16 Mai 2022
"Hoje, com o desaparecimento do 'sol do futuro', devemos nos perguntar novamente, diante da tragédia das guerras, qual é a diferença entre nacionalismos de esquerda e patriotismos de direita".
A opinião é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 13-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dado que eu entendo cada vez menos – quase nada! – do que está acontecendo, não posso deixar de arriscar, porém, algumas conjecturas para tentar iluminar pelo menos alguns aspectos do quadro confuso e irracional das conjunturas políticas mundiais.
Há anos, e praticamente em todas as nações ocidentais, existe um inegável ressurgimento das direitas, herdeiras da tradição nazifascista. O Brasil não é exceção. Mas há anos a recíproca insistência das direitas e das esquerdas em posições binárias tem sido permanentemente contrariada pela complexidade dos eventos.
A mistura das posições e a corrida das contradições revelam um processo de desconstrução, que impede – ou pelo menos deveria impedir – o entrincheiramento radical e polarizado na repetição dos leitmotivs da esquerda. Esta última posição, muitas vezes em nome da classe ou – no Brasil – em nome do mito da mestiçagem, ignorou e perseguiu povos e grupos humanos portadores de outras culturas ou de outras perspectivas de gênero.
Recordemos como os povos indígenas foram tratados pela revolução sandinista na Nicarágua, ou como são tratados atualmente pela Venezuela chavista, ou como os homoafetivos foram perseguidos na revolução cubana.
Pelo contrário, as mudanças que se seguiram ao desaparecimento do comunismo soviético, com o fim da bipolaridade da guerra fria, deveriam nos convencer de que é necessária e possível uma revisão radical dos paradigmas que construíram a práxis das esquerdas, desde a crise da Segunda Internacional até hoje.
Lição difícil de aprender: de fato, hoje, sem Bernstein e órfãos do “renegado Kautsky”, as esquerdas se refugiam novamente no paradigma nacionalista e belicista. A única diferença é que, naquele tempo, a revolução parecia possível porque ainda havia futuro e havia a palavra antinacionalista e internacionalista de políticos como Luxemburgo, Trotsky e Lenin.
Hoje, com o desaparecimento do “sol do futuro”, devemos nos perguntar novamente, diante da tragédia das guerras, qual é a diferença entre nacionalismos de esquerda e patriotismos de direita.
Na atual conjuntura, os políticos neoliberais, educados e corteses, são substituídos por populistas grosseiros, neofascistas, como Trump, Bolsonaro e Johnson, enquanto a esquerda chega descaradamente a insinuar um apoio a Putin, como único político capaz de enfrentar os nazistas ucranianos e o imperialismo da Otan.
E assim, diante da programática ausência de um projeto alternativo ao capitalismo, que marca todas as esquerdas, chego até a me perguntar qual será o destino da globalização, de que falávamos até ontem.
Não tendo superado o obstáculo do nacionalismo, certamente o paradigma binário, de fato já obsoleto e defunto, mas que ainda resiste na conjunção ideológica das esquerdas, é o stalinismo. O stalinismo é aquela doença que, no mundo bipolar da Guerra Fria, levava a justificar tudo o que caracterizava o comunismo soviético, pois qualquer crítica pareceria uma traição e uma adesão ao bloco imperialista ocidental.
Hoje, quando os partidos de esquerda da América do Sul defendem as ditaduras da Venezuela e da Nicarágua, por serem hostilizadas pelos Estados Unidos, eles repropõem o paradigma stalinista e, assim, renunciam a toda atitude crítica digna desse nome; sobretudo, ignoram o sofrimento daqueles povos.
Em suma, o antiamericanismo, do qual se salvam apenas alguns setores minoritários da esquerda, não é mais um paradigma político suficiente para tomar partido no tabuleiro mundial.
Deveria ser evidente que afirmar essa insuficiência não significa ignorar as culpas genocidas dos Estados Unidos e dos seus aliados, a começar por Hiroshima e Nagasaki. E obviamente não envolve ficar do lado de Donald Trump e dos seus apoiadores, que chegaram ao ponto de contrabandeá-lo como um líder antibelicista e pacifista.
Não esqueçamos, portanto, o Afeganistão – e também a Líbia – com a invenção e o financiamento militar dos talibãs e do ISIS.
Nas guerras da Iugoslávia, com quem era preciso se aliar quando nacionalismos e identitarismos religiosos explodiam de novo? É bom não esquecer os tempos de D’Alema e Kosovo. Assim como Blair e a guerra contra o Iraque. Nada de novo sob o sol, mesmo o do futuro.
E na Síria ser contra o ISIS significa estar do lado de Assad e dos russos? Como ser de esquerda apoiando a tirania russa e síria? Ou a teocracia iraniana? E, portanto, estamos do lado dos Estados Unidos ou do Irã na guerra de Riad contra o Iêmen? E entre China e Taiwan vamos simpatizar com a nomenclatura ditatorial chinesa?
Estar do lado do Tibete contra a China talvez seja mais simples, mas estar do lado dos palestinos não é mais um consenso indiscutível, pois, a partir da crítica aos partidos que administram a tímida resistência armada daquele povo, há uma ocidental dependência canina em relação ao Estado de Israel.
Ao mesmo tempo, porém, devemos constatar que o paradigma antissemita nunca desapareceu da história ocidental, e hoje reaparece forte e inoxidável, apesar da distinção entre antissionismo e antissemitismo.
E em Ruanda os paradigmas de esquerda nos sugeriam que deveríamos estar do lado dos hutus ou dos tutsis?
E hoje a Ucrânia: como escapar das interpretações geopolíticas amplamente oportunistas e muitas vezes falsificadas que misturam nazismos armados renascidos na Ucrânia com fascismos e imperialismos pan-russos? Tudo isso temperado com o presidente ucraniano, um judeu, que escapa, no entanto, de toda tentativa de redução ideológica a partir da sua identidade.
E na Itália devemos temer mais a Casa Pound ou Draghi? Qual direita devemos temer? Quem decidirá o nosso futuro será novamente o capitalismo, que se adaptará, como sempre, às novas – por mais dramáticas ou trágicas que sejam – circunstâncias políticas, sejam elas neoliberais, globalizadas, nacionalistas, populistas ou nazifascistas.
E a nossa esperança? Uma lição inevitável vem da atual imprevisibilidade dos eventos: conseguiremos aprender a viver na permanente incerteza, nos conflitos e nas contradições da vida? Mesmo às custas de contradizer convenções sociais e políticas? Mesmo às custas da incompreensão? E da sacra solidão?
Insisto na esperança dos caminhos para construir alternativas ao modo de fazer política já traçados pelas profecias existenciais dos povos originários da Abya Ayala e do mundo inteiro.
Espero que não se trate apenas de um refúgio um pouco mistificado, um deus ex machina, para não nos deixarmos dominar pelo derrotismo e pelo desespero; apesar das tensões e das incongruências que minam e fragilizam as organizações e as lutas, espero na insurgência dos povos indígenas, quilombos, comunidades tradicionais e exilados dessa modernidade enlouquecida, que, nos campos ou nas cidades, ainda constroem territórios livres, inspirados pelos Ancestrais e por Jesus de Nazaré, praticam a fraternidade e a sororidade de todos os seres vivos com a terra, o subsolo, a água, o ar, para propiciar um futuro para a Vida.
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Nacionalismos e patriotismos. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU