24 Janeiro 2022
"Como se fosse possível conseguir uma diminuição, ou melhor, um desaparecimento dos abusos sexuais sem que os culpados fossem identificados, processados e punidos. Se a Igreja continuar a fechar os olhos sobre seu comportamento passado, pedindo de fato que se passe uma esponja em troca da promessa de prevenir tais malfeitos no futuro, nunca poderá sair deste drama, não será credível", escreve a historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado por La Stampa, 22-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mesmo os comentários mais sérios sobre o relatório sobre os abusos sexuais na diocese bávara de Munique e Freising dão destaque sobretudo à suposta responsabilidade do cardeal Ratzinger, que a liderou de 1977 ao início de 1982, a ponto de chegar a sugerir rixas internas entre amigos e inimigos do papa emérito. Mas sem olhar o problema maior e mais grave que esta investigação, que mais uma vez aponta para a instituição eclesiástica e para toda a comunidade dos católicos. E sem perceber que, neste caso, o verdadeiro protagonista da questão não é Ratzinger, que sim, foi responsável pela diocese, mas na prática talvez não pelas escolhas de colaboradores.
Porque a importância do relatório reside sobretudo em ser uma confirmação muito forte das teses sustentadas na carta de renúncia do atual arcebispo, o cardeal Marx - endereçada ao pontífice em 21 de maio passado e devolvida substancialmente ao remetente em 10 de junho seguinte - com a qual a questão dos abusos era fortemente colocada em seus verdadeiros e dramáticos termos. De fato, foi o Cardeal Marx quem decidiu iniciar a investigação e, sobretudo, foi ele, quando se deu conta dos primeiros resultados, quem escreveu a carta de demissão na qual, talvez pela primeira vez na Igreja, ousou declarar a situação como efetivamente é. A demissão foi, na verdade, um ato de protesto contra a insuficiência das medidas postas em prática para combater os abusos sexuais e, sobretudo, uma crítica à escolha de tratar cada país e cada caso como únicos, enquanto se trata com toda evidência de uma questão coletiva, envolve toda a instituição: "O cerne da questão é assumir a corresponsabilidade pela catástrofe dos abusos sexuais cometidos pelos responsáveis da Igreja nas décadas passadas".
Há dois termos-chave nesta afirmação: "corresponsabilidade", que chama toda a instituição a juízo, e - como ressaltava na época da renúncia Luis Badilla, o arguto diretor do Sismografo, uma das agências de informação mais informadas e livres - a escolha de usar a expressão "responsáveis pela Igreja" em vez de sacerdotes ou religiosos. Basicamente, um duplo apelo à responsabilidade coletiva.
De fato, Marx continua dizendo que não se pode intervir em situações separadas, mas que "há dois elementos que não podem ser perdidos de vista: erros pessoais e fracasso institucional que exigem mudanças e uma reforma da Igreja". Assumindo a responsabilidade pessoal de ter cometido um erro inclusive "pelo silêncio, omissões e peso excessivo dado ao prestígio da instituição", o cardeal na realidade chama a corréu toda a hierarquia, incluindo o pontífice.
Como mencionado, o Papa Francisco rejeitou sua renúncia, instando-o a continuar a batalha.
Como se a demissão não fosse o ponto alto dessa batalha. Em vez disso, o comunicado do Vaticano emitido após a publicação do relatório alemão foi uma retomada das costumeiras frases já propostas por ocasião de todo escândalo semelhante: depois de ter expressado "vergonha e remorso", declara que a Santa Sé "confirma o caminho escolhido para proteger os menores, garantindo-lhes ambientes seguros". Já a expressão "confirma o caminho escolhido" deixa claro que a instituição não tem nenhuma intenção de fazer autocrítica, justamente aquela autocrítica que Marx fez para dar o exemplo; além disso, o deslocamento para o futuro, para uma dimensão de prevenção, exclui completamente qualquer perspectiva de investigação e punição dos culpados.
Como se fosse possível conseguir uma diminuição, ou melhor, um desaparecimento dos abusos sexuais sem que os culpados fossem identificados, processados e punidos. Se a Igreja continuar a fechar os olhos sobre seu comportamento passado, pedindo de fato que se passe uma esponja em troca da promessa de prevenir tais malfeitos no futuro, nunca poderá sair deste drama, não será credível.
Até a Igreja admitir que o silêncio sobre os abusos era exigido, se não imposto, pelas próprias hierarquias, e que, portanto, quase todos os bispos - mesmo obviamente aqueles que se tornaram papas e talvez canonizados - foram corresponsáveis, não pode garantir a justiça. E mais, a hierarquia eclesiástica continuará a viver com medo - e eventualmente na possível chantagem - de uma revelação que a prende ao crime.
Esse silêncio agora está sendo quebrado em muitas dioceses, e é justamente por isso que surpreende que o Papa Francisco, que também declara combater com energia os abusos sexuais, não tenha pedido às duas Igrejas ligadas a ele pessoalmente - aquela argentina e aquela italiana – para fazer uma investigação sobre o tema. A admissão de que, em muitas circunstâncias, a Igreja escolheu o poder sacrificando as vítimas, comporta um discurso crítico sobre a concepção da sexualidade que domina na cultura católica atual, uma revisão do direito canônico que ainda considera o abuso como uma infração do sexto mandamento ao invés de violência, e uma análise da condição das vítimas de abuso sexual, tanto crianças como mulheres, e sobre a forma como essas vítimas foram tratadas até agora.
Tudo isso, como disse o Cardeal Marx em sua carta, exige uma reforma da Igreja, e não apenas de sua estrutura organizacional curial, mas da própria figura do sacerdote, de sua preparação e, portanto, também do celibato eclesiástico.
Providências que a chamada Igreja da Contrarreforma soube tomar diante do cisma protestante, e que hoje, cinco séculos depois, exigem uma enérgica operação de renovação.
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Por que a Igreja não cede a respeito dos abusos. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU