10 Março 2023
Os equilíbrios religiosos na Europa Oriental atravessada pela guerra de Putin na Ucrânia. Ortodoxos em fuga de Moscou para Constantinopla.
A invasão russa da Ucrânia desestabilizou arranjos centenárias interconfessionais bem como geopolíticos na Europa Oriental. La Stampa entrevistou Giorgio Cella, analista de política internacional e autor do livro "Storia e geopolitica della crisi ucraina. Dalla Rus' di Kiev a oggi", para reconstruir as causas e os efeitos da convulsão provocada dentro da cristandade pela guerra de Vladimir Putin.
A entrevista é de Giacomo Galeazzi, publicada por La Stampa, 09-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre os efeitos da invasão russa da Ucrânia está também a passagem da ortodoxia ucraniana de Moscou para Constantinopla. Quais poderiam ser as consequências a longo prazo sobre os equilíbrios da cristandade na Europa Oriental?
Na realidade, a emancipação da Igreja Ortodoxa Ucraniana da Igreja russa remonta aos tempos de Poroshenko, o ex-presidente ucraniano, predecessor de Zelenski. Já na época, em 2019, justamente por pressão do ex-presidente ucraniano, foi criada a Igreja Ortodoxa Ucraniana separada da Igreja Ortodoxa Russa, portanto dita autocéfala, com uma importante cerimônia realizada em Istambul na qual o patriarca de Constantinopla Bartolomeu entregue a Poroshenko, presente com sua família e outros representantes do governo de Kiev - e todos vestidos com trajes tradicionais ucranianas, para ressaltar a dimensão nacional da questão - recebeu o Tomos do Patriarca de Constantinopla selando assim aquele processo de autocefalia agora concluído. A raiva do patriarca russo Kirill e do Kremlin foi imediata, Kirill definiu Bartolomeu de cismático e herege. É claro que com a guerra desencadeada por Putin em 24 de fevereiro de 2022, esse processo de separação, inclusive religiosa e cultural, só se consolidará, com o risco de emulação por outras igrejas ortodoxas dos países vizinhos.
Em vez da comunhão com a "terceira Roma" (Moscou), os ortodoxos ucranianos agora preferem a comunhão com a "segunda Roma" (Constantinopla). Por quê?
Conhecemos as causas e os atritos entre os dois países, incluindo as esferas religiosas e culturais e sabemos o quanto são antigos. Os reflexos da luta política revelam-se assim na dimensão religiosa: política, cultura, religião, vasos comunicantes de um contraste que já se tornou holístico e não poupa nenhum âmbito. Gostaria de destacar duas coisas:
O fato de o ato de autocefalia ter ocorrido na Turquia, outra potência em ascensão e com relações flutuantes com Moscou, protagonista de uma cooperação competitiva com a Rússia (mais competição do que cooperação se olharmos também à história, basta lembrar a Questão do Oriente), mas com objetivos geoestratégicos e interesses nacionais substancialmente divergentes com Moscou que provavelmente se intensificarão nos próximos anos.
Recordamos como a Turquia sempre se manifestou contra a guerra russa na Ucrânia, não reconheceu a anexação da Crimeia de 2014 e se posicionou, como potência islâmica e pan-turca, como defensora dos tártaros islâmicos da Crimeia que, desde a época da anexação, mantinham tensões contínuas com o novo poder russo na península.
Ao mesmo tempo, também deve ser dito que a Turquia desempenha um papel muito realista com Moscou, permanecendo inclusive agora um parceiro comercial vital para Moscou, lembrando como a Turquia não tenha aderido às sanções ocidentais contra a Rússia.
O endosso do Patriarca Kirill à guerra de Putin também provocou reações dentro da Igreja Ortodoxa Russa, como evidenciado pelo protesto dos popes que escreveram um documento contra o alinhamento entre Patriarcado e Kremlin. Isso poderia ser o começo de um reposicionamento?
Por agora, tenderia a excluí-lo. O poder russo é quase um só com a Igreja Ortodoxa Russa desde a época de Pedro I, o czar que instituiu o Sacro Sínodo. Por enquanto, aquele episódio parece ter permanecido um caso bastante isolado: enquanto a unidade do regime se mantiver - apesar das várias tensões que conhecemos - também se manterá aquele da estrutura eclesiástica russa.
Putin lembra constantemente os valores cristãos tradicionais sobre família e gênero, ele pretende dividir também o catolicismo apelando para os setores mais tradicionalistas?
Não é algo recente relacionado à situação bélica. Durante décadas, Putin colocou-se à frente de uma visão mais tradicionalista e cristã (embora a sua seja uma visão neoimperial, que no caso da Rússia corresponde plenamente a uma visão multicultural, multirreligiosa e multiétnica e com uma forte componente islâmica, como é consubstancial ao império dos czares) que, embora aplicada em nível doméstico, também se dirige ao mundo conservador e tradicionalista, tanto europeu como estadunidense.
No entanto, sabemos como a frente conservadora europeia de hoje, basta olhar para o governo italiano liderado pelo FdI - com pleno apoio e aliança com os EUA democratas de Joe Biden - se distanciou de tais ideais, abraçando mais os conceitos de democracia, pluralidade e abertura, embora mantendo uma narrativa de base sobre os valores da família tradicional. Isso no que diz respeito à Europa Ocidental, enquanto para a Europa Centro-Oriental não é dito que não possa continuar a representar um fator de atração, sobretudo para aquelas sociedades mais tradicionalistas que veem negativamente as políticas liberais e modernistas da UE sobre questões-chave, como família, religião, gênero e questões LGBT.
Quais são as consequências geopolíticas da fragmentação religiosa da Ucrânia?
Mais do que no plano interno, onde tenderia a não ver enormes reações, penso que seria mais interessante ver os reflexos e as consequências disso nos países vizinhos de maioria ortodoxa, pensemos nos romenos, moldavos ou balcânicos. O risco para Moscou poderia ser aquele do efeito dominó, da emulação da ruptura ucraniana em relação ao patriarcado de Moscou. Esse discurso claramente poderia levar a uma maior tensão regional, que já faria do lado religioso um elemento de pleno direito ao conflito.
Que papel os católicos ucranianos podem desempenhar na pacificação ecumênica?
É sempre correto e adequado trabalhar pela paz, e o mundo católico, especialmente com o pontificado do Papa Francisco, tem atuado incansavelmente em tal direção. Embora agora ainda existam tensões entre o Vaticano e a Rússia devido às palavras do Pontífice sobre os buriates e os chechenos, eu tenderia a pensar que se tratam de tensões que podem ser resolvidas a curto e médio prazo, trazendo assim o Vaticano de volta a uma posição de interlocutor principal para alcançar alguma forma de trégua nesta guerra devastadora. Se isso acontecesse, a ramificação católica da comunidade greco-católica ucraniana também poderia eventualmente desempenhar um papel. Dito isso, realisticamente (sem contar a história de hostilidade entre as duas igrejas e as múltiplas histórias de repressão ao longo dos séculos da igreja greco-católica de parte de Moscou, que define de maneira pouco lisonjeira tal igreja uniata), eu tenderia a pensar que o ressentimento em relação Moscou, que também existe entre a grande comunidade greco-católica ucraniana devido à guerra, impede hoje, e pelo menos no futuro próximo, a gênese de uma atitude baseada em alguma forma de apaziguamento ou de conciliação com a Federação Russa e o seu Patriarcado de Moscou.
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Os reflexos da guerra na Ucrânia sobre os equilíbrios religiosos na Europa Oriental. O papel de Constantinopla e as novas tensões com o Patriarcado de Moscou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU