Moradia digna é muito mais do que um abrigo, “tem a ver com a sua localização, porque em um local onde não há acesso a transporte adequado e a infraestrutura de serviços públicos, não se tem uma moradia digna. Essa moradia até pode ser um abrigo com quatro paredes bem construídas, mas ela não é suficiente, porque a pessoa não tem acesso aos benefícios produzidos pela cidade”, adverte o engenheiro urbano Luiz Kohara na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line. Segundo ele, apenas na cidade de São Paulo mais de um milhão de pessoas vivem em situação de precariedade e outras não têm acesso à moradia.
A precarização da moradia e a expansão das favelas, explica, estão diretamente relacionadas à renda e à questão imobiliária das cidades. “Por exemplo, no Brasil, entre 2000 e 2010, a população cresceu 12,3% e nesse período a população favelada cresceu cerca de 70%. Isso demonstra que mesmo nos momentos em que a economia teve crescimento, ampliou-se o número de pessoas vivendo em favelas. É importante percebermos, nesse sentido, que a favela é uma consequência da questão do modelo de desenvolvimento urbano existente, onde há uma grande concentração de terra nas mãos de poucos e grande parcela da população não consegue acessá-la. Isso porque, na medida em que se tem um controle e uma especulação da terra, mesmo que os salários melhorem, o valor da terra tem crescido nos últimos anos com índices superiores à valorização imobiliária. Por exemplo, em São Paulo, no período entre 2008 e 2015, a valorização imobiliária cresceu cerca de 250%, enquanto o valor do salário cresceu cerca de 140%. É importante percebermos o que está por trás da geração das favelas no Brasil”, informa.
Na entrevista a seguir, Kohara também explica a importância da habitação social para enfrentar o déficit habitacional brasileiro e relata a situação dos cortiços paulistas, que lucram com a crise da moradia. “O acesso à moradia é um direito social garantido pela Constituição, no entanto, na prática dentro dos órgãos públicos, esse direito é tratado como uma mercadoria, que deve ser acessada conforme a capacidade de renda das pessoas. Nesse sentido se deveria mudar essa concepção e entender a moradia social para a população de baixa renda como serviço público”.
Luiz Kohara (Foto: Reprodução | Youtube)
Luiz Kohara é engenheiro civil pela Fundação Armando Álvares Penteado, mestre em Engenharia Urbana e Construções Civis pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo - USP, doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e realizou o pós-doutorado na área de sociologia urbana também pela USP. É fundador e colaborador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos desde 1988, e foi assessor da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2001 e2004. É colaborador do Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais - CAIS na área de planejamento, monitoramento e avaliação de projetos sociais desde 2011.
IHU On-Line — O senhor tem chamado atenção para a falta de moradia digna não só em prédios ocupados em grandes centros, mas também entre aqueles que vivem em favelas, loteamentos precários e cortiços. Pode nos explicar essa noção de moradia digna? Que aspectos comuns, em prédios ocupados, favelas, loteamentos e cortiços tornam uma moradia não digna?
Luiz Kohara — Primeiramente temos que ressaltar que o incêndio que ocorreu recentemente no prédio no centro de São Paulo não é um fato isolado. O incêndio decorreu de um problema estrutural que ocorre no Brasil: a falta de condições das pessoas de terem acesso à moradia digna. No Brasil existe um déficit habitacional de mais de seis milhões de habitações. Existe ainda um outro número equivalente a esse, de déficit de moradias que apresentam condições de precariedade devido à infraestrutura ou mesmo à própria questão da construção da moradia. Então, esse é um problema que vem se acumulando há muitas décadas e que nunca conseguimos enfrentar efetivamente.
A população que tem baixa renda, à medida que não consegue acessar o mercado formal de moradia e também não consegue acessar as políticas públicas, tem como única alternativa procurar abrigos em qualquer lugar possível, até porque uma família com os filhos precisa se abrigar depois de um dia intenso e árduo de trabalho. Com isso, a única alternativa que sobra nas cidades brasileiras é poder ocupar alguns espaços, e por isso se formaram as favelas e as ocupações em áreas de edificações de risco. Muitas vezes essa própria população fica sujeita a exploradores que também produzem loteamentos ilegais.
Quando falamos em moradia digna, estamos falando em algo que representa muito mais do que um abrigo; é necessário um abrigo adequado, que tenha as condições estruturais de proteção à pessoa. Mas moradia digna também tem a ver com a sua localização, porque em um local onde não há acesso a transporte adequado e a infraestrutura de serviços públicos, não se tem uma moradia digna. Essa moradia até pode ser um abrigo com quatro paredes bem construídas, mas ela não é suficiente, porque a pessoa não tem acesso aos benefícios produzidos pela cidade. Nesse sentido é que temos discutido bastante a importância de assegurar moradia digna para todos. Hoje existe na cidade de São Paulo mais de um milhão e 200 mil pessoas morando em situação de precariedade e um grande número de famílias morando em áreas de risco. Enquanto não acontecer uma catástrofe, essas pessoas não terão visibilidade. Além disso, muitas pessoas moram na rua, o que também é algo grave, mas é naturalizado pela sociedade como se essas pessoas não tivessem direitos também.
IHU On-Line — Muitos sociólogos fazem uma defesa das favelas, argumentando que as pessoas construíram relações sociais e familiares nesses locais, de modo que as favelas não poderiam ser desfeitas. Que tratamento deveria ser dado às favelas, considerando tanto a crise da habitação, quanto a noção de moradia digna?
Luiz Kohara — É importante compreendermos que a ampliação das favelas tem muito a ver com a condição de renda e com a questão imobiliária da cidade. Por exemplo, no Brasil, entre 2000 e 2010, a população cresceu 12,3% e nesse período a população favelada cresceu cerca de 70%. Isso demonstra que mesmo nos momentos em que a economia teve crescimento, ampliou-se o número de pessoas vivendo em favelas. É importante percebermos, nesse sentido, que a favela é uma consequência da questão do modelo de desenvolvimento urbano existente, onde há uma grande concentração de terra nas mãos de poucos e grande parcela da população não consegue acessá-la. Isso porque, na medida em que se tem um controle e uma especulação da terra, mesmo que os salários melhorem, o valor da terra tem crescido nos últimos anos com índices superiores à valorização imobiliária. Por exemplo, em São Paulo, no período entre 2008 e 2015, a valorização imobiliária cresceu cerca de 250%, enquanto o valor do salário cresceu cerca de 140%. É importante percebermos o que está por trás da geração das favelas no Brasil.
Na medida em que a população está assentada nesses locais — que eram locais sem nenhum uso, ou terrenos públicos ou abandonados por proprietários particulares durante muitos anos —, e que tem acesso a serviços, à infraestrutura e criou vínculos sociais, uma das alternativas com que podemos enfrentar essa questão é através da urbanização. Primeiramente é preciso regularizar essa terra para dar garantia e estabilidade a essas famílias, para elas assegurarem a posse da terra por meio de desapropriações ou por meio da aplicação de mecanismos do estatuto das cidades. Mas o fato é que o Estado precisa assegurar a posse da moradia para essas famílias. Depois, é preciso fazer melhorias de infraestrutura nesses espaços, porque em geral as favelas surgem sem infraestrutura em termos de saneamento básico. Também é preciso garantir recursos para que as famílias possam melhorar suas habitações. Essa seria uma alternativa mais barata do que produzir novas habitações.
IHU On-Line - Por que, na sua avaliação, há uma bolha inflacionária em torno da moradia? O que justifica o preço dos imóveis serem tão elevados e terem aumentado mais de 250% em menos de uma década?
Luiz Kohara — O espaço urbano e a habitação têm sido compreendidos pelo setor do capital imobiliário como uma mercadoria para ganhar dinheiro. Então, a cidade, ao invés de ser um espaço onde as pessoas possam viver bem e se possa construir uma sociedade mais igualitária, é usada no nosso sistema capitalista como uma mercadoria para apropriação de lucro. Temos visto que o espaço urbano nessa concepção mercadológica é um dos produtos que mais gera lucro sem o investimento do proprietário. Isso porque se você tem uma terra e a deixa parada para especulação, esperando o investimento público no entorno, sem fazer investimentos, verá que, após o investimento público, o valor da terra aumenta, ou seja, o investimento público acaba sendo capitalizado por proprietários particulares. Isso é muito danoso para toda a sociedade, porque na medida em que o poder público faz um investimento em áreas que beneficiariam os que mais precisam, a valorização da área torna impositivo que as pessoas de melhor renda possam acessar aquela terra. Então é preciso discutirmos a questão da especulação imobiliária porque, do contrário, ela sempre tornará determinadas regiões inacessíveis pela população de menor renda.
Além disso, é preciso rediscutir a habitação de interesse social. O acesso à moradia é um direito social garantido pela Constituição, no entanto, na prática dentro dos órgãos públicos, esse direito é tratado como uma mercadoria, que deve ser acessada conforme a capacidade de renda das pessoas. Nesse sentido se deveria mudar essa concepção e entender a moradia social para a população de baixa renda como serviço público, assim como é a educação, a saúde, a assistência, a previdência social, pois a moradia de interesse social é parte do processo da inclusão social das famílias de menor renda. A partir da moradia, essas famílias têm melhores condições de poder se desenvolver na área educacional, melhores condições de saúde e mais condições de ter trabalho.
IHU On-Line - O secretário de Habitação de São Paulo disse que um dos entraves para fazer uma política habitacional é a falta de recursos e financiamento. Na sua avaliação, a maior dificuldade é dessa ordem?
Luiz Kohara — Se olharmos essa questão pela forma como está dividido o orçamento e a não priorização da habitação, é simples ver que está faltando recurso. Agora, sempre que temos um problema, temos que descobrir formas e alternativas de enfrentá-lo. No caso da habitação, os cálculos que se fazem é como se somente a produção de novas moradias fosse uma solução. Entretanto, temos que ver outras formas de enfrentar o problema da habitação. Existe um número de domicílios vazios no país, conforme indica o IBGE, que é quase igual ao número do déficit habitacional. Então teríamos que colocar a solução e aplicar os instrumentos do estatuto das cidades e dos planos diretores para pressionar que esses imóveis vazios possam ser utilizados para moradia social.
Outra questão é ver como melhorar as condições de moradia de pessoas que vivem precariamente, sem produzir novas moradias. Outra questão ainda é como se controla a especulação imobiliária tanto para a comercialização quanto para locação, porque para a grande parcela que faz parte do déficit habitacional das grandes cidades brasileiras, é o ônus excessivo com o aluguel que gera o déficit habitacional. Algumas famílias destinam até 70% da renda familiar para o aluguel. Então deveria haver um tipo de controle nesse sentido. Em outros países isso já existe. Não é algo fácil de fazer, mas precisa ser enfrentado.
Também entendo que a forma de acesso à moradia para a população de baixa renda não deveria ser apenas pelo acesso à propriedade; ela deveria ter alternativas, como programas de locação social, onde as pessoas teriam acesso à moradia, mas a propriedade do imóvel continuaria sendo pública. Isso significa que as pessoas que precisam de moradia pagariam aluguel, conforme sua capacidade de renda, para a prefeitura ou outro ente do Estado. Essa seria uma forma de o Estado manter esses imóveis como públicos e também evitaria que, à medida que se tornassem propriedade particular das pessoas, esses imóveis entrassem numa valorização, de modo que as pessoas seriam pressionadas a vendê-los.
IHU On-Line – Em sua pesquisa sobre os cortiços paulistas, o senhor afirma que os problemas que existiam nos cortiços do início do século XX são os mesmos de hoje, e que atualmente há uma grande exploração no mercado de locação de cortiços, especialmente para estrangeiros. Quais são os principais problemas que evidenciou nesta pesquisa e que semelhanças observou na comparação dos cortiços de hoje com os do século XX?
Luiz Kohara — Eu estudei a questão dos cortiços no mestrado e no pós-doutorado na Universidade de São Paulo. O cortiço foi a primeira alternativa habitacional para a população mais pobre no início do século XX, quando a cidade de São Paulo começou a se expandir. Então, a partir disso o problema da habitação começou a surgir. Fazendo estudos, podemos constatar que passado um século do início da existência dos cortiços, os mesmos problemas acontecem hoje na cidade de São Paulo. No início do século XX, quando se falava da condição dos cortiços, há relatos de insalubridade, infraestrutura de saneamento inexistente, precariedade dos imóveis e exploração. Tudo isso ainda continua. Os exploradores de cortiços conseguem ter uma alta rentabilidade com essa exploração. A situação de miserabilidade da população possibilita a alta lucratividade dos exploradores do espaço urbano.
Fiz a primeira pesquisa sobre cortiços em 1998 e depois, passados 13 anos, fiz uma nova pesquisa e pude verificar que essa situação se mantém. Os cortiços são casas unifamiliares que estavam em situações de degradação e que um explorador — que chamamos de intermediário — ou o proprietário transformou em cortiços. Então, cada cômodo de uma residência passou a ser uma unidade domiciliar, ou seja, num cortiço onde morava uma família, hoje moram dez famílias e cada cômodo tem dez metros quadrados, com precariedades em termos de saneamento. Mesmo havendo saneamento nesses lugares, ele não funciona adequadamente, e as paredes são divididas por madeirites. Então, a mesma situação de precariedade se mantém, além de uma condição de exploração.
Um cortiço de dez metros quadrados na região central ou nas proximidades da região central de São Paulo custa cerca de 900 reais. Se compararmos o valor do metro quadrado nessa região com qualquer valor do metro quadrado em outras regiões de classe média em São Paulo, perceberemos que o cortiço custa mais de duas vezes do que unidades habitacionais da classe média. Em bairros de classe média como Pinheiros e Vila Mariana, um apartamento de 80 metros custa cerca de três mil reais, o que daria cerca de 40 reais o metro quadrado, enquanto no cortiço esse valor chega a 90 reais. Então, o cortiço gera perversidade e explora as situações de pobreza.
Os cortiços existem por vários motivos, como a falta de habitação, mas também por conta da falta de políticas públicas, da baixa renda de famílias que não conseguem acessar moradias no mercado em razão da exigência do mercado formal de confirmação de trabalho por carteira assinada — o que grande parte dos moradores de cortiços não tem — e também por causa da localização dos cortiços, porque no caso de uma cidade como São Paulo, se perde em média duas horas para ir até o trabalho e mais duas horas para voltar, o que se torna inviável para muitas pessoas. Além disso, muitos serviços públicos e sociais estão concentrados na região central. Então, as pessoas buscam morar em um lugar um pouco mais adequado em relação à localização e acabam sendo reféns dos exploradores de cortiços.
Cresceu o número de estrangeiros morando em cortiços em São Paulo. Só para citar um exemplo, quando fiz a pesquisa em 1998, numa área da região da Luz, em mais de cem cortiços não havia identificado estrangeiros. Em 2013, quando retornei a essa mesma região, cheguei a identificar quase 30% de estrangeiros morando na região. Ainda tem uma outra questão quando se trata de estrangeiros: no estudo que fiz em 2013 percebi que, conforme a vulnerabilidade da população, o preço do cortiço é mais caro. Separando o preço dos cortiços entre brasileiros e estrangeiros, pude verificar que o preço médio para os brasileiros era cerca de 500 reais e para os estrangeiros, conforme a vulnerabilidade e pelo fato de não terem documentos, o preço era 30% mais caro.
Também estudei as condições de moradia e o desempenho escolar das crianças que vivem nos cortiços. Por que é importante enfrentar a questão da habitação e do cortiço? Porque pude verificar que entre famílias com rendas muito próximas, aquelas que moravam em cortiços e aquelas que moravam em habitações que tinham melhores condições, havia uma diferença no rendimento escolar das crianças. Uma criança que mora em cortiço tem até três vezes mais chances de ser reprovada. Vimos que a questão do desempenho escolar das crianças diminuía conforme as condições de moradia, como a falta de janelas nas habitações, por exemplo. Todas as crianças que tinham sido reprovadas moravam em quartos de cortiços sem janelas. Ou seja, conforme aumenta a precariedade da habitação, o desempenho das crianças também cai.
IHU On-Line - Muitos especialistas em habitação têm criticado o Programa Minha Casa Minha Vida, afirmando que ele foi uma política de habitação, mas uma política feita para garantir o crescimento econômico. O senhor concorda com esse tipo de análise?
Luiz Kohara — O programa Minha Casa Minha Vida, embora tenha surgido no contexto da necessidade de geração de emprego, foi uma política habitacional importante, especialmente por seu caráter massivo, porque para enfrentarmos o problema da habitação no Brasil, precisamos de programas massivos de habitação.
Minha crítica em relação ao programa é sobre a localização das habitações, porque a localização era essencial. Muitas vezes é possível ter uma habitação, mas se ela está localizada num local sem infraestrutura, a família que não tem recursos fica isolada. Sabemos que onde não há presença do Estado, onde as pessoas não têm acesso a serviços, o crime organizado acaba ocupando esses espaços e, nesse sentido, deveria haver um controle, porque o programa Minha Casa Minha Vida — com exceção do Minha Cada Minha Vida Entidade — foi entregue na mão de empresas que produziam habitação. Essas empresas de construção civil tinham como objetivo o lucro, e como o preço da unidade final era fixo, se buscou terra onde era mais barato, ou seja, onde não se tem acesso à cidade e onde não se tem infraestrutura urbana. Então, deveria haver um controle nesse sentido da produção, e seria preciso variar os valores dos imóveis e pensar na sustentabilidade urbana, porque o crescimento da cidade gera problemas tanto de sustentabilidade quanto em termos de economia urbana.
IHU On-Line – Que tipo de política habitacional o país precisaria para atender a demanda por habitação, para além das políticas de habitação social que o senhor sugeriu?
Luiz Kohara — Quando se fala em políticas habitacionais, tem que existir uma variedade de programas. O Programa Minha Casa Minha Vida é uma das alternativas, mas não podemos ter um programa único num país como o Brasil, que tem diversidade de realidades. Deveria haver programas como o Minha Casa Minha Vida, um programa de locação social massiva em todo o país, deveria haver programas de regularização e urbanização em áreas precárias como favelas e loteamentos ilegais, deveria se dar incentivos para propriedades particulares, ou aplicar instrumentos que penalizem imóveis abandonados para otimizar unidades habitacionais. Também deveria haver financiamentos para a população produzir a sua habitação como a grande massa da população faz, apoiando compra de terrenos e material de construção. É importante destacar que as melhores alternativas que temos percebido são aquelas em que há uma parceria entre o poder público, grupos técnicos e grupos de movimentos populares, porque as experiências de mutirão e autogestão têm sido as melhores alternativas para enfrentar os problemas de habitação. Então, uma política habitacional deveria ter diferentes formas para enfrentar o problema habitacional.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Luiz Kohara — Estou fazendo uma pesquisa sobre habitação para população em situação de rua e pesquisei pessoas que estavam em situação de rua em Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e São Paulo. Estudei os casos de 52 pessoas que viveram em situação de rua e hoje estão em moradias. Essa é uma população que o próprio Estado não vê como necessitando de habitação por conta do próprio preconceito que existe por causa dessa população e pela forma como olham para o problema: muitas vezes dizem que o problema é da assistência. Mas essa visão é errônea, porque essa população quer uma assistência, quer saúde, mas também precisa de habitação. Por causa dos preconceitos que existem em torno dessa população, a sociedade e as instituições nunca pautam a habitação como um problema para essas pessoas.
Pude verificar que essas pessoas que acessaram moradia conseguiram se estruturar em termos de trabalho. Hoje, dos pesquisados, cerca de 40% possuem carteira registrada e mais de 80% deles têm atividade de trabalho regular. Melhorou também o aspecto da saúde, da qualidade de vida, a redução de danos em relação aos que eram usuários de drogas, e muitos reconstruíram os vínculos familiares e avançaram na educação; tem um exemplo de uma pessoa que está concluindo o curso de Direito e outros que estão prestando o Enem para ingressar na universidade. Então, houve uma melhoria em todos os sentidos.
Gostaria de ressaltar que, às vezes, olhamos para essa realidade com olhos de preconceito, mas quando olhamos para a realidade concreta, podemos ver que a habitação na vida dessas pessoas foi transformadora. Se diz que a população de rua não gosta de moradia, mas isso não é verdade, porque vi casos de pessoas que viveram mais de 30 anos na rua e se adaptaram muito bem a uma moradia. E muitas pessoas dizem que não têm dinheiro para comprar comida, mas fazem esforço para poder pagar a moradia. Quando nos debruçamos sobre essa realidade, percebemos que precisamos superar muitos preconceitos e que olhamos para essas pessoas com valores meritocráticos, sendo que elas nunca tiveram oportunidades.