06 Março 2020
"Oxalá a Campanha da Fraternidade de 2020, na sua 56ª edição, nos ajude a perceber que há muitos padres, pastores e leigos assumindo, na condução de igrejas, postura de Sacerdote e Levita: insensíveis aos clamores do povo injustiçado do nosso querido Brasil", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
O tema da Campanha da Fraternidade 2020 – Fraternidade e Vida, Dom e Compromisso – e o Lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34) nos convidam a pensar e a agir tendo o “bom” samaritano como exemplo, conforme o episódio-parábola do “Bom” Samaritano (Lc 10,25-37), que apresenta um contexto histórico com muitas semelhanças com o contexto atual e demonstra como o samaritano conseguiu manter o coração aberto e mãos solidárias a partir de quem estava, segundo Teresinha de Jesus, “metade vivo, metade morto”.
O início da vida pública de Jesus Cristo foi marcado por uma grande e crescente receptividade do seu projeto (Ensinamento e Práxis) pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a todos. “As multidões acorriam para Jesus” (Lc 6,17-19), mas pouco a pouco Jesus foi aprofundando sua postura e radicalizando sua Opção pelos Pobres, marginalizados e excluídos da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com “gregos e troianos” - era de “paz e amor” - durou pouco. Começaram a surgir conflitos com poderosos (Lc 13,31), pois sua prática incomodava os interesses dos que viviam explorando e escravizando o povo. Jesus descobriu que precisava formar melhor seus discípulos e discípulas, pois viu que a adesão popular inicial era ‘fogo de palha’ e ‘oba oba’. Com o avanço da missão pública de Jesus, os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião foram aumentando gradativamente. Em seus últimos dias, os embates[1] de Jesus com as autoridades judaicas e grupos religioso-políticos renomados se intensificaram (Cf. PALLARES, 1994, p. 117).
Quem eram os samaritanos para os judeus e vice-versa? Por razões históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio. Alguns motivos aparecem na Bíblia ao falar da infidelidade religiosa. Por exemplo, samaritanos fazem resistência à reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do exílio babilônico (Cf. 2Rs 17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclesiástico 50,25-26, os samaritanos são considerados “um povo estúpido”. Talvez Eclo 50,25-26 tenha influenciado o Evangelho de João (Jo 4,9), onde diz que os samaritanos não se davam bem com os judeus e Jo 8,48, onde os judeus acusam Jesus de ser samaritano e, portanto, endemoniado. Uma interpretação rabínica de Êxodo 21,14 diz expressamente que os samaritanos não são “próximos”. “Do lado judeu, a hostilidade era tão grande que nas sinagogas os samaritanos eram frequentemente malditos; os judeus rezavam a Deus para não dar a eles nenhuma parte na vida eterna, recusavam um testemunho feito por um samaritano, não aceitavam nenhum serviço deles” (FEUILLET, 1980, p. 345).
“As relações entre os judeus e os mestiços samaritanos, que estiveram submetidas às mais diversas oscilações, tinham experimentado nos tempos de Jesus especial agravamento, depois que os samaritanos, entre os anos 6 e 9 da Era Cristã, em Jerusalém, durante uma festa da Páscoa, por volta da meia noite, tornaram a praça do Templo impura, esparramando aí ossadas humanas; reinava de ambas as partes ódio irreconciliável. Vê se então claramente que Jesus e o Evangelho de Lucas escolhem exemplos extremos” (JEREMIAS, 1976, p. 203). Segundo o historiador do primeiro século, Flávio Josefo, “os samaritanos armaram emboscadas para peregrinos que vinham às festas judaicas e o procurador Cumanus, subornado pelos samaritanos, não interveio. Assim judeus atacaram vilas samaritanas e massacraram seus habitantes” (GIUSEPPE, 1904, XX. 5,4).
Muitos acontecimentos contribuíram para piorar as relações entre samaritanos e judeus, tais como, a construção de um templo samaritano sobre o Monte Garizin no 4º século antes da Era Cristã, e que foi destruído pelos judeus sob o reinado de João Hircano em 129 antes da Era Cristã. O Monte Garizin tem quase 3 mil metros de altitude e é muito mais imponente do que o Monte Sion, onde foi construído o templo de Jerusalém. A própria questão geográfica pode ter gerado ciúmes e críticas entre judeus e samaritanos. Também azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização do Pentateuco Samaritano na segunda metade do 2º século antes da Era Cristã. O texto sagrado para os samaritanos se reduz ao Pentateuco (Torá), os cinco primeiros livros da Bíblia, com algumas diferenças do Pentateuco judeu-cristão. Os samaritanos recusam os demais livros da Bíblia como textos inspirados.
Esse "ódio irreconciliável" entre judeus e samaritanos foi cultivado por quase mil anos de história. É possível que tenha se iniciado após a morte do rei Davi, com a separação dos Reinos do Norte e do Sul, em 931 antes da Era Cristã, quando Roboão se tornou rei em Judá, com “duas” tribos, no sul, e Jeroboão se impôs como rei em Israel, nas “dez” tribos do norte. Esta separação foi forçada e violenta e certamente deixou muitas feridas (Cf. 1Rs 11,26-12,33). Em 722 antes da Era Cristã, o povo do Reino do Norte foi exilado para a Assíria. É provável que os judeus "sulistas" tenham cantado vitória dizendo: foram exilados, porque eram infiéis à Aliança e idólatras. A Assíria "repovoou" o norte da Palestina com pessoas das mais diversas etnias. No coração dos samaritanos nortistas pode ter ficado ressentimento. A vez dos judeus "sulistas" chegou entre 597 e 587 antes da Era Cristã, quando, após vários exílios, foram exilados para a Babilônia. Os judeus do sul sentiram na pele aquilo que já tinha se passado com os "irmãos" do norte. Depois vieram as diversas tentativas de retorno para a Palestina, terra da promessa de Javé aos povos escravizados. A volta do exílio e o processo de reconstrução foram muito complicados, porque havia resistência dos judeus e samaritanos quanto à fixação novamente na terra. É a partir desta história que se entendem os diversos atritos e agressões que se sucederam entre judeus e samaritanos.
Nos tempos do rei Herodes houve um grande crescimento econômico, à custa de uma tremenda injustiça social. Muitas terras de judeus foram expropriadas no norte da Palestina, o que gerou uma massa de desempregados urbanos no sul, com consequentes distúrbios sociais inseridos em um contexto propício para a disseminação de insegurança social.
O Samaritano apontado pela Campanha da Fraternidade de 2020 como modelo/exemplo a ser seguido era: um personagem anônimo; identificado pelo seu país de origem; estrangeiro; impuro e herege, segundo os judeus. “Está em viagem”, no mesmo movimento que o Sacerdote e o Levita; não se sabe se ele ia ou vinha de Jerusalém e este detalhe é importante: tanto o assaltado, quanto o sacerdote e o levita viajavam no mesmo sentido, de Jerusalém para Jericó, mas é possível que o samaritano estivesse viajando na direção contrária. Isto pode significar que o samaritano tinha suas responsabilidades pessoais; estava "em viagem" (de Jerusalém a Jericó?) trabalhando. Enquanto isso, o sacerdote e o levita estavam voltando de seu turno de trabalho no templo, em Jerusalém, e esta circunstância lhes daria maior disponibilidade de tempo.
Oxalá a Campanha da Fraternidade de 2020, na sua 56ª edição, nos ajude a perceber que há muitos padres, pastores e leigos assumindo, na condução de igrejas, postura de Sacerdote e Levita: insensíveis aos clamores do povo injustiçado do nosso querido Brasil. Muitas vezes, com espiritualismos, puritanismos, vida cômoda e amputando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo, esses falsos pastores ficam só na “toca” dos templos religiosos e se fazem de cegos diante dos clamores dos crucificados dos nossos dramáticos dias. Entretanto, existem, graças a Deus, muitas pessoas que são consideradas ‘impuras’, ‘hereges’, ‘de fora’ dos templos, ‘comunistas’ ... que, na prática, estão sendo solidárias assim como foi o “bom” samaritano. Ah! O samaritano não fez solidariedade ingênua, assistencialista que gera dependência. O samaritano foi também profeta, pois exercitou um tipo de solidariedade que deixou brasas sobre a cabeça do sacerdote, do levita, do escriba (doutor da lei = teólogo) e, provavelmente dos podres poderes políticos, econômicos e religiosos da época.
Referências:
FEUILLET, A. “Le bom Samaritain (Luc 10,25-37). Sa signification christologique et l’universalisme de Jésus,” EspVie 90 (1980), p. 345.
GIUSEPPE, F. Antiquités Judaiques. Paris, 1904, XX. 5,4.
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976.
PALLARES, J. C. Dios es Puro Corazón, la misericordia de Dios en San Lucas. Messico, 1994.
Obs.: Os vídeos abaixo ilustram o assunto tratado acima.
1 – Sr. Joel Pereira Gonçalves, 100 anos nas ruas de Belo Horizonte/MG, bom samaritano. 20/4/17
2 – Palavra Ética na TVC/BH: Fernando de Gois, bom samaritano da Chacará 4 pinheiros/trecheiro. 20/06/16
3 – Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças a adultos na rua. (1a parte). 06/16/16
4 – Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças a adultos na rua (2a parte). 14/06/16
5 – Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças a adultos na rua (3a parte). 14/06/16
6 – Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças a adultos na rua (4a parte). 14/06/16
7 – Fernando de Góis: de frei a Bom Samaritano de crianças a adultos na rua (5a parte) 14/06/16
Nota:
[1] Como por exemplo: Lc 19,45-46; 20,9-26; 21,1-4; 22,2.52; todo o capítulo 23.
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“Bom” samaritano: “impuro” e “odiado” como exemplo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU