24 Abril 2023
É preciso cautela: se empregada de forma alienada, ela pode ampliar nossa dependência. A questão é como adotar este e outros avanços tecnocientíficos – aos quais nunca se dá usos democráticos, por interesses bastante conhecidas.
O artigo é de Jefferson Adriano Maier, doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental e colaborador da Rede BrCidades, publicado por Outras Palavras, 18-04-2023.
A ascensão das Inteligências Artificiais (IAs) nos parece incontornável. Ao mesmo tempo em que surgem inúmeras discussões sobre suas potenciais aplicações – que não são nem um pouco modestas ou descartáveis – sobre seus perigos e armadilhas, limitações de software e processamento, empresas já redirecionam seus investimentos, pulando dos barcos furados do Metaverso para os bote salva-vidas das novas inteligências.
Somado a isso, inúmeros discursos divulgam as IAs – para o bem ou para o mal – formando tantas narrativas que é como se elas já estivessem à nossa volta há muito tempo. Os debates vão desde questões éticas e de regulação que podemos e devemos fazer, passando por questões como as maneira como deveriam ser as redes sociais, pelo debate sobre a comunicação em si, por questões (também éticas) sobre como as empresas capturam dados que já estão disponíveis na web – e que podem estar protegidos por direitos autorais – para os seus treinamentos de máquina e chegam a um alarmismo quase justificado sobre qual será o futuro das profissões a partir da generalização das novas técnicas, se iremos perder postos de trabalhos, se as IAs gerarão mais postos de baixa qualificação, ou se as habilidades humanas, sobretudo as criativas, serão alçadas ao estado de arte e sobrevalorizadas.
Para limpar o campo, é preciso considerar que o avanço da computação e dos processos cibernéticos na produção se deu, pelo menos no mundo capitalista, voltado prioritariamente para uma lógica de controle e gestão, ou seja, os avanços técnicos foram sendo incorporados nos setores de produção científica e serviços, como contabilidade, estatística censitária, bancos, entre outros, para depois serem generalizados na produção em si. E isso acontecia sempre com ressalvas, pois a generalização de uma tecnologia que aumentava a produtividade era acompanhada de uma diminuição da mais-valia [1].
Entender isso nos faz compreender duas questões iniciais: primeiro, que a transformação de trabalhos altamente especializados não é uma novidade propriamente dita, afinal ninguém voltaria a fazer cálculos complexos sem a ajuda de uma máquina calculadora, ou tabelas sem Excel/Calc, e ferramenta BI. Inclusive, há de se pensar que diversos ramos da ciência nem existiriam sem algum grau de automação, por exemplo, não seria possível que seres humanos operassem certos pontos de reatores nucleares para a produção de energia.
Segundo, que o alarmismo em torno do futuro da humanidade, divulgado por carta assinada por grandes empresas e figurões como Elon Musk (pedindo pausa nas pesquisas em IA [2]), não passa de chantagem para correr atrás do monopólio e recuperar investimentos a partir de uma mais-valia extraordinária produzida por estar na ponta da novíssima tecnologia. Afinal, lucrará primeiro quem tiver o melhor algoritmo patenteado para si e, quando a tecnologia se generalizar no mercado, a tendência é o lucro diminuir ao longo do tempo.
É preciso também ter em mente que a produção e refinamento de algoritmos, fontes de dados e imagens também se dará respeitando as tendências gerais do desenvolvimento tecnológico no mundo capitalista. Por mais que a OpenAI, criadora do ChatGPT, seja uma empresa relativamente nova, o seu modelo é o mesmo de sempre, que não é nada novo, muito menos open de fato [3].
Isso nos leva a pensar onde e como incorporar as IAs. E digo incorporar não em um sentido fatalista de que não há como evitá-las – provavelmente, elas serão “evitadas” por muita gente por questões materiais, assim com o acesso e uso pleno da internet já o é por aqueles que não possuem condições para acessá-lo [4] por diversos motivos –, mas porque precisamos pensar em um uso inteligente das técnicas adaptadas às nossas necessidades específicas da América Latina.
Ou seja, é claro que o avanço das IAs na identificação de doenças por imagens é incrível, mas como ele será utilizado em regiões com poucos médicos, ou cobertura do SUS? Também não adiantará nada uma IA focada em identificar vazamentos de tubulações, se a lógica brasileira seguir sendo a privatização dos serviços de água, por exemplo. Ao mesmo tempo, já existem cálculos sofisticadíssimos no planejamento urbano que nos permitem apontar a melhor localização para serviços públicos considerando largura de vias, tráfego, número de habitantes e N variáveis, mas, mesmo assim, o desenvolvimento das cidades brasileiras segue sendo definido pela especulação imobiliária, sem participação popular, causando ainda mais problemas urbanos e ambientais.
A questão da incorporação das IAs em nosso país passa menos por adaptar a nossa realidade social às IAs, e mais sobre o uso que faremos dela e também das outras técnicas e ciência já produzida. No fim, sobram falsas polêmicas enquanto inovamos pouco na questão central: os problemas ditos técnicos/científicos continuam a ser também problemas políticos. As IAs talvez inovem na atualização da nossa dependência, que além de tecnológica e cultural também será aprofundada em torno dos algoritmos e códigos cada vez mais fechados.
Repensar o uso das técnicas implica tanto em reavaliar a corrida das compras públicas em busca da última moda que acontecem em diversos órgãos, mas também em pensar no tipo de publicações e ciências que faremos sobre Inteligência Artificial e temas correlatos. Adiantará pouco para o Brasil formar profissionais sem um projeto de incorporação destes na produção, e publicar artigos que só passarão da ciência básica para a aplicada em países do centro capitalista e que encontrarão pouca aplicação prática aqui.
Por fim, é preciso mais do que nunca produzir uma ciência rebelde, nos termos que Oscar Varsavsky imprime a expressão, uma ciência politizada, que usa todas as armas disponíveis para a mudança social [5]. Isso seria o uso inteligente da tecnologia, e ele se dá menos utilizando uma tecnologia inteligente, do que adaptando a tecnologia que já disponível para a nossa realidade e enfrentamento dos nossos problemas, fora disso o debate encontrará sempre falsas polêmicas, saídas romantizadas para problemas estruturais e limitações materiais da nossa formação dependente.
1 – Ver Revolução Cientifico-tecnica e Capitalismo Contemporâneo, Theotonio dos Santos, 1983
2 – Disponível aqui.
3 – Disponível aqui
4 – Disponível aqui
5 – Ver Ciencia, Política y Cientificismo, Oscar Varsavsky, 1969.
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Poderá a Inteligência Artificial criar cidades humanas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU