"Por que continuar a ‘ler’ o termo ‘comunismo’ pelas lentes do ‘Manifesto Comunista’ de 1848? Por que não alargar o horizonte e deixar de usar o termo numa guerra ideológica?", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Como ensinam os linguistas, a palavra só ganha significado em contexto. Ela é como aquela peça de xadrez que só ganha significado quando montada no quadrado do jogo. Deitada ao lado do tabuleiro, não significa nada. Montada no tabuleiro, vira rei, rainha, bispo.
O termo "comunismo" ganha um significado, hoje predominante, no "Manifesto Comunista", publicado por Marx e Engels em 1848. Mas o termo pode atuar em outros "tabuleiros". Na Idade Média, por exemplo, a palavra "comuna" indicava uma cidade emancipada. Há muitos "jogos de linguagem" em que o termo funciona, pois é genérico e tem a ver com "comum", "comunhão", "comunidade", "comungar", "comunicação", "comunicar", "comunicativo". Em seu sentido original, podemos dizer que comunismo significa o contrário de particularismo.
As considerações que se seguem partem da seguinte pergunta: por que continuar a "ler" o termo "comunismo" pelas lentes do "Manifesto Comunista" de 1848? Por que não alargar o horizonte e deixar de usar o termo numa guerra ideológica?
Sigo um pequeno roteiro. Em primeiro lugar (1), algumas palavras sobre o "comunismo iroquês"; em seguida (2), uma apresentação do livro "Origens do Cristianismo", da autoria de Karl Kautsky, que (3) evoca os Atos dos Apóstolos. Termino (4) com uma apresentação do "comunismo de Jesus".
Estou convencido que o cristianismo tem a ganhar em recuperar um termo que expressa de modo singular sua particularidade e originalidade na história humana.
Num determinado texto (não tenho a referência concreta), Friedrich Engels, co-redator do Manifesto Comunista, se declara impressionado por relatos acerca da vida dos iroqueses, povos originários da América do Norte, que, no decorrer do século XVIII, viviam na região dos Grandes Lagos, entre os atuais Estados Unidos e Canadá. Por meio de um estudo, publicado em seu tempo, que traz informações por parte de um jesuíta francês, chamado Latifau, que, em 1724, publicou um relato de seu convívio com esse povo, Engels toma conhecimento da liberdade e relativa igualdade social que esse sacerdote aí experimentou. Aí, ele percebe que a história pode ser surpreendente e não tem de passar necessariamente por uma experiência "comunista" como aquela descrita no Manifesto de 1848. Não me consta que Engels tenha aprofundado intuição tão fértil. O que leio é que ele embarcou definitivamente para a aventura comunista que conhecemos.
Hoje, podemos retomar a intuição de Hegel em bases muito mais largas. Com os enormes progressos em termos de arqueologia e antropologia, dos últimos decênios, os limites de nosso conhecimento da história da humanidade recuaram de aproximadamente 3.000 anos para 10.000 anos. Com isso, a clássica periodização da "evolução humana", na base do pressuposto de que a história tenha de passar por um funil, ou seja, da fase de "povos coletores e caçadores" (povos primitivos) a "povos agricultores" (povos evoluídos) e daí a sociedades complexas de "povos urbanizados", para desembocar no atual sistema mundial capitalista, é ultrapassada. Estudos pormenorizados mostram que a evolução da humanidade não segue sempre um padrão de "desenvolvimento" e de "progresso", ou seja, nem sempre segue uma linha reta. Ela pode passar, por exemplo, por uma "revolução agrária" e depois voltar a um regime de coleta e caça. A história não é tão linear como se supunha até pouco tempo atrás.
Quem, hoje, toma conhecimento de um livro como The Dawn of Everything: a New History of Humanity (Copyright 2021 David Graeber & David Wengrow), escrito por dois estudiosos ingleses (veja internet), ficará impressionado/a com uma visão totalmente nova da história da humanidade, baseada nas já mencionadas conquistas no campo da arqueologia e da antropologia. Sistemas tecnologicamente sofisticados, como o nosso, não implicam necessariamente em renúncias em termos de liberdade e comunicação. Contemplando um panorama de 10 mil anos, não aparece algo como ‘o fim da história’ (Fukuyama). Nosso atual sistema capitalista não é tão irremediável quanto Marx e Engels supunham.
Teremos de nos acostumar a nova visão da história do Brasil, tomar em mão livros como o de Davi Kopenawa, O espírito da floresta, a ser lançado pela Companhia das Letras em março 2023, ou ainda o de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, publicado pela mesma Companhia das Letras em 2019. Antigas sabedorias indígenas, desprezadas pela ideologia colonialista, voltam à tona. Os "comunismos" Nhambiquara, Yanomami, Tupinambá e Krenak esperam por reconhecimento de nossa parte. Ganhamos em sabedoria e humanidade, quando passamos a escutar as vozes que nos vêm do universo indígena.
Outra sugestão importante vem, de novo, do ambiente que criou a experiência soviética. Refiro-me ao livro A origem do Cristianismo (1908), do historiador alemão Karl Kautsky (1854-1938). Trata-se de uma análise aprofundada de diversos movimentos da época de Jesus, como fariseus, saduceus, essênios e zelotes, que ajudam a situar o movimento de Jesus. Mesmo sendo marxista, Kautsky transcende concepções políticas e ideológicas e consegue fazer um trabalho, cujo valor é reconhecido entre historiadores, até hoje. Ele acentua tendências ‘comunistas’ nos citados movimentos.
Jesus é apresentado como um comunista "avant la lettre". Kautsky levanta a possibilidade do governador da Judeia, Pôncio Pilatos, ter acreditado que Jesus fosse um zelote, ou seja, um revolucionário que lutava contra a opressão do Império Romano. Desta forma, a crucificação, castigo reservado aos rebeldes e outros inimigos da sociedade, teria sido a punição estipulada para o líder de uma insurgência frustrada.
Alguns termos caros à doutrina marxista são utilizados pelo autor, que ganhou a admiração de marxistas ortodoxos. Apesar de discordar de Karl Kautsky, que se opunha à ‘ditadura do proletariado’ em curso na URSS, Lênin reconheceu que ele foi um verdadeiro historiador marxista e
afirmou que os seus trabalhos em história eram um patrimônio perdurável do proletariado.
A profunda análise do Jesus histórico, empreendida por Kautsky, continua válida até hoje. Seu livro Origens do Cristianismo foi traduzido para o português e publicado, em 2010, pela editora Civilização Brasileira.
Tanto o "comunismo iroquês" de Engels quanto os estudos de Kautsky nos levam a reler os Atos dos Apóstolos, provavelmente já em circulação, entre discípulos/as de Jesus, por volta do ano 120, aproximadamente 90 anos após sua morte. O uso de termos como "comum", "comunhão", "comunidade", "comunitário", é recorrente.
Cito alguns textos:
Comento algumas terminologias que aparecem nas citações acima. A expressão "koinônia" (comunhão) já aparece em At. 2, 42, qualifica o movimento. O cristianismo das origens é uma organização da "koinônia'. Isso, segundo os Atos, é levada muito a sério, como se vê no episódio do capítulo 5. A "koinônia" implica em refeições gratuitas para viúvas (e, por conseguinte, para órfãos), como testemunha o capítulo 6. Lembro que, naqueles tempos, não poucas mulheres, já com aproximadamente vinte anos de vida, eram "viúvas", o que explica a frequência do termo "viúva" nos primeiros documentos. Lembro igualmente que a sociedade romana não fornecia nenhum tipo de assistência social. Para essas mulheres viúvas, a sobrevivência costumava depender de alguma "intercessão", de algum "benfeitor", e isso perpetuava um sistema de heteronomia e dependência. O movimento cristão rompe com essa lógica e se apresente como um "mutirão", uma organização coletiva de serviços gratuitos em benefício de pessoas com dificuldades de sobrevivência. Pelo que se verifica por uma leitura dos Atos, os apóstolos tomaram muito a sério essa organização comunista.
O termo "koinos" (comum), que aparece em At. 2, 32, significa o oposto ao termo "idios" (particular). "Panta koina" (tudo em comum) significa "ouden idion" (nada particular). Na língua grega do século II dC, "koinos" significa "comunitário". O estado se chama "to koinon" (a instituição comunitária). É um organismo a serviço de todos e de todas, um organismo comunista. Os evangelhos são redigidos na língua "koinè", a língua comum do tempo, não a língua sofisticada dos intelectuais. Mais tarde, o latim vai traduzir o "koinos" grego por "communis": entre os discípulos de Jesus, tudo era comum (At. 4, 32). Há igualmente a expressão "comunhão", que nos leva à assim chamada "comunhão de bens" que, segundo o relato dos Atos dos apóstolos, teria sido praticada nas primeiras comunidades: Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía: entre eles, tudo era comum (ibidem). Alguns comentaristas modernos falam em ‘comunismo primitivo’.
Os exegetas não costumam atribuir sempre concretude histórica às narrativas dos Atos dos Apóstolos. Elas são antes de ordem exortativa e descrevem aspirações, tendências, nem sempre fatos ocorridos. Assim a narrativa de Paulo na estrada de Damasco, seu discurso diante de intelectuais do Areópago, a dramatização de um naufrágio nas costas da Sicília. Também a história de Ananias e Safira, já apresentada aqui.
Nesse sentido, de certo modo, os evangelhos nos possibilitam entender melhor o que ‘realmente aconteceu’. Um dos principais focos desses evangelhos é o projeto de ‘comensalidade’. Um projeto que, decerto, pertence ao âmago do cristianismo das origens, mas, na longa evolução do movimento de Jesus ao longo de dois mil anos de história, apenas vingou em ambientes restritos e de modo restrito. Aqui nos defrontamos com uma das leis da história: intuições de grandes líderes religiosos, como Jesus, dificilmente se concretizam integralmente por muito tempo.
De outro lado, temos de dizer que o próprio Jesus não inova por inteiro em termos de comensalidade, pois ele apela para princípios participativos inerentes à antiga tradição de Israel e conhecidos por todos os judeus: todos são filhos de Deus, ricos e pobres, proprietários de terras e vagantes pelas estradas. Todos têm direito à comida. A atuação de Jesus e dos apóstolos recupera a tradição dos profetas de Israel, que sempre criticaram a não observância de determinados pontos da legislação social e econômica de Israel e insistem na organização solidária do povo. O Talmud prescreve que se rasgue o pão e que se deem pedaços a todos os participantes da mesa. É o que Jesus faz na multiplicação dos pães. Jesus atua, aqui como em outros momentos, sobre um background judaico. O jantar da Páscoa, o Seder dos judeus, que os cristãos chamam "ceia" ou "eucaristia", é o momento em que todos esquecem os problemas da vida para deliciar-se com as alegrias da mesa. Até hoje, os judeus centralizam a liturgia em torno da "mesa da comunhão". Todos se tornam um em torno da mesa. Não há mais dois [grego - judeu; homem - mulher; escravo - livre; circunciso - incircunciso; bárbaro - cidadão], mas um [tudo em todos], como escreve Paulo na Carta aos Gálatas.
O tema dois em um constitui um dos mais antigos testemunhos do primeiro seguimento de Jesus, como acentua Dominic Crossan em seu livro O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo (Imago, Rio de Janeiro, 1994, p. 473). O movimento de Jesus se insere numa larga história de luta contra a discriminação na hora da partilha, que ulteriormente foi espiritualizada pelos teólogos. Mas o sentido original permanece: a definitiva superação da fome endêmica depende da união das pessoas, da quebra das divisões entre pessoas e agrupamentos, sejam quais forem as confissões religiosas ou as bases culturais. Todos unidos contra um inimigo comum: a fome.
Eis o que nos parece a mais acertada formulação do projeto inicial de Jesus e de seus apóstolos, o âmago das mensagens. Seguir a Jesus significa praticar, de uma ou outra forma, a comensalidade, lutar contra a fome do irmão que mora ao lado, provocar a eucaristia, ou seja, o entusiasmo na hora em que a comida aparece na mesa.
A evocação da eucaristia apela para um esclarecimento. As igrejas hoje conservam uma prática eucarística bastante cristalizada, que apenas evoca de longe o vivido nos inícios. Em sua origem evangélica, a eucaristia constitui um momento privilegiado de comunicação. As pessoas encontram-se nos bairros populares das cidades, nos sítios onde vivem os camponeses, no cais do porto, no mercado, nas ruas e praças, mas principalmente no interior dos pátios habitacionais, chamados ‘insulae’ (ilhas), onde diversas famílias moram juntas atrás de um mesmo portão de entrada. Na hora da ceia, os cristãos atualizam seus conhecimentos, ouvem falar de outros grupos, comentam os problemas, comem e bebem juntos, cantam hinos, ritualizam um encontro de fraternidade ao comer em comum, mas não chegam a cristalizá-lo em formas fixas. A eucaristia, nas origens evangélicas, não funciona de modo sistematizado. A comunicação permanece espontânea, cheia de vida: Damos graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos e ainda sobra para uma eventual visita. Aqui não há famintos. Nossa solidariedade elimina a fome. Cresce uma solidariedade bem concreta: na comunhão do pão, do peixe e do vinho, e em certos casos de bens da vida em geral. Um sonho longamente acalentado por Israel: Não haverá pobres entre vocês (Deuteronômio 15, 4).
Em geral, não se alcança a comunhão global dos bens, tal qual aparece nos Atos dos Apóstolos. O resultado permanece bem mais modesto. Há, por exemplo, indícios de que as comunidades ajudam a pagar os impostos, na época um peso enorme sobre os ombros das pessoas. Os evangelhos relatam em diversos tópicos que os camponeses da Galileia não conseguem pagar os impostos. A documentação da mesma época que nos foi conservada do Egito por meio de papiros (pequenos bilhetes), graças às areias secas das planícies do rio Nilo, confirma o fato: os camponeses coptas também gemem sob os impostos (Crossan, op. cit., 1994, p. 54). Tudo indica que os impostos são, na época do surgimento do movimento de Jesus, um problema geral para as classes trabalhadoras em todo o Oriente Médio.
Jesus recomenda vivamente a comensalidade, pois ela abre espaços de liberdade e comunicação. Mas é exigente demais para muitos, como demonstra o episódio do jovem rico. Abordado por um jovem rico que quer segui-lo na missão, Jesus diz: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e os distribui entre os pobres: terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me (Mt 19, 21; Mc 10, 21). Siga-me a encaminhar soluções ao problema da fome que assola o povo camponês da Galileia. A primeira questão, a mais urgente, é conseguir saciar a fome endêmica do povo. Não a fome casual de quem está fora de casa e não tem onde arranjar comida, mas a fome dos que passam necessidade a vida toda. A tarefa é urgente. A fome não conhece espera. A religião dos famintos tem como sinal primeiro e principal a mesa farta, o pão, o vinho, a ‘eucaristia’ (agradecimento) na hora em que pão e vinho aparecem na mesa. A fome do povo constitui a primeira urgência, a mais imediata, que leva Jesus a agir. Eis o contexto em que ele sai do anonimato e se pronuncia diante da sociedade. Inconformado com a fome que vê por toda parte, ele quer, num primeiro impulso, remediar ao que lhe deve ter parecido uma situação insustentável. Jesus é o primeiro a preocupar-se em dar a comer ao povo, a comida simples de todos os dias: pão e peixe.
O jovem rico não entende essa preocupação. Ele vai embora. E Jesus pondera: o projeto é quase impossível a ser executado. Há falta de quem queira colaborar. Mesmo assim, para Deus tudo é possível (Mt 19, 26; Mc 10, 27). É dentro desse contexto que aparece a famosa frase: É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. Ou seja, é quase impossível o rico participar do projeto, como comprova o episódio do jovem rico. E aí Pedro, ingenuamente e meio sem jeito, solta essa: Eis que deixamos tudo e te seguimos. O que é que vamos receber? (Mt 19, 27). Ele também mostra que não entende o projeto.
Qual projeto? Evocações de mesa farta e de banquete repetem-se ao longo das narrativas evangélicas: elas evocam o cúmulo da felicidade. A felicidade suprema consiste em nunca mais ter fome, nunca mais ter sede (Apoc. 7, 16). Morrer de fome á a última desgraça (Apoc. 6,8). A expressão ‘pão e peixe’ volta o tempo todo (Crossan, op. cit. 1994, pp. 472-473). É que a atenção do pobre sempre está voltada para a mesa e o que nela eventualmente se encontra: pão e peixe. Quem passa fome só vê diante de si a miragem da comida farta. Foi Gandhi que disse: Para o faminto, Deus tem figura de pão. Eis o grande sonho dos pobres de todos os tempos e quadrantes do mundo. E Jesus, que sabe por experiência que o povo passa fome, pois frequenta os ambientes do trabalho (Mt 13, 55), tem a comensalidade como primeiro projeto. Daí a orientação dada aos apóstolos: a fraternidade não pode limitar-se a palavras generosas, tem que ter dimensões concretas (Mc 10, 21; Mt 19, 16-30). O que enraíza as narrativas evangélicas no chão da realidade vivida é essa íntima relação com o mundo dos famintos que aparece a cada momento. Jesus lida diretamente com famintos e dirige sua palavra e sua ação em benefício destes. Escreve José Comblin: O evangelho é uma palavra dirigida aos famintos (Comblin, J., A Fome e a Bíblia, em: Estudos Bíblicos 46, Vozes, Petrópolis, 1995, p. 30).
Possuímos um relato revelador da fome dos camponeses na Galileia: a multiplicação dos pães. Precisa raspar o verniz dos séculos para ver aparecer a narrativa em suas cores originais. O texto foi tão manejado, chegou a nós com tantos exageros, acréscimos e comentários, que se torna quase impossível o reconhecimento do que realmente estava em causa no momento em que foi redigido (Duquesne, J., Jesus, Geração Editorial, São Paulo, 1995, p. 110)
Os comentaristas modernos costumam explicar o milagre, dizendo que se tratou de conseguir que as pessoas, que tinham seguido a Jesus numa região deserta, pudessem alimentar-se antes do cair da noite. Mas não sabemos ao certo o que aconteceu mesmo na ocasião. Pessoalmente acho viável a explicação de Theissen de que Joana, mulher de Cuza, tenha mandado enviar na hora uma ‘feira’ com pão, frutas e peixe (Theissen, G., A Sombra do Galileu, Vozes, Petrópolis, 1989, p. 143).
Mas isso pouco importa. O que importa é a lição que decorre do relato: é possível solucionar a questão da fome, caso todos colaborem. Se os quatro evangelistas falam com insistência dessa multiplicação e mostram como foi grande o entusiasmo na hora, e se eles contam como os ajudantes recolhem os restos de pão com extremo cuidado para que nada se perca, é que deve ter havido algo mais que um milagre, num momento de necessidade passageira. Jesus deve ter revelado um plano geral, no sentido de vencer o flagelo da fome. Um plano de colaboração intensa. A imagem de doze cestos com os pedaços de cinco pães de cevada é absolutamente irresistível. As pessoas exclamam: Esse é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo: um homem que faz com que se multiplique o pão na boca do povo. Jesus é profeta pois ele nos multiplica o pão. Eis a reação das pessoas. Mas o que Jesus planeja? A comensalidade. Eis sua proposta. Na sua Primeira Carta aos Coríntios (11, 17-34), Paulo mostra-se insatisfeito com o modo em que os cristãos a praticam (v. 24). O pessoal traz alimentos de casa (Lc 24, 30.35; At 20, 7; Lc 22, 19 etc.), e cada um se apressa a comer sua própria ceia. Enquanto um passa fome, o outro fica embriagado (v. 21). Paulo reclama: Vocês não têm casas para comer e beber? e se alguém tem fome, coma em sua casa (ibidem). Onde fica a comensalidade? Como se vê, vinte anos após a morte de Jesus, a prática concreta da comensalidade já vai longe do projeto idealizado por ele.
Eis, em algumas pinceladas, o que me parece ter sido o comunismo de Jesus.