem de ser feito nos dois modos e do melhor modo possível. É possível se organizar, ver-se nas ruas, para depois se reencontrar novamente online: é o online que derruba o muro entre o digital e o analógico.
Em um artigo recente, você examinou as campanhas eleitorais nas redes sociais e as preferências populistas do eleitorado…
Para mim, a política online é aquela que é necessária hoje, porque é preciso falar um pouco para a barriga. Eu não sou tão intelectualoide a ponto de achar que só se deve falar para o cérebro. É preciso falar para o todo. Quando eu era jovem, havia uma séria inflação que era entendida como o bicho-papão, tinha que ser derrubada. Hoje, sabemos que um pouco de inflação faz bem ao sistema, assim como o colesterol bom ou um pouco de sal ou um copo de vinho, mas é preciso cuidar para não exagerar. Um pouco de populismo faz bem ao sistema, porque é esse pouco que faz você dizer que eu estou ouvindo aquilo que você está gritando nas ruas: “Não aguento mais!”. Isso não é populismo, é também ouvir as pessoas. Eu não gosto de ouvir discursos em preto e branco, intelectualoides, quebra-cabeças sofisticadíssimos que fazem você voltar a uma política de cima para baixo. Entender onde dói é a primeira tarefa do médico. Também é preciso ouvir a barriga. Se 2% de inflação são necessários, 2% de populismo também fazem bem ao sistema.
Tudo o que conhecemos como tradição, antes de existir, era a inovação de muitos anos atrás. Mas, apesar de tudo, a nostalgia do passado é inerente à natureza humana. Do que você sente nostalgia?
Pessoalmente, sinto falta da enorme flexibilidade de tempo que eu tinha quando era mais jovem. Você também deve ter notado que a sua agenda, com o passar do tempo, se torna cada vez mais estreita e vinculante. Tudo isso não é culpa das tecnologias, mas faz parte da existência humana: se você tem sucesso e tem interesses, o tempo fica cada vez mais vinculante. Se você tivesse a varinha mágica, pediria para ter um tempo mais flexível. Falta a flexibilidade para dizer: “Hoje eu faço isto e não aquilo”. Quando eu era jovem estudante ou pesquisador, com medo de ficar desempregado, tinha a flexibilidade de ficar uma semana estudando um problema, se eu quisesse. Hoje eu tenho que pular as barras. Como eu digo aos meus estudantes, conforme você envelhece, é preciso manter os olhos na bola, sempre. Há quem se perca, e quem, em certo ponto, começa a girar ao seu redor. É um esforço, porque, aos poucos, as exigências arrastam você a fazer coisas, a voltar para aquele artigo que você está estudando, para aquele problema que está lendo. É preciso muita força de determinação, senão o mundo lhe arrasta.
Como última pergunta, parafraseando o título da nossa revista, perguntamos: como Luciano Floridi vê o “Amanhã”? Quais são as suas esperanças e os seus medos?
Seja qual for a perspectiva a partir da qual se queira ver, espero que o amanhã seja “preenchível”. Não me interessa se o copo vai ficar meio cheio ou meio vazio. Eu só espero que o futuro seja sempre um recipiente a encher.
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Utopias inteligentes: “A tecnologia pode nos fazer imaginar um mundo mais sustentável e ético”. Entrevista com Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU