Por: Patricia Fachin | 14 Mai 2018
O desabamento do edifício Wilton Paes em São Paulo “é a ponta do iceberg de algo muito maior”, a crise habitacional dos grandes centros urbanos brasileiros, diz o engenheiro Francisco de Assis Comarú à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. O déficit habitacional, que hoje está em torno de seis milhões de unidades habitacionais, é consequência da falta de políticas públicas governamentais que desde a década de 1960 “não deram conta do recado da provisão da habitação para a classe trabalhadora”, contextualiza.
Segundo Comarú, os países que equacionaram o déficit de moradia forneceram subsídios e políticas públicas para a população de baixa renda, ou proporcionaram um salário condizente para que os trabalhadores tivessem acesso à moradia. “No Brasil não aconteceu nada disso: nem o Estado fez seu papel de prover moradias e oferecer subsídios para a população trabalhadora, nem o salário dos trabalhadores é suficiente para a comprar a moradia, porque este é o item mais caro para uma família”.
Na avaliação do engenheiro, a crise da moradia tem se agravado nos últimos anos por conta da reestruturação das cidades e de sua transformação em um negócio. “Nos últimos anos tivemos alguns agravantes. David Harvey, professor da Universidade de Nova York, explica que o capitalismo vem sendo cada vez menos produtivo e cada vez mais especulativo, e os capitais estão indo no sentido de investir na cidade, mas de forma especulativa. Nesse sentido, a moradia foi virando uma commodity, um item de investimento, então uma quantidade razoável de investidores investe muito dinheiro nisso, e a moradia vem tendo o seu preço alavancado ainda mais por conta dessa mercantilização da moradia e da cidade. (...) A cidade deixou de ser só o lugar dos negócios e passou a ser o negócio: a cidade é um negócio. Os pobres, dentro deste contexto, são completamente expulsos, seja pela ação direta do Estado nas remoções, seja pela ação direta dos proprietários privados, seja pelos processos da especulação imobiliária, em que as pessoas não conseguem pagar aluguel”, relata.
Na entrevista a seguir, Comarú também explica os critérios que configuram déficit habitacional, menciona a importância da função social da propriedade como um mecanismo para enfrentar o problema, e analisa a principal política habitacional brasileira, o Programa Minha Casa Minha Vida. “Toda a família que compromete 30% da sua renda com aluguel está dentro do déficit habitacional. Foi por isso que, dentro do período do Minha Casa Minha Vida, o déficit não caiu muito, apesar de o programa ter produzido uma quantidade muito grande de moradias, porque teve um aumento no preço dos imóveis no país todo”, esclarece.
Francisco Comarú | Foto: USP
Francisco de Assis Comarú é engenheiro civil pelo Instituto Mauá de Tecnologia, mestre pela Escola Politécnica da USP e doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Atualmente é professor na Universidade Federal do ABC, onde atuou como coordenador do curso de Engenharia Ambiental e Urbana e como Pró-Reitor de Extensão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Em entrevistas recentes o senhor tem chamado atenção para a existência de uma crise habitacional no país, especialmente em grandes centros urbanos. Quais são as causas dessa crise habitacional e em que momento pode-se localizar sua origem?
Francisco de Assis Comarú — Nós temos uma crise habitacional que vem de muito tempo atrás e não seria correto dizer que ela apareceu do nada nos últimos anos. É uma crise que vem se estendendo e está associada ao processo de urbanização brasileiro, que foi muito intenso. A partir dos anos 1960, 1970, 1980, e de lá para cá, as políticas públicas governamentais não deram conta do recado da provisão da habitação para a classe trabalhadora. Em países onde o problema da moradia foi equacionado de forma muito mais apropriada do que no nosso país, o Estado proveu moradia por meio de subsídios e políticas públicas. No caso da Europa, por exemplo, existia a habitação de propriedade pública, em que as pessoas pagam aluguéis bem baratos — em São Paulo chamamos de locação social — e a propriedade é da prefeitura. Isso ocorreu em muitos países da Europa; o trabalhador ou tinha um salário condizente com a possibilidade de comprar uma moradia, ou pagava um aluguel que não comprometesse mais de 30% da sua renda. No Brasil não aconteceu nada disso: nem o Estado fez seu papel de prover moradias e oferecer subsídios para a população trabalhadora, nem o salário dos trabalhadores é suficiente para a comprar a moradia, porque este é o item mais caro para uma família.
Já para os estratos superiores da população a questão da moradia não é um problema, muito pelo contrário. E nos últimos anos tivemos alguns agravantes. David Harvey, professor da Universidade de Nova York, explica que o capitalismo vem sendo cada vez menos produtivo e cada vez mais especulativo, e os capitais estão indo no sentido de investir na cidade, mas de forma especulativa. Assim, a moradia foi virando uma commodity, um item de investimento, então uma quantidade razoável de investidores investe muito dinheiro nisso, e a moradia vem tendo o seu preço alavancado ainda mais por conta dessa mercantilização da moradia e da cidade. A cidade deixou de ser só o lugar dos negócios e passou a ser o negócio: a cidade é um negócio. Os pobres, dentro deste contexto, são completamente expulsos, seja pela ação direta do Estado nas remoções, seja pela ação direta dos proprietários privados, seja pelos processos da especulação imobiliária, em que as pessoas não conseguem pagar aluguel. Estamos vendo isso, por exemplo, nos bairros da Luz, assim como em outros bairros em que houve a construção de estádios na época da Copa e dos megaeventos.
Apesar da resistência da população, dos movimentos locais, de vários ativistas, acadêmicos e ONGs, a força do capital é muito poderosa e o Estado se aliou ao capital nesse embate e, consequentemente, agravou ainda mais a crise da moradia. Agora que passou o período neodesenvolvimentista dos governos Lula e Dilma, e que estamos numa grave crise política e numa grave crise econômica, aumentou o desemprego, as pessoas estão ganhando menos, e com isso não têm dinheiro para pagar aluguel. O aluguel continua caro, continua havendo muitas remoções, despejos, e a crise da moradia continua muito grave. As pessoas têm que morar em algum lugar, então elas vão morar na periferia distante, embaixo de viadutos, nos albergues, ocupam prédios em áreas centrais, ou seja, elas têm que se virar.
IHU On-Line — Por que as políticas brasileiras não deram conta da provisão da moradia? Pode nos dar exemplos do que foi feito de diferente nos países que proveram a moradia?
Francisco de Assis Comarú — A questão da habitação não foi priorizada nas políticas do país. Se observarmos o que foi feito ao longo de várias décadas, veremos que tivemos dois períodos em que houve uma produção em massa de habitação: no período da Política Nacional de Habitação - PNH, na ditadura militar, de 1964 até os anos 1980, e depois o Programa Minha Casa Minha Vida. Nesses dois períodos houve um processo de produção massiva de uma quantidade enorme de muitos conjuntos habitacionais, a maioria deles localizados nas periferias das cidades, alguns muito periféricos e outros localizados completamente fora da cidade. Foram construídas casas, mas essas casas não contribuíram para tornar a cidade melhor, e sim pioraram a qualidade dela.
Não adianta só produzir moradia. Essa moradia tem que estar articulada com a política de desenvolvimento urbano, com a política urbana do desenvolvimento da cidade. O montante do orçamento dos poderes públicos nunca foi prioritário para a habitação, com exceção desses dois períodos em que tivemos uma quantidade maior de recursos para habitação. Mas se analisarmos outros períodos, a porcentagem do que os governos reservaram para a moradia foi muito pequena. Por exemplo, a prefeitura de São Paulo, que é a maior e mais rica cidade do país, destina cerca de 1% — não chega a 2% — do seu orçamento total para a pasta da habitação; é muito pouco, é uma quantidade irrisória de dinheiro para um problema gigantesco que São Paulo vai ter que enfrentar. E isso acontece com outras metrópoles, como Porto Alegre, Florianópolis, Belo Horizonte, Fortaleza, Salvador e Rio de Janeiro. É um caos, porque eles têm uma quantidade muito desproporcional de recursos destinados para o enfrentamento desse problema. Por outro lado, a cidade é o lugar dos lucros, dos negócios, da especulação imobiliária, dos proprietários, dos investidores, incorporadores etc. Enfim, tudo isso vai no sentido contrário de uma cidade mais sustentável. Com isso, as cidades estão piorando e a precariedade habitacional está aumentando.
Na Inglaterra, por exemplo, houve uma preocupação no século XIX com a moradia, porque ela se tornou um problema de saúde pública. Em Londres era responsabilidade das subprefeituras do município produzir moradias em cada uma das subprefeituras. Toda vez que tinha um empreendimento grande, como shopping center ou Centro Cultural ou um prédio de classe média alta, automaticamente o empreendedor tinha que produzir uma porcentagem da metragem quadrada daquele empreendimento em habitação social. Portanto, há uma distribuição homogênea em toda Londres: áreas turísticas, centrais, periféricas, e tem habitação social em todos os bairros, ou seja, está distribuída na cidade inteira, não só na periferia. Eles tiveram um entendimento de que se houvesse um shopping center, haveria trabalhadores naquele local e eles teriam que morar próximo ao shopping. Então, o empreendimento é aprovado na prefeitura, mas o shopping center tem que providenciar habitação social perto de onde ele está localizado, para a classe trabalhadora que vai trabalhar naquela região. Essa habitação social é de propriedade pública e tem um valor de aluguel muito barato para que seja viável. Quando veio o governo da Margaret Thatcher nos anos 1980 e a onda neoliberal muito forte, a primeira coisa que ela tentou fazer foi privatizar esse tipo de moradia, porque dentro de uma visão neoliberal, para aumentar o lucro e colocar as moradias no mercado, é interessante privatizar. Foi privatizada uma quantidade enorme de moradias e isso gerou um problema habitacional muito grande naquele país.
IHU On-Line — Qual é o déficit habitacional no Brasil hoje?
Francisco de Assis Comarú — Em torno de cinco a seis milhões de unidades habitacionais, mas esse número aumenta para sete milhões se considerarmos a área rural também. Esses números podem variar em função do próprio critério do que é o déficit, pois todo mundo mora em algum lugar e de algum jeito. São estabelecidos alguns critérios e parâmetros para calcular o déficit, e o que é considerado abaixo desses parâmetros consta no déficit.
Por exemplo, toda a família que compromete 30% da sua renda com aluguel está dentro do déficit habitacional. Foi por isso que, dentro do período do Minha Casa Minha Vida, o déficit não caiu muito, apesar de o programa ter produzido uma quantidade muito grande de moradias, porque teve um aumento no preço dos imóveis no país todo. Além disso, muitos recursos foram injetados no mercado e as prefeituras não realizaram a regulação urbana, que é obrigar os proprietários a cumprir a função social da propriedade, regular os preços, aumentar o valor do IPTU proporcionalmente ao bairro, à região e à renda. Então, ao mesmo tempo que se produziu muita moradia, o aluguel subiu muito, aumentando o número de pessoas que entraram naquilo que consideramos déficit. Existem outros indicadores que são parâmetros para medir o déficit, entre eles, o número de pessoas por cômodo, a superlotação das moradias, as habitações em áreas de risco.
IHU On-Line — Segundo a Secretaria de Habitação de São Paulo, o déficit na cidade é de 358 mil moradias, e ao menos 1,2 milhão de pessoas vivem em situação precária de habitação. Como o senhor lê esses dados? O que eles representam considerando a população que vive na cidade e as políticas acerca da habitação?
Francisco de Assis Comarú — Este número deve estar aumentando, porque temos percebido, com a crise econômica que estamos vivendo, além das pesquisas e de estudos que realizamos, o aumento de grupos vulneráveis em periferias e nas áreas centrais. Por exemplo, a situação no extremo sul da cidade é algo impressionante: nessa região tem se dado a expansão da periferia de forma extremamente precária, como não víamos desde os anos 1980 e 1990. As pessoas estão construindo casas com material de demolição, com telhas que sobram e com pedaços de madeirite, mas não é madeirite comprada na casa de construção, e sim a que sobrou de um outdoor. São caixas sem janelas, sem esgoto e com energia com “gato”, e essa condição tão precária está aumentando muito em toda a periferia de São Paulo. Além disso, no centro da metrópole temos muitas dezenas de prédios que já foram ocupados, muitos dos quais já foram desocupados por meio de reintegração de posse, mas que depois, mesmo após a reintegração, o proprietário não deu função social ao imóvel; isso aconteceu com alguns prédios diversas vezes.
Por um lado, há um descaso muito grande, um desperdício enorme em áreas bem servidas de infraestrutura, de propriedades que ficam completamente fechadas. É uma violência humana e ambiental que a cidade jogue os pobres para as áreas de preservação ambiental e de preservação de mananciais.
Esse é um número muito grande e significativo e, provavelmente, está subestimado porque tem muita gente que mora de favor, mora com uma tia, por exemplo. Existem situações em que moram a mãe, a filha, o companheiro da filha e o neto. Tem muitas situações em que há demanda de mais moradias e que, às vezes, não são computadas no levantamento do déficit. Acredito que há um subdimensionamento desses números se pensarmos nos dias atuais.
IHU On-Line — Segundo notícias da imprensa, somente no edifício Wilton Paes, que desabou recentemente em São Paulo, 25% dos moradores eram de outros estados. Que outros fatores sociais contribuem para a crise da moradia e para que as pessoas migrem para outros estados em busca de melhores condições, mesmo não tendo uma habitação adequada?
Francisco de Assis Comarú — Uma série de outras análises podem ser feitas para entender esse fenômeno. Por exemplo, uma dissertação de mestrado de um aluno da Universidade Federal do ABC analisou algumas favelas de São Bernardo do Campo, usando tecnologias de geoprocessamento e georreferenciamento, dados do IBGE e levantamentos da prefeitura, identificando quais moradias tinham as maiores precariedades nos indicadores. Ele cruzou essas informações com as moradias que eram ocupadas por afrodescendentes — negros, pardos e pretos — e fez isso em três favelas, em partes diferentes. Nas três favelas percebeu-se uma coincidência estatística entre as moradias que são as piores dentro da favela e as mesmas moradias em que estão as populações negras, pretas e pardas.
Os dados que observamos no Mapa da Metrópole e depois no Mapa da Cidade são os mesmos da favela: mesmo em territórios de exclusão, os piores lugares desse território são destinados aos idosos, aos negros, às mulheres e aos deficientes. Temos percebido que há uma sobreposição de vários estratos nesses locais. Esse é um processo que, do ponto de vista intergeracional, não está sendo resolvido. Outros países, como Coreia e Finlândia, conseguiram resolver aquilo que em saúde pública chamamos de desigualdades injustas.
Esse caso do prédio que desabou é a ponta do iceberg de algo muito maior. Lá dentro certamente havia pessoas que eram migrantes de outros estados, mulheres, crianças e pessoas com dificuldade de locomoção, ou seja, grupos vulneráveis que já são excluídos de alguma forma, ou que sofrem violência e discriminação. As políticas habitacionais e urbanas a serem construídas têm que levar em conta a composição desses grupos vulneráveis. Não adianta fazer habitação em massa, achando que as pessoas têm as mesmas necessidades; por exemplo, existem famílias que são muito pequenas, algumas pessoas moram sozinhas, especialmente idosos.
As pesquisas da universidade têm um papel de trazer luz a esse problema para que se possa avançar e se possa cobrar políticas públicas coerentes e construir uma sociedade mais justa e feliz.
IHU On-Line – O que seria uma proposta para resolver a crise habitacional de grandes centros?
Francisco de Assis Comarú — Certamente precisamos que os instrumentos que estão no Estatuto das Cidades possam ser usados nos planos diretores em relação à função social da propriedade. Nenhuma propriedade ociosa e abandonada numa região boa da cidade pode ser tolerada. Não podemos aceitar que um prédio fique fechado por dez anos acumulando lixo, porque isso é um câncer para a cidade. Quando um grupo de moradores vai morar num prédio que estava abandonado e faz uma limpeza e uma reforma, ele leva vida para esse local. Tenho acompanhado os processos de ocupação há vinte anos e vejo que os prédios abandonados precisam ser utilizados para cumprir uma função social.
O poder público tem que usar mecanismos de negociação, porque a maioria desses prédios tem dívidas de IPTU e os proprietários não só fecham os prédios, mas os abandonam e param de pagar o imposto; em alguns casos as dívidas equivalem ao preço do imóvel. As prefeituras precisam forçar as negociações, o Poder Judiciário precisa ter um papel importante de deixar de privilegiar os proprietários. Existem casos de ocupações no centro de São Paulo, na Mauá, em que a gestão Haddad ofereceu 11 milhões por um prédio e o proprietário questionou. O juiz pediu para um perito fazer um cálculo e o perito avaliou o imóvel em mais de 20 milhões. O juiz então determinou que a prefeitura deveria pagar esse valor. Portanto, há um privilégio em relação ao proprietário, mas o direito à propriedade tem que ser relativizado, porque o direito à moradia é absoluto. Precisamos que as autoridades municipais se mobilizem para fazer cumprir o direito social da propriedade.
Precisamos ter um leque de políticas públicas de habitação em âmbito federal, porque essa política foi paralisada no governo Temer, como a modalidade Minha Casa Minha Vida e Minha Casa Minha Vida Entidade, que viabilizou o financiamento de moradias e reformas de prédios em São Paulo, na Av. Ipiranga.
As pessoas precisam morar próximo do trabalho, de modo que possam ir caminhando. Isso diminui o trânsito, os acidentes de transporte, a poluição, ou seja, são benefícios que se sobrepõem, e além disso é possível fazer uma reparação social. Quando se dá possibilidade de moradia numa região boa, se viabiliza o acesso a uma série de outros serviços, como a educação de crianças que podem estudar sem ter a preocupação de serem despejadas de onde moram.
É preciso ter um conjunto de políticas públicas e os estados têm um papel importante no cumprimento do direito à moradia, mas não têm cumprido com essa função. Quando falamos de ocupações no centro, estamos falando de uma zona expandida; além disso é preciso financiamento para ampliar e criar um parque público de moradia alternativa ao mercado de moradia. Quando se retira a moradia do mercado e a propriedade passa a pertencer ao Estado, a pessoa não pode vender a propriedade, a qual então ela aluga e passa a ser um serviço, como é o serviço de saúde, de educação. Também existem outros modelos de propriedades, como propriedades coletivas, comunitárias, por meio de cooperativas e associações. No Uruguai temos experiências importantes de produção de moradias nesse sistema de moradia coletiva. Assim, podemos pensar a moradia não só como uma propriedade privada que está no mercado, mas como um serviço público. Nesse sentido, precisamos caminhar para a regulamentação na legislação de formas de propriedade coletiva, e viabilizar a assessoria técnica para a população de baixa renda.
Temos uma lei nacional de assistência técnica que precisa ser colocada em prática com uma política pública, porque não adianta ter a lei se não há recursos, financiamento e metas. É preciso regularizar o processo de urbanização das favelas, fazer regularização fundiária, melhorar os cortiços. Além disso, em São Paulo estamos cobrando programas de melhorias na segurança das ocupações, para que acidentes como o que aconteceu recentemente não levem à remoção em massa das pessoas que vivem nesses prédios ocupados, pois isso só aumentaria o problema: aumentaria o número de pessoas nas ruas, nas periferias, ou em outros locais abandonados.
IHU On-Line – É possível estimar quantas pessoas seriam beneficiadas com a aplicação da função social da propriedade nos prédios que poderiam ser ocupados na cidade de São Paulo?
Francisco de Assis Comarú – É difícil fazer esse cálculo, porque estima-se que hoje existem 70 prédios ocupados no centro de São Paulo, mas esses prédios variam muito de tamanho e dimensão: alguns têm 25 andares, outros são pequenos, e alguns abrigam 400 famílias e outros um número menor de famílias. Alguns desses prédios seriam facilmente adaptados porque eles foram hotéis no passado e têm uma disposição arquitetônica interna que favorece a criação de pequenos apartamentos sociais. Outros prédios serviam como escritórios, mas todos eles têm solução, porque estamos vivendo numa era em que não falta tecnologia. Então o problema não é técnico, o problema é mobilização social e política para fazer isso. O Plano Diretor de São Paulo tem alguns dados sobre isso, mas certamente esse tipo de medida ajudaria a diminuir o déficit da habitação e isso geraria uma série de cobenefícios para a cidade toda.
IHU On-Line – Por ocasião do desabamento do edifício em São Paulo, surgiram muitas críticas ao movimento social que estava vinculado a essa ocupação. Fala-se inclusive da existência de milícias que organizam as ocupações e nos últimos anos cresceram as notícias sobre residências construídas pelo Programa Minha Casa Minha Vida que também são alvo de milícias e do tráfico. Que informações o senhor tem sobre isso?
Francisco de Assis Comarú – O ponto de partida importante é considerar que existe uma diversidade muito grande entre os grupos que participaram da luta por moradia. O primeiro prédio ocupado no centro de São Paulo foi em 1997 e já se passaram 21 anos desde então. Na época existia apenas um movimento por moradia e hoje existem mais de 20, que foram sendo divididos, e a própria crise da moradia favoreceu a multiplicação de movimentos.
Eu diria que existem movimentos que são ligados à plataforma da reforma urbana e que participaram nos anos 80 da formulação do capítulo da política urbana da Constituição e ajudaram a construir e a criar o Estatuto da Cidade, e algumas lideranças participam de encontros da ONU. Essas ocupações ligadas à reforma urbana são organizadas e as lideranças limpam os prédios, desobstruem o acesso, retiram o lixo, fazem reformas, organizam comissões por andares e as pessoas obedecem a regras para poderem morar nesse edifícios, como não ter bebida alcoólica na ocupação, homens não podem bater nas mulheres etc. Nas assembleias que eles organizam comparecem 100 famílias, enquanto no meu condomínio, quando comparecem cinco pessoas nós já ficamos felizes, ou seja, a classe média em alguns quesitos tem uma organização muito menor.
Agora, com a crise da moradia, obviamente há prédios que foram ocupados e liderados por pessoas que não têm esse compromisso, nem responsabilidade com a moradia, e encontraram ali uma chance oportunista. Entretanto, há oportunistas em organizações de todo o país, como disse o Guilherme Boulos. Mas nos movimentos podem ter também pessoas que estão ali para tirar vantagens da situação.
Não podemos jogar o bebê junto com a água suja: não é porque você encontra um médico que comete um ato ilícito que você vai julgar que todos os médicos são assim. Então, nesses casos dos grupos de moradia é preciso fazer uma apuração e verificar como são as práticas adotadas.
Muitos falaram sobre a cobrança de um aluguel, mas na verdade se trata de uma taxa, porque não é possível ter uma série de pessoas morando num local sem que isso gere custos. É preciso pagar por manutenções, compra de materiais, ou seja, não é possível manter um prédio sem ter uma contribuição das pessoas. As ocupações que conheci adotam essa prática e ela é natural e necessária, porque do contrário o prédio não se sustenta. Então, um prédio, mesmo que seja ocupado por pessoas de baixa renda, tem custo para ser mantido. Há também uma tentativa de, a partir desses casos, criminalizar os movimentos por moradia. Mas é preciso apurar casos de distorções. O ex-prefeito [João] Doria fez uma declaração infeliz e depois descobriram uma fotografia dele com uma das lideranças que estava nesse prédio.
IHU On-Line - O Programa Minha Casa Minha Vida foi a última grande política habitacional do país. Qual é o saldo dessa política?
Francisco de Assis Comarú – Minha Casa Minha Vida tem pontos positivos e outros criticáveis, especialmente do ponto de vista técnico. Em primeiro lugar, o Programa Minha Casa Minha Vida tem um problema de origem: ele não nasceu como um programa para equacionar o problema da moradia. Quando foi desenhado, o programa foi feito para estimular o crescimento econômico e usava a construção civil para mobilizar novas construções para as cidades e para gerar emprego e riqueza; ao mesmo tempo iria produzir moradia, que era a necessidade da população. Mas ele não foi pensado no seu DNA como tendo uma preocupação com a moradia e com o desenvolvimento urbano. Então, se tratou de uma visão massiva de unidades habitacionais que gerou problemas.
Várias publicações de especialistas mostram que muitos conjuntos habitacionais foram construídos em locais distantes, longe dos locais de trabalho das pessoas. De outro lado, o programa tem um mérito importante de ter viabilizado moradia para a população de baixa renda e as linhas de financiamento estavam voltadas para diferentes níveis de renda, porque há uma grande diferença entre quem ganha de zero a três salários mínimos e quem ganha de três a seis salários. A maioria do déficit habitacional está concentrada entre aqueles que ganham de zero a três salários mínimos. Então, o programa procurou atender essa faixa, o que o BNH não fez, porque ele beneficiou mais a classe média. Mas o Minha Casa Minha Vida também beneficiou a classe média.
É curioso que uma dissertação de mestrado mostra que no ABC, em Diadema, o único conjunto habitacional que foi produzido perto do centro foi justamente um construído por uma mobilidade do programa chamado Minha Casa Minha Vida Entidade, que é uma modalidade em que o financiamento não prioriza a produção, e o interlocutor não são as construtoras e a prefeitura, mas entidades e associações de moradores, cooperativas, ONGs e assessorias técnicas que viabilizam reformas de prédios. O recurso é repassado numa iniciativa de cogestão e os moradores participam da elaboração do projeto. Alguns conjuntos têm uma qualidade muito diferente, melhor, têm uma localização melhor e o processo de produção também é mais interessante, e as pessoas se apropriam mais daquela moradia depois que vão morar lá. Então, o Minha Casa Minha Vida Entidade dialoga com aquele ideário dos mutirões e da autogestão, como foi feito no governo Erundina. Contudo essa modalidade produziu muito pouco: apenas 1% do que foi destinado para as empreiteiras, mas isso faz uma diferença do ponto de vista simbólico na cidade.
O governo Temer precisaria retomar essa modalidade e fazer uma correção de rumos, ou seja, o programa tem que ter uma outra lógica: não se pode deixar a empreiteira escolher o terreno, porque ela escolherá o terreno mais barato para lucrar mais, e esse será um terreno longe, na periferia, e isso é ruim. Essa lógica não pode prevalecer. Precisa haver um redesenho do programa e fortalecer essa modalidade do programa.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Francisco de Assis Comarú – Temos que tratar a questão urbana nas escolas, porque existe um analfabetismo urbanístico, e precisamos tratar a questão urbana como uma ciência, ou seja, ter pessoas que estudam e valorizam essa questão como uma área do conhecimento. Além disso, é preciso aproveitar a tragédia que aconteceu em São Paulo para construir cidades melhores.
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A cidade como negócio e a crise habitacional. Entrevista especial com Francisco de Assis Comarú - Instituto Humanitas Unisinos - IHU