13 Mai 2015
"Se uma determinada função é gravada como social, e deixa de funcionar como tal, isso afeta toda a sociedade para quem a dita função existe e é legalmente válida. Ela não se esgota numa relação interindividual apenas", afirma em artigo, Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Os efeitos da função social da propriedade, no gozo e exercício desse direito, sua influência sobre quem é proprietária/o e sobre o próprio Poder Público, sobretudo do Judiciário, são insignificantes. Embora a Constituição Federal faça previsão dessa função, em várias das suas disposições, ela é muito pouco ou quase nada cogitada, quando algum conflito por terra, por exemplo, envolvendo grande número de pessoas pobres, é submetido à sentença judicial.
Isso pode ser provado pela não aplicação de vários artigos dessa Constituição, ignorados ou desobedecidos nesses casos. O artigo 5º, inciso XXXIII, por exemplo, adverte: a propriedade atenderá a sua função social; o artigo 170, inciso III determina: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ...III – função social da propriedade; o art. 182, tratando da política urbana, prevê, em seu parágrafo 2º: a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor; e o artigo 186, no capítulo relativo à política agrícola, fundiária e de reforma agrária, elenca vários requisitos a serem obedecidos pela propriedade rural visando prevenir suas/seus donos, em que espaço, tempo e modo, ela somente será considerada cumpridora de sua função social: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Mesmo antes da Constituição de 1988, uma lei da ditadura como é a do Estatuto da Terra e bem depois, como é a do Estatuto da Cidade, também buscaram impor respeito à função social da propriedade, visando preservar o valor humano, mais do que econômico, ínsito a um bem indispensável à vida, como é a terra. Ficasse ele protegido contra o risco de qualquer abuso, ou mau uso ferir direito de terceiras/os, justamente quem, necessitado de terra, fosse vítima de a referida função não funcionar...
O Estatuto da Terra (Lei 4504/64), em seu artigo 12, determinou que “à propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado nesta Lei.” O Estatuto da cidade, no parágrafo único do seu primeiro artigo regulou “ o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, e, na parte final do seu artigo 39, depois de colocar a função social da propriedade urbana, afinada com o Plano diretor da cidade, procurou assegurar “o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”
Por que tudo isso não vence a inoperância do princípio constitucional da função social da propriedade, ressalvadas raras exceções? - por uma razão muito simples, historicamente comprovada em nosso país. O poder econômico, concentrado no capital e no mercado, tem uma tal consciência da sua superioridade sobre o poder do Estado, que permite, por seus representantes políticos, presentes no próprio Executivo, no Legislativo e no Judiciário, que um tal princípio legal figure no ordenamento jurídico, não para transferir qualquer poder a quem seja prejudicado pela sua violação, mas sim para “legitimar” esse mesmo ordenamento, fazendo passar por lei o que é apenas uma conveniência própria. Como está com o dinheiro na mão, faz o que lhe convém, mesmo com o risco de ser julgado infrator, certo de que, durante o chamado devido processo legal, não vai sofrer qualquer sanção, ou essa vai levar tanto tempo que valha a pena tirar proveito econômico do atraso verificado na apuração da irresponsabilidade aí presente.
O que se esquece, talvez até se quer esquecer, na maioria dos conflitos gerados pelo desrespeito dessa função, são os direitos de quem é vitima do descumprimento das obrigações nela implicadas ou, quando isso chega a acontecer, alguns ou todos os efeitos dessa ilegalidade serem irreversíveis, como acontece, por exemplo, com os danos sofridos pelo meio-ambiente e com as demoradíssimas ações de desapropriação de terra, em favor de pobres morrendo à espera. Deveria servir de aviso, para se vencer uma injustiça dessas, uma verdade mais lógica do que jurídica: se uma determinada função é gravada como social, e deixa de funcionar como tal, isso afeta toda a sociedade para quem a dita função existe e é legalmente válida. Ela não se esgota numa relação interindividual apenas. Levado a juízo, um conflito relacionado com qualquer disfunção, como ocorre frequentemente em questões de terra, muito raramente uma tal obviedade é ponderada.
Exatamente por ser social, sendo credora do seu funcionamento toda a sociedade, essa está legitimada por um interesse “social”, difuso e presente, por conseqüência, em toda ela com poder juridico capaz de ser cobrado ética, política. administrativa e judicialmente. Assim, qualquer desvio ilegal do direito de propriedade lesa uma porção de gente indeterminada, titulada por um interesse capaz de legitimá-la para agir materialmente em sentido contrário. Pouco se percebe, na escandalosa concentração de terra em mãos de poucos latifundiários, como acontece no Brasil, essa realidade subjacente, como causa de tantos conflitos sobre ela,. Não é tratada como um reflexo claro da desproporção existente no país, entre o espaço físico terra exageradamente coberto pelo direito de propriedade, como criador, não só desses conflitos, como da sua reprodução permanente, comprovada na desigualdade social revelada pelos índices estatísticos de pobreza e de miséria ainda persistindo no país.
Jorge Miranda, no tomo IV do Seu Manual de Direito Constitucional, quando analisa os Direitos fundamentais (Coimbra Editora, 1993), direitos hierarquicamente superiores aos patrimoniais, como se sabe, mostra como há interesses difusos de todo um povo, agredidos por essa disfunção, à disposição de qualquer pessoa dela vítima de agressão individual ou coletiva de seus interesses difusos, como ocorre frequentemente com direitos humanos fundamentais sociais, ser defendida perante o Estado, especialmente junto ao Poder Judiciário:
“Aquilo a que se vai dando o nome de interesses difusos é uma manifestação da existência ou do alargamento de “necessidades coletivas individualmente sentidas”; traduz um dos entrosamentos específicos de Estado e sociedade e implica formas complexas de relacionamento entre as pessoas e os grupos no âmbito da sociedade política. Trata-se de necessidades comuns a conjuntos indeterminados de indivíduos e que somente podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária. Não são interesses meramente coletivos, nem puros interesses individuais. ainda que possam projetar-se, de modo específico, direta ou indiretamente, nas esferas jurídicas destas ou daquelas pessoas”
Para esses interesses alcançarem poder de enfrentar com sucesso a desobediência de titulares do direito de propriedade à sua função social, há necessidade de uma conscientização de todo o povo pobre, vítima dessa desobediência, fazer valer as sanções próprias dessa ilegalidade. Esse é um trabalho, sabidamente, nada fácil. Como adverte muito bem Miguel Teixeira de Sousa (“A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos”, (Lisboa: Lex, 2003) a criação de uma consciência coletiva, para defesa de interesse difuso, não pode ser ingênua, pensando que todo o mundo “vai pegar junto”:
“Quanto maior for o grupo, mais difícil é conseguir uma ação coordenada entre seus membros, dado que os grandes grupos - que M. Olson chama de “latentes”, porque possuem uma capacidade latente para a ação - apresentam algumas características que contribuem para desmotivar a ação individual. Nos grandes grupos, a contribuição marginal de cada um para a obtenção dos fins do grupo é insignificante e, em regra, não se verifica neles qualquer reação à falta dessa contribuição, pelo que, se não houver um incentivo diferenciado e seletivo, nenhuma indivíduo se sente motivado a colaborar na obtenção dos objetivos comuns. A falta de incentivo para a ação contribui para as situações de free-riding, ou seja, para as hipóteses em que alguém - um free-rider - beneficia de um bem sem que tenha contribuído para a sua produção.” (free-rider pode ser traduzido, literalmente, por “caroneiro”...)
Os movimentos populares, por isso, as ONGs de defesa dos direitos humanos, as Defensorias Públicas, o Ministério Público, as Comissões de direitos humanos, por exemplo, como a da OAB, a par de suas prestações de serviço estritamente institucionais, não podem prescindir desse esforço: a sustentação político-jurídica dos interesses difusos violados pelo descumprimento da função social da propriedade passa também pelo princípio democrático: ela só funciona (!) efetivamente quando o povo vítima daquela disfunção anda junto e muito interessado (!) nela.
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A legitimidade popular para cobrar função social à propriedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU