23 Fevereiro 2023
Quando a eclosão de conflitos armados não pode ser evitada por sanções dolorosas mesmo para os próprios paladinos do direito internacional violado, a alternativa oferecida – em relação a uma continuação da guerra com cada vez mais vítimas – é a busca de compromissos toleráveis.
A opinião é do filósofo alemão Jürgen Habermas, em artigo publicado em La Repubblica, 19-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim que a decisão de fornecer tanques Leopard havia sido recém-saudada como “histórica”, as notícias já haviam sido superadas – e relativizadas – por pedidos estrondosos de aviões de combate, mísseis de longo alcance, navios de guerra e submarinos.
Os pedidos de ajuda, tão dramáticos quanto compreensíveis, por parte da Ucrânia invadida em violação do direito internacional encontraram uma repercussão previsível no Ocidente. A novidade foi apenas a aceleração do conhecido jogo de pedidos de armas mais poderosas movidas pela indignação moral e pela consequente atualização dos referidos tipos de armas implementada regularmente, embora com hesitação.
Mesmo nos círculos do SPD, ouviu-se que não existem “linhas vermelhas”. Com exceção do chanceler e de sua comitiva, o governo, os partidos quase unidos e a imprensa, de modo quase unânime, levam a sério as palavras incisivas do chanceler lituano: “Temos que superar o medo de querer derrotar a Rússia”.
Da vaga perspectiva de uma “vitória”, que pode significar qualquer coisa, qualquer discussão a mais sobre o objetivo da nossa assistência militar – e de suas modalidades – deve cessar. Assim, o processo armamentista parece ganhar uma dinâmica própria, certamente sob a pressão da compreensível insistência do governo ucraniano, mas alimentada aqui entre nós pelo tom bélico de uma “opinião pública” compacta, em que a hesitação e a reflexão de metade da população alemã não encontram expressão. Ou talvez não totalmente.
Atualmente, estão surgindo vozes reflexivas que não apenas defendem a posição do chanceler, mas também pedem uma reflexão pública sobre o difícil caminho da negociação. Se eu me uno a essas vozes, é precisamente porque é justo afirmar que a Ucrânia não pode perder a guerra, a tempo de impedir que uma longa guerra ceife ainda mais vítimas e destruições e, finalmente, nos coloque diante de uma escolha obrigatória: entrar ativamente em guerra ou, para não desencadear a Primeira Guerra Mundial entre potências com armas nucleares, deixar a Ucrânia entregue a seu destino.
A guerra continua, o número de vítimas e a extensão das destruições aumentam. A dinâmica do apoio militar fornecido por nós por razões válidas, portanto, deve se despojar do caráter defensivo, porque o objetivo só pode ser a vitória sobre Putin? A Washington oficial e os governos dos outros países da Otan concordaram desde o início em parar antes do ponto de não retorno – a entrada na guerra.
A hesitação de caráter claramente estratégico e não apenas técnico que o chanceler Scholz encontrou por parte do presidente estadunidense ainda no início do fornecimento de tanques reafirmou a premissa que está na base do apoio ocidental à Ucrânia. Até agora, o que preocupava o Ocidente era o problema de que cabe apenas à liderança russa decidir a partir de que ponto se deve considerar o tamanho e a qualidade dos suprimentos ocidentais de armas como sinal de entrada na guerra.
Mas, desde que a China também se declarou contrário ao emprego de armas nucleares biológicas e químicas (ABC), essa preocupação passou para o segundo plano. Portanto, os governos ocidentais fariam bem em se concentrar no adiamento desse problema. Na perspectiva de uma vitória a todo o custo, o aumento qualitativo dos nossos fornecimentos de armas tomou um impulso que poderia nos levar, mais ou menos sem nos darmos conta, para além do limiar de uma terceira guerra mundial.
Portanto, agora não se deveria “abafar qualquer debate sobre a fase da possível passagem da tomada de posição para a participação efetiva, com base na tese de que, somente por conduzir tal debate, fazemos o negócio da Rússia” (como escreveu Kurt Kister no caderno cultural do Süddeutsche Zeitung de 11-12 de fevereiro passado).
Torna-se real o risco de um sonambulismo à beira do abismo, porque a aliança ocidental não só apoia a Ucrânia, mas também reitera incansavelmente que apoiará o governo ucraniano “por todo o tempo que for necessário” e que a decisão sobre o tempo e os objetivos de eventuais negociações cabe exclusivamente ao governo ucraniano. Essa afirmação tem o objetivo de desencorajar o adversário, mas é incoerente e mascara diferenças evidentes. Em primeiro lugar, pode nos enganar quanto à necessidade de iniciar iniciativas de negociação de nossa parte.
Por um lado, é óbvio que apenas uma das partes envolvidas no conflito pode determinar o próprio objetivo bélico e, no caso, o momento das negociações. Mas a capacidade de resistência ucraniana também depende do apoio ocidental. O Ocidente tem seus próprios interesses e obrigações legítimos. Assim, os governos ocidentais agem em um contexto geopolítico mais amplo e devem levar em consideração outros interesses além dos ucranianos nessa guerra; eles têm obrigações jurídicas em relação às exigências de segurança dos próprios cidadãos e, além disso, independentemente das posições da população ucraniana, têm uma responsabilidade moral pelas vítimas e pelas destruições provocadas com as armas fornecidas pelo Ocidente; portanto, não podem jogar sobre o governo ucraniano a responsabilidade pelas brutais consequências de um prolongamento das hostilidades, possível somente graças ao apoio militar oferecido.
O fato de o Ocidente ter de tomar decisões importantes e assumir sua responsabilidade também é demonstrado pela situação que mais é preciso temer, ou seja, aquela mencionada, em que uma superioridade das forças armadas russas o colocaria diante da alternativa de ceder ou de entrar na guerra. O tempo está se esgotando para as negociações, também pelos motivos mais óbvios, como o esgotamento das reservas de pessoal e dos recursos materiais necessários para a guerra.
O fator tempo também desempenha um papel nas convicções e inclinações de grande parte das populações ocidentais. Nesse contexto, é fácil demais reduzir as posições sobre a polêmica questão do timing das negociações ao simples contraste entre moral e interesse próprio. São principalmente morais as razões que levam a pôr fim à guerra.
Portanto, a duração do conflito influencia o ponto de vista das populações sobre os eventos bélicos. Quanto mais a guerra dura, mais predominante é a percepção da violência, particularmente explosiva nos conflitos modernos, determinando a visão da relação entre guerra e paz em geral.
Esses pontos de vista me interessam em relação ao debate que está progressivamente começando na República Federal da Alemanha sobre a lógica e a possibilidade de negociações de paz. Aqui entre nós, ainda no início do conflito na Ucrânia, duas formas diferentes de perceber e avaliar a guerra encontraram expressão na disputa entre duas formulações linguísticas vagas, mas discordantes: o objetivo do nosso fornecimento de armas é que a Ucrânia “não perca a guerra” ou, em vez disso, a “vitória” sobre a Rússia?
Essa diferença conceitualmente ambígua tem muito pouco a ver com uma tomada de posição pró ou contra o pacifismo. O movimento pacifista nascido no fim do século XIX politizou a dimensão violenta das guerras, mas o verdadeiro ponto não é a superação gradual das guerras como meio de resolução dos conflitos internacionais, mas sim a recusa total de pegar em armas.
Portanto, o pacifismo não desempenha nenhum papel nesses dois pontos de vista, que diferem de acordo com o peso atribuído às vítimas da guerra. Isso é importante, porque a sutil diferença retórica entre as expressões “não perder” e “vencer” a guerra não divide mais os pacifistas e os não pacifistas. Na realidade, hoje ela também caracteriza contrastes dentro daquela facção política que considera a aliança ocidental não apenas legitimada, mas também politicamente obrigada a apoiar a Ucrânia com o fornecimento de armas, apoio logístico e serviços civis em sua corajosa luta contra o ataque à existência e à independência de um Estado soberano, conduzido em violação do direito internacional e de forma decididamente criminosa.
Esse posicionamento está ligado à solidariedade com o triste destino de um povo que, após muitos séculos de dominação estrangeira polonesa, russa e também austríaca, conquistou a independência apenas com o colapso da União Soviética. Entre as nações europeias tardias, a Ucrânia é a última a chegar. Continua sendo uma nação em formação.
Mas, mesmo no vasto campo dos apoiadores declarados da Ucrânia neste momento, os ânimos estão divididos em relação ao timing certo das negociações de paz. Uma parte se identifica com o pedido do governo ucraniano de um apoio militar cada vez maior para derrotar a Rússia e retomar a integridade territorial do país, incluindo a Crimeia. A outra parte pretende pressionar para tentar chegar a um cessar-fogo e a negociações que pelo menos evitem uma possível derrota, retomando o status quo anterior a 23 de fevereiro de 2022. Nesses prós e contras, refletem-se experiências históricas.
Não é por acaso que esse conflito que está se consumando lentamente impõe agora a necessidade de clareza. Há meses, o front está congelado. Um artigo do Frankfurter Allgemeine Zeitung intitulado “A guerra de desgaste favorece a Rússia” relata a guerra de posição com enormes perdas em ambos os lados em torno de Bakhmut, no norte do Donbass, e cita a declaração chocante de um alto funcionário da Otan: “Lá, parece Verdun”.
As comparações com aquela terrível batalha, a mais longa e sangrenta da Primeira Guerra Mundial, têm apenas remotamente a ver com a guerra na Ucrânia e somente na medida em que uma prolongada guerra de posição, sem grandes variações na linha de frente, traz à tona sobretudo o sofrimento das vítimas em relação ao objetivo político “significativo” da guerra.
O relato chocante do front feito por Sonja Zekri, que não esconde suas simpatias, mas não embeleza nada, de fato, lembra as cenas do front ocidental em 1916. Soldados que “se degolam”, montanhas de mortos e feridos, escombros de casas, hospitais e escolas, ou seja, a aniquilação da civilização: nisso se reflete a essência destrutiva da guerra, que joga uma luz diferente sobre as palavras da ministra alemã das Relações Exteriores, segundo a qual “com as nossas armas salvamos vidas”.
Na medida em que as vítimas e as destruições da guerra se revelam desse modo, vem à tona o outro lado da guerra – não apenas um meio de defesa contra um agressor inescrupuloso; em seu curso, os eventos bélicos são percebidos como uma violência avassaladora que deve cessar o mais rápido possível.
E quanto mais se desloca o peso de um aspecto para outro, mais clara se torna a ideia de que a guerra não deveria existir. Nas guerras, a vontade de derrotar o inimigo sempre se associou ao desejo de que a morte e a destruição tenham fim. E, na medida em que as devastações aumentaram junto com o poder das armas, o peso desses dois aspectos também mudou.
Após as bárbaras experiências das duas guerras mundiais e da tensão nervosa provocada pela Guerra Fria no século passado, um latente deslocamento conceitual ocorreu nas mentes das populações envolvidas. A partir de suas experiências, elas chegaram muitas vezes inconscientemente à conclusão de que as guerras – modalidade até então considerada evidente para conduzir e resolver conflitos internacionais – são totalmente incompatíveis com as regras da vida civilizada.
A natureza violenta da guerra, em certo sentido, havia perdido sua aura de naturalidade. Essa ampla mudança ocorrida na consciência também deixou sua marca na evolução do direito. O direito humanitário que pune os crimes de guerra tentou, sem muito sucesso, frear o exercício da violência na guerra. Mas, no fim da Segunda Guerra Mundial, a própria violência da guerra teve que ser pacificada por meios jurídicos e substituída pelo direito como única modalidade de resolução dos conflitos entre Estados.
A Carta das Nações Unidas, que entrou em vigor em 24 de outubro de 1945, e a instituição do Tribunal Internacional de Haia revolucionaram o direito internacional. O artigo 2 obriga todos os Estados a resolverem as disputas internacionais por meios pacíficos. Foi o choque da violência da guerra que gerou essa revolução.
As palavras tocantes do preâmbulo refletem o horror diante das vítimas da Segunda Guerra Mundial. É central o apelo a “unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum” – isto é, no interesse dos cidadãos de todos os Estados e de todas as sociedades do mundo, conforme definido pelo direito internacional.
Essa atenção às vítimas da guerra explica, por um lado, a abolição do ius ad bellum, ou seja, o nefasto “direito” dos Estados soberanos de guerrear à vontade; mas também o fato de que a doutrina com base ética da guerra justa não foi renovada, mas abolida, além do direito de defesa do atacado.
As várias medidas listadas no capítulo VII contra as agressões são dirigidas contra a guerra como tal, e isso exclusivamente na linguagem do direito. Porque para isso basta o conteúdo moral inerente ao direito internacional moderno.
Foi à luz dessa evolução que entendi a frase “a Ucrânia não pode perder a guerra”. Porque interpreto a fase de cautela como um alerta de que o Ocidente, que permite que a Ucrânia continue a batalha contra um agressor criminoso, também não deve esquecer nem o número de vítimas nem o risco a que estão expostas as possíveis vítimas, nem a extensão das efetivas e potenciais destruições que, pela finalidade legítima, com relutância, devem ser levadas em consideração. Nem mesmo o apoiador mais altruísta está isento dessa perspectiva de proporcionalidade.
A frase hesitante “não pode perder” põe em discussão a visão Amigo-Inimigo que, mesmo no século XXI, considera ainda “natural” e desprovida de alternativas a solução bélica dos conflitos internacionais. A guerra, e mais ainda a desencadeada por Putin, é sintoma de uma regressão a uma fase anterior à histórica interação civil entre potências – sobretudo aquelas que souberam tirar lições das duas guerras mundiais.
Quando a eclosão de conflitos armados não pode ser evitada por sanções dolorosas mesmo para os próprios paladinos do direito internacional violado, a alternativa oferecida – em relação a uma continuação da guerra com cada vez mais vítimas – é a busca de compromissos toleráveis.
A objeção é óbvia: neste momento, não há nenhum sinal de que Putin pretenda se envolver em negociações. Ele não deveria ser forçado a ceder por meios militares apenas por esse motivo? Além disso, Putin tomou decisões que tornam quase impossível iniciar negociações promissoras. Porque, com a anexação das províncias orientais da Ucrânia, ele criou realidades e cimentou reivindicações inaceitáveis para a Ucrânia.
Por outro lado, talvez se tratou de uma resposta, embora imprudente, ao erro cometido pela Aliança Atlântica no momento em que intencionalmente deixou a Rússia no escuro em relação ao objetivo de seu apoio militar. Porque, assim, deixou em aberto a perspectiva de uma mudança de regime inaceitável para Putin.
Pelo contrário, o objetivo declarado de restabelecer o status quo anterior a 23 de fevereiro de 2022 teria facilitado o caminho posterior das negociações. Mas ambas as partes visavam a se desencorajar mutuamente, plantando estacas amplas e aparentemente inamovíveis. Não são pressupostos promissores, mas também não são desesperadores.
Porque, além das vidas humanas que a guerra ceifa dia após dia, aumentam também os custos dos recursos materiais que não podem ser repostos à vontade. E, para o governo Biden, o tempo está se esgotando.
Esse pensamento, por si só, deveria nos levar a solicitar tentativas enérgicas para dar início às negociações e a buscar uma solução de compromisso que não ofereça ao lado russo ganhos territoriais além do status quo anterior ao início da guerra, permitindo, entretanto, que ele salve sua pele.
Além do fato de que os chefes de governo ocidentais, como Scholz e Macron, mantêm contatos telefônicos com Putin, o governo estadunidense aparentemente dividido sobre essa questão também não pode manter o papel formal de parte não envolvida. Um resultado negocial duradouro não pode ser integrado no âmbito de acordos de longo alcance na ausência dos Estados Unidos. Ambas as partes em guerra têm interesse nisso. Isso vale para as garantias de segurança que o Ocidente deve fornecer à Ucrânia, mas também para o princípio segundo o qual a derrubada de um regime autoritário só é crível e estável na medida em que parte da própria população e, portanto, é apoiado internamente.
A guerra em geral concentrou a atenção em uma necessidade premente de regulamentação em toda a região da Europa central e oriental que vá além dos objetos de contenda das partes em conflito. Hans-Henning Schröder, especialista em Europa oriental e ex-diretor do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança de Berlim, indicou (no Frankfurter Allgemeine Zeitung de 24 de janeiro de 2023) os acordos de desarmamento e as condições econômicas na ausência das quais não se pode alcançar um acordo estável entre as partes diretamente envolvidas. Putin já poderia se aproveitar da disposição dos Estados Unidos de se envolver em tais negociações de porte geopolítico.
Precisamente porque o conflito toca uma rede mais ampla de interesses, não se pode excluir desde o início a possibilidade de se encontrar, mesmo para as reivindicações diametralmente opostas neste momento, um compromisso que salve a pele de ambos os lados.
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Europa, entre a guerra e a paz. Artigo de Jürgen Habermas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU