10 Novembro 2020
"Esta relacionalidade do tempo, das relações humanas, da solidariedade entre nós, da caridade entre nós, permeia toda a encíclica e creio que seja uma chave de leitura fundamental. Basta notar que, entre as afirmações mais incisivas, apenas uma ocorre duas vezes: 'ninguém se salva sozinho' (Fratelli Tutti, 32, 54 e novamente 137 'ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém'). Ninguém pode abraçar-se sozinho. O abraço só é possível se houver uma separação reintegrada com o outro, na qual as identidades se unem, mas não se anulam. Portanto, abraçar o outro é também a única maneira de abraçar a nós mesmos. Sartre estava errado: o inferno não é o outro, é a ausência do outro (Fratelli Tutti, 150), porque nos salvamos apenas salvando o outro", escreve Luciano Floridi, professor titular de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford, diretor do Digital Ethics Lab do Oxford Internet Institute, também na Universidade de Oxford, é Turing Fellow e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 07-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entramos no século XXI com uma laceração trágica, a pandemia. Nos livros de história, esse será o divisor de águas com o século XX, assim como a primeira guerra mundial marcou o final do século XIX. O desastre climático, a injustiça social, o fim das ideologias, a crise da democracia, as regurgitações fascistas, o terrorismo fundamentalista, o problema da imigração, a crise do modelo capitalista neoliberal são transformações da longa história. Mas a pandemia as saldou juntas com outras em uma única onda global, sincronizada e violenta, tornando o final do século XX uma experiência planetária comum e compartilhada.
É o clássico pente da história a que finalmente chegam os muitos nós preexistentes. Tendo se recusado por anos a desatá-los; tendo preferido contentar-se em prosseguir olhando pelo retrovisor (basta pensar no belo projeto europeu, não mais apresentável apenas como um sucesso de paz pós-bélica); e tendo muitas vezes apenas a timidez de operações de pequenas adaptações, ou a ilusão de operações anacrônicas (ver o Brexit), nos encontramos agora jogados em uma época estranha, desorientados como náufragos em uma ilha que não reconhecemos. O risco de fazer a coisa errada é enorme, basta pensar nos horrores após a Primeira Guerra Mundial.
Compreender antes de agir é, portanto, vital, mas compreender sem depois agir de acordo com isso será um suicídio. Para isso, precisamos de mais filosofia, mais inteligência, mais coragem, mais capacidade de liderança e realização, mais Política (a maiúscula é fundamental). É nesta perspectiva que li a encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti. “A história dá sinais de regressão” (11) e o texto oferece muitas reflexões para evitar essa armadilha, para compreender e agir melhor, em um período de profundas incertezas e transformações.
A encíclica possui uma enorme riqueza conceitual, em termos de análise, e moral, em termos de sugestões. Não o digo como crente, mas como agnóstico, mesmo na esperança de estar entre aqueles que às vezes "[...] podem viver a vontade de Deus melhor do que os crentes" (74). Muitas vezes, durante sua leitura, aconteceu-me de ressaltar mentalmente “bravo! Mas sim, é isso! " (no diálogo interior também se usa o tu para o Papa).
Aqui estão alguns exemplos. O mal não é erradicado para sempre, é derrotado a cada oportunidade de novo (11), com tenacidade. Acrescento: por isso a partida moral se ganha marcando mais gols (coisas bem feitas) do que aqueles que se sofrem (erros cometidos). Nem mesmo São Francisco ganhou por 1-0. O crescimento econômico não é o desenvolvimento humano, que deve orientá-lo (21). Para isso devemos mudar tanto o capitalismo - que deve passar tanto do consumo (13) ao cuidado (17) do mundo e da humanidade - quanto da política, que deve passar do interesse individualista à participação coletiva e à esperança comum, por meio da "caridade política" (190). O pior que pode acontecer é perder também o senso de vergonha por ter agido mal (45). Por isso, o desejo é receber "a graça de nos vergonharmos daquilo que, como homens, fomos capazes de fazer" (247, a referência é ao Holocausto). Poderia continuar, mas prefiro oferecer uma chave interpretativa que me pareceu filosoficamente proveitosa e rica, aquela do tempo.
A encíclica começa falando sobre o espaço, das fronteiras que dividem, dos muros e as barreiras que separam. Mas logo fica claro que o tempo é a variável mais importante, como indicam as numerosas referências à parábola do samaritano. A história é bem conhecida. (63) Tal como acontece com a encíclica, aparentemente parece uma questão de espaço geométrico: a linha da viagem do judeu se cruza, para seu azar, com a linha dos salteadores que o atacam em determinado ponto, depois, há as linhas paralelas do sacerdote e do levita, e aquela do samaritano, que em vez disso, se interrompe no mesmo ponto e o ajuda, depois a linha que se conecta a outro ponto, a do dono da estalagem que o hospeda, e finalmente novamente a linha da viagem do samaritano que recomeça, mas pretende regressar. Sempre li a parábola de forma geométrica.
Mas compreendi, lendo a encíclica, que se trata de uma parábola sobre o tempo: “Sobretudo [o samaritano] [ao judeu] deu-lhe algo que neste mundo apressado regateamos tanto: deu-lhe o seu tempo. [...] sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo” (63). Mesmo valorizando o próprio tempo (ele é um homem de negócios), o samaritano parou. E assim construiu uma nova história, de atenção e cuidado, ao longo do tempo, encontrando tempo para o sofredor e doando-o gratuitamente (139) e às suas custas, não só porque tempo é dinheiro, mas também porque é ele quem paga o dono da estalagem, de imediato e com uma promessa futura, no tempo.
O inglês tem uma maneira muito bonita de dizer que sempre se encontra tempo para o que é importante: to make time “fazer tempo”. O samaritano makes time para o sofredor. E este "fazer tempo" para o outro significa enriquecer-se ao mesmo tempo, porque doar o próprio tempo também significa doá-lo a si mesmo. Sem o outro para recebê-lo, o doador não poderia make time para si mesmo. Esta relacionalidade do tempo, das relações humanas, da solidariedade entre nós, da caridade entre nós, permeia toda a encíclica e creio que seja uma chave de leitura fundamental.
Basta notar que, entre as afirmações mais incisivas, apenas uma ocorre duas vezes: "ninguém se salva sozinho" "(Fratelli Tutti, 32, 54 e novamente 137 "ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém"). Ninguém pode abraçar-se sozinho. O abraço só é possível se houver uma separação reintegrada com o outro, na qual as identidades se unem, mas não se anulam. Portanto, abraçar o outro é também a única maneira de abraçar a nós mesmos. Sartre estava errado: o inferno não é o outro, é a ausência do outro (Fratelli Tutti, 150), porque nos salvamos apenas salvando o outro. Para isso, devemos estar próximos uns dos outros, como insiste a encíclica (Fratelli Tutti, 80-81). Hoje é mais fácil, porque na infosfera cada um de nós está a apenas um passo de distância do outro.
O oposto de parar e "fazer tempo" é a "concupiscência": a inclinação do ser humano a se fechar na imanência do próprio eu" (Fratelli Tutti, 166). É a incoerência de acreditar que podemos viver como se fôssemos linhas paralelas sem o plano a que pertencemos, nós sem a rede que nos constitui. É a rejeição da relacionalidade. O fechamento na imanência é o espaço superficial e claustrofóbico de quem não para e não "faz tempo" para poder receber tempo, de quem não salvando não se salva.
A solução contra a concupiscência é, portanto, abrir a imanência do próprio eu, forçá-la a se abrir à esperança (pelo menos para este agnóstico), se não à fé (para o crente) na transcendência. Se isso pode ser uma "transcendência laica" permanece a pergunta em aberto para o agnóstico, mas independentemente de ser laica ou religiosa, é uma abertura que envolve custos, como a parada do samaritano, e é uma abertura que podemos compartilhar com todos, porque é tornada possível pelo reconhecimento universal da dignidade humana (Fratelli Tutti, 213-214), que transcende o tempo da história e, portanto, deixa a imanência do próprio eu sempre entreaberta, como uma porta que permite um vislumbre da luz.
No final da leitura me perguntei: mas depois o que aconteceu com o samaritano? Sabemos que partiu novamente. Ele estava ocupado. Ele estava planejando voltar. A encíclica me fez pensar que ele continuou sua viagem com um sorriso. Porque, em retrospecto, ele deve ao sofredor saber agora quem ele é. Ao responder à pergunta colocada pela dignidade humana do sofredor (Fratelli Tutti, 218), ele também obteve a resposta à pergunta da sua própria dignidade humana como pessoa caritativa e gentil (Fratelli Tutti, 222-224). Foi preciso ter força para parar para entender quem ele era e não ter vergonha. No final das contas foi o melhor investimento possível de seu tempo.
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Uma parada para “fazer tempo”. Artigo de Luciano Floridi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU