03 Mai 2022
O ex-chefe de Estado e seu campo esperam tirar Jair Bolsonaro – o “amigo” de Putin – do poder na eleição presidencial de novembro, mas não se posicionam claramente em relação ao conflito russo-ucraniano.
A análise é de Bruno Meyerfeld, publicada por Le Monde, 02-05-2022. A tradução é de André Langer.
Sobre um assunto, pelo menos, Jair Bolsonaro sabe ser constante. Desde o início da guerra na Ucrânia, o presidente do Brasil nunca deixou de mostrar sua benevolência para com Vladimir Putin. Em 16 de fevereiro, recebido com honras no Kremlin poucos dias antes do início do conflito, o presidente do Brasil declarou ser “solidário com a Rússia” e elogiou os méritos de seu líder, um “amigo” que “busca a paz”. Palavras que o líder da extrema-direita nunca negou, aderindo a essa questão candente com estrita neutralidade.
Mas Jair Bolsonaro está longe de ser o único no Brasil a cultivar certa proximidade, senão certa intimidade, com a Rússia de Vladimir Putin. No maior país da América Latina, poucas figuras da esquerda assumiram uma posição firme sobre a guerra na Ucrânia. Isso causa decepção, amargura e, às vezes, até consternação entre alguns ocidentais, enquanto o conflito continua em um cenário de crimes em massa, cinco meses antes de uma eleição presidencial que poderá ver o retorno ao poder do Partido dos Trabalhadores (PT) e de Luiz Inácio Lula da Silva.
Embora todos condenem a invasão, os líderes da esquerda brasileira estão mais frequentemente contentes em mandar os protagonistas de volta para trás, insistindo na responsabilidade da OTAN, opondo-se a quaisquer sanções, evitando criticar publicamente Vladimir Putin ou mesmo enviando mensagens de solidariedade ao povo ucraniano.
Embora todos condenem a invasão, os líderes da esquerda brasileira na maioria das vezes se contentam em dar razão aos protagonistas, insistindo na responsabilidade da OTAN, opondo-se a qualquer sanção, evitando criticar publicamente Vladimir Putin ou mesmo enviar mensagens de solidariedade ao povo ucraniano. Um suposto “ponto intermediário”, que alguns consideram pusilânime, mas que tem o mérito de reunir todas as tendências e todas as gerações, da “velha guarda” do PT às “estrelas em ascensão” da esquerda alternativa.
É o caso de Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e conselheiro político de Lula, que condena veementemente o “uso unilateral da força”, mas que rejeita qualquer medida de retaliação. Jovem e promissor líder socialista, Guilherme Boulos, por sua vez, insiste na presença de “importantes forças políticas da extrema-direita” em Kiev e torpedeia o “colonialismo” de ambos os lados. Ainda mais radical, o jornalista Breno Altman, próximo à esquerda radical, acredita que “não é correto falar de ‘invasão russa’ na Ucrânia. Ou até mesmo de ataque. Este é um contra-ataque, uma guerra defensiva”.
Seria isso um sinal de alguma confusão? Em seus discursos, o próprio Lula alterna há dois meses entre comentários vagos e saídas polêmicas. “A humanidade não precisa de guerra, mas de emprego e educação”, contentou-se primeiro em tuitar o ex-metalúrgico, em 24 de fevereiro, antes, alguns dias depois, de torpedear tanto a invasão russa como a OTAN, acusada de “arrogar-se o direito de instalar bases militares nas proximidades de outro país”, depois de tentar dizer com um requinte de humor: a guerra poderia ser resolvida facilmente no Brasil, “à mesa tomando uma cerveja”, estimou um alegre Lula, em 30 de março.
Da parte dos próprios líderes políticos que lutam contra um poder de extrema-direita que ameaça a democracia, essas posições cautelosas, se não hostis, sobre a crise ucraniana podem ser uma surpresa. Na verdade, elas não são nada surpreendentes. Porque uma das pedras angulares da esquerda brasileira (e a fortiori latino-americana) continua a ser o anti-imperialismo, uma mistura de antiamericanismo radical e de terceiro-mundismo assumido. Um coquetel antigo, herdado da Guerra Fria, que muitas vezes induz instintivamente a se alinhar no campo oposto aos Estados Unidos.
A esquerda brasileira certamente tem motivos para culpar seu vizinho do Norte. O golpe de Estado de 1964, que estabeleceu o regime militar, foi de fato amplamente financiado e apoiado pelos Estados Unidos, dos quais a América Latina era então seu quintal. Além desse episódio, o PT tem uma queixa pessoal contra Tio Sam, suspeitando que Washington tenha participado da operação anticorrupção Lava Jato, que indiretamente levou à destituição da presidente Dilma Rousseff, em 2016, e à prisão de Lula, entre 2018 e 2019. Tudo isso, segundo suas teses, para enfraquecer um Brasil em pleno crescimento e colocar as mãos na gigante petrolífera nacional Petrobras.
Não importa se essas teses permanecem altamente discutidas. A ideia de que os Estados Unidos tentaram derrubar o PT está agora ancorada no coração dos militantes de esquerda e de seu líder, Lula. Um paradoxo para um líder que, no poder de 2003 a 2011, manteve relações calorosas com Washington, especialmente com seu colega neoconservador George W. Bush. Durante esta década de ouro, o metalúrgico usou habilmente seu charme e sua habilidade de negociação para se firmar como intermediário entre os países do Sul e do Norte, assumindo uma posição de líder global e responsável, a mil léguas das cruzadas anti-imperialistas de um Hugo Chávez.
Mas, encurralado e humilhado pela Lava Jato, o PT e seu líder voltaram a discursos mais radicais, apoiando a duras penas os regimes cubano, venezuelano ou nicaraguense e, portanto, recuando no conflito ucraniano. Reconhecidamente, a 10.000 quilômetros de Kiev, em um país fechado em si mesmo, no auge da crise econômica e onde o antiamericanismo continua sendo uma poderosa força motriz, ter um discurso de firmeza sobre semelhante assunto pode parecer um risco desnecessário. Mas isso é esquecer que a voz de Lula, um dos últimos gigantes políticos contemporâneos, ecoa muito além do Brasil, um país que, por seu tamanho, sua economia e sua popularidade, é chamado a se tornar líder no concerto das nações.
Após quatro anos de fúria bolsonarista, que o isolaram como nunca antes, o gigante latino-americano precisa mais do que nunca de um estadista pronto para assumir posições responsáveis e corajosas no cenário internacional.
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Lula e a esquerda brasileira cultivam a ambiguidade sobre a guerra na Ucrânia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU