"A gravidade da situação torna urgente a necessidade de identificar as formas praticáveis de sair da atual tribulação e criar as condições para o restabelecimento de uma relação harmoniosa entre o homem e a natureza segundo o projeto original de Deus. A questão, antes de ser técnica, é cultural e ética. Trata-se de dar vida àquela “ecologia integral” - como a define Papa Francisco na encíclica Laudato si'- que exige particular atenção à estreita relação entre ordem natural e ordem social, apelando para parâmetros éticos e estéticos", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, e membro fundador e membro do Grupo de Reflexão e Proposta de “Viandanti”, em artigo publicado por Servitium, Abril-Junho de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O sopro de Deus (ruah) não é apenas o instrumento através do qual a humanidade ganha vida (Adam) criada “à sua imagem e semelhança"(Gênesis 1, 26). É, mais radicalmente, aquilo de onde se origina toda a realidade criada. A passagem do caos ("a terra informe e deserta", Gn 1,1) ao kósmos é obra da Palavra, palavra que faz ser, dando consistência e ordem a todas as coisas. O relato da criação é o mais recente da tradição sacerdotal (Gênesis 1) - descreve com precisão o processo gradual mediante o qual o mundo assume uma forma completa até o aparecimento do homem, a quem é atribuída a função de exercer um determinado senhorio (cf. Gênesis 1, 26).
A criação é, portanto, caracterizada por um processo ascensional, no qual se sucedem diferentes etapas, conduzindo a um estado de harmonia, cujo selo é constituído pela presença de bondade e beleza ("E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom/belo” Gênesis 1,31: o termo hebraico ki tob pode ser traduzido como "belo" e como "bom"). O entrelaçamento dos vários elementos como um grande quebra-cabeça faz da natureza uma realidade global, que inclui tudo, inclusive o homem, que nela se inscreve plenamente como parte integrante e expressão máxima do desígnio divino. O sopro, que infunde vida a tudo o que existe, torna-se o respiro interior de cada uma das realidades criadas, o que as conecta entre si, dando origem a uma unidade articulada e múltipla, uma grande sinfonia viva.
Mas – é bastante frisado desde o início - a ordem impressa por Deus na criação não é uma harmonia pré-estabelecida e estática; é uma ordem dinâmica e evolutiva que exige, portanto, ser mais elaborada e levada a término. O próprio conceito de criação é um conceito aberto: criacional é o ato original de Deus a partir do qual o universo ganha vida, mas criacional também é o processo subsequente pelo qual a instância finalística, expressão direta do sopro divino, se desenvolve e cresce até a plenitude. Tendo saído das mãos de Deus, a criação é confiada às mãos do homem para que dê nova forma àquela obra-prima, cuja configuração está desde o início in nuce presente. Esta é a tarefa do homem! Que, longe de ter de exercer um domínio absoluto sobre a natureza, deve atender o desígnio divino, colocar em obra a sua capacidade criativa, acrescentando harmonia à harmonia, beleza à beleza. A criação é concomitantemente - lembrava frequentemente Armido Rizzi - "datidade" e "possibilidade", no sentido de que existe uma infraestrutura originária, da qual o homem não pode prescindir em seu empenho transformador - a "natureza" vem do "nascer" e indica um início a partir do qual a identidade das coisas toma consistência, mas ao mesmo tempo evidencia a existência de sua tensão para o crescimento, mesmo que tal empenho não se limite (e não possa ser limitado) simplesmente a uma atividade repetitiva, mas implique um esforço da imaginação em que razão e afetividade entram em jogo.
A atitude do homem para com a criação, portanto, exclui tanto o exercício de um senhorio despótico quanto a assunção de uma atitude de mera passividade; em outras palavras, rejeita tanto o reducionismo cultural que legitima qualquer tipo de intervenção por não reconhecer a "datidade", quanto um naturalismo radical baseado na sacralização da natureza, que proíbe qualquer intervenção que vise modificá-la, adaptando-a às novas situações sem isolar sua identidade A confirmação dessa relação dialética também vem do uso de "verbos" com os quais os relatos da criação descrevem a relação que o homem deve ter com a natureza. O tecido relacional, que é a urdidura de toda a realidade criada, representa o terreno comum no qual enxertar a ação humana. Se o relato sacerdotal usa o verbo "dominar" (cf. Gênesis 1,26 e 28), enfatizando o primado do homem, aquele do jahvista, onde a natureza é o jardim do Éden, introduz dois verbos significativos "cultivar" e “cuidar” (cf. Gênesis 2,15). A imagem do jardim é iluminadora, porque alude a uma realidade que tem uma configuração precisa, que brota diretamente do sopro divino, mas que precisa ser mantida viva e alimentada pela intervenção do homem.
Como "guardião do jardim" o homem está, portanto, no ápice da criação, mas sua centralidade não comporta o exercício de uma hegemonia absoluta, é o reconhecimento de uma responsabilidade específica a ser exercida em relação a toda a realidade, dando apoio à realização de aquela "comunhão" inaugurada pelo ato criacional, mas que exige ser preservada e aperfeiçoada mediante a obra do homem. A implementação dessa tarefa implica o exercício de um senhorio que não pode ser absoluto, mas que deve abrir espaço para o senhorio superior de Deus, a cujos ditames o homem deve conformar sua conduta.
Não seria talvez justamente este o sentido do primeiro preceito dado por Deus ao homem? “E o Senhor Deus ordenou ao homem: "Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá" (Gênesis 2,16-17). O senhorio de Deus se torna presente na ordem da criação e naquela moral entre eles estritamente interligadas. A não aceitação dessa dependência e a transgressão do preceito expressam o desejo de autonomia absoluta do homem, que quer substituir-se a Deus tornando-se o juiz do bem e do mal. Este é o sentido da tentação da serpente que afirma: “Disse a serpente à mulher: ‘Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal’" (Gênesis 3, 4-5). À ruptura da relação com o Senhor segue-se a dilaceração do tecido relacional originário com a consequente propagação da desordem moral e o rompimento da relação com a natureza (cf. Gn 3, 16-19).
A história de Israel expressa esta situação com alternância de vicissitudes. Por um lado, abre o caminho a cadeia de graves conflitos que marcam a condição humana - da morte de Abel (Gênesis 4, 1-16) à violência de Lameque (Gênesis 4, 23-24) até a construção da torre de Babel (Gênesis 11,1-9), só para lembrar os principais - e a relação com a natureza é alterada pela presença de fenômenos não controláveis com efeitos devastadores - basta pensar no episódio do dilúvio (Gênesis 7,6-24) - e para o surgimento do esforço no cultivo da terra (Gênesis 3, 17-19). Por outro lado, não faltam, desde o início, sinais de esperança, como a aliança que Deus estreita com Noé (Gênesis 9) e com Abraão (Gênesis 15), eventos que aludem à promessa de uma reconciliação com a criação e com toda a humanidade. Nesta árdua jornada vem à luz o sentido mais profundo da dialética positiva entre dominação e conservação - o verbo "guardar" já citado coloca em foco essa dupla instância - que preside (deve presidir) a relação do homem com a realidade criada.
Trabalho e contemplação são os dois bens irrenunciáveis e interdependentes aos quais é preciso apelar. O primeiro - o trabalho - é necessário, junto com a procriação, para a preservação de si e da espécie ("Com o suor do rosto comerás o pão", Gênesis 3,19); o segundo - a contemplação - constitui o ápice da experiência humana. O relato da criação de tradição sacerdotal evidencia essa dinâmica. Nele, a "teologia dos seis dias" se entrelaça com aquela do "sétimo dia" em um processo evolutivo que culmina no descanso do sábado, que Deus "abençoa" e "consagra", como um momento em que toda a realidade "muito bela/boa" por ele criada torna-se objeto de ação de graças. A criação, portanto, reflui no sábado, que é o dia da "memória" em que o sofrimento causado pelo governo da terra recebe seu pleno significado. O sábado, destinado ao descanso e à gratidão para com aquele que a criou e a doou a nós em custódia, é portanto o ponto de chegada de toda a atividade humana.
A natureza não nos é dada apenas para que a transformemos através do trabalho, mas também (e sobretudo) porque a tornemos objeto de internalização, reconhecendo nela o sopro divino que nunca cessa de alimentá-la. Da natureza não derivamos apenas os bens que satisfazem nossas necessidades materiais, mas também aqueles que enriquecem nossa vida espiritual. A alegria da festa leva à descoberta das razões últimas do nosso existir; nos torna capazes de viver com maior intensidade a relação com os outros homens e de apreender o "que está dentro" das coisas, que nos empurra a ir "para além" delas para descobrir o doador de todo o bem e nos unirmos a ele. Neste contexto, torna-se transparente o respiro da beleza que tudo envolve: a maravilha dos céus, que narram a magnificência de Deus (cf. Salmo 8, 2-4), e a grandeza com a qual o homem foi revestido, adquirindo poder sobre todo o universo (cf. Salmo 8, 5-10). A natureza aparece assim em todo o seu esplendor como obra do sopro divino e do trabalho do homem que, quando se desenvolve sob o signo do desígnio original, a transfigura tornando-a mais harmoniosa e acolhedora.
Esse design grandioso colide com a ambivalência do comportamento do homem. Sempre houve dificuldades em manter uma relação de equilíbrio dinâmico com a natureza. A hybris que se aninha na consciência (e no inconsciente) humano e que assume a aparência de vontade de poder, não é em si um fenômeno novo. O episódio da torre de Babel, já mencionado (Gênesis 11,1-9), é o testemunho de quanto a tentação de desafiar a Deus está enraizada nas profundezas do homem: o desejo de ser como Deus, não reconhecendo as próprias limitações e, portanto, a própria criaturalidade pertence, em certa medida, à dinâmica estrutural do desejo humano.
Mas hoje essa tentação assumiu proporções até ontem insuspeitadas, desenvolvendo-se segundo uma progressão geométrica, com efeitos devastadores que fizeram da questão ecológica o nó crítico mais importante de nosso tempo. Por um lado, existem as pesadas repercussões negativas do fenômeno da poluição, que prejudicou bens fundamentais como o ar, a água e a terra - as alterações climáticas são o indicador mais evidente deste fenômeno -; por outro lado, há os desperdícios de energias não renováveis com o avanço de uma forma de entropia que já é visível, mas cujo desconforto se refletirá principalmente sobre as gerações futuras.
Existem muitas razões culturais e sociais na raiz da formação dessa mentalidade prometeica. A ideologia do progresso indefinido da matriz iluminista com a passagem da razão ideológica - aquela do início do Iluminismo - à razão instrumental, para a qual - para usar a expressão de Bacon - "saber é poder", isto é, possibilidade de intervir na realidade a fim de transformá-la por meio de manipulações ilimitadas, na convicção de que tudo o que é tecnicamente possível também é eticamente legítimo porque, em última instância, humanizante. Os enormes resultados obtidos pelo desenvolvimento da técnica em todos os campos da vida têm provocado uma espécie de exaltação coletiva. A natureza, ao invés de ser considerada como o habitat dentro do qual a vida humana cresce, derivando dela elementos materiais e solicitações espirituais, é considerada um recipiente de recursos a serem explorados incondicionalmente.
A objetificação do corpo - o corpo "que temos" e não o corpo "que somos" – traduziu-se a fortiori em uma objetivação do mundo natural, que se torna simples instrumento que o homem pode usar à vontade. O que se perde, é o caráter relacional da realidade. O sujeito humano está totalmente separado da natureza, à qual se atribui simples caráter de objeto, numa perspectiva dualista que transforma o antropocentrismo moderado da Bíblia, que - como já foi dito - coincide com um excesso de responsabilidade, em uma forma de antropocentrismo absoluto e despótico. Concorreu para facilitar esse processo devastador, além do mito tecnocrático, a afirmação de uma forma de economicismo típico do sistema capitalista (e neocapitalista), para a qual contam apenas as lógicas do mercado, ou seja, a maximização da produtividade, do lucro e do consumo, com a subserviência da natureza para a busca desses objetivos.
A gravidade da situação torna urgente a necessidade de identificar as formas praticáveis de sair da atual tribulação e criar as condições para o restabelecimento de uma relação harmoniosa entre o homem e a natureza segundo o projeto original de Deus. A questão, antes de ser técnica, é cultural e ética. Trata-se de dar vida àquela “ecologia integral” - como a define Papa Francisco na encíclica Laudato si'- que exige particular atenção à estreita relação entre ordem natural e ordem social, apelando para parâmetros éticos e estéticos. O pressuposto de partida para a construção de um sistema alternativo que acolha as instâncias acima referidos é a superação das formas de racionalidade que têm caracterizado a modernidade e, em parte, a pós-modernidade, a razão ideológica e instrumental – ambas fechadas e totalizantes -, para dar espaço a uma racionalidade aberta e dinâmica, a razão simbólica, onde a abordagem da realidade não se dá no signo da pretensão de uma sua interpretação global ou do exercício de um poder absoluto a seu respeito, mas em um acesso a ela que abre espaço para o inédito e ao não circunscritível; uma racionalidade que não tem a presunção de demonstrar, mas simplesmente de mostrar e aludir remetendo para além; enfim - para recorrer à conhecida fórmula de Emmanuel Levinas - uma razão do “infinito”, e não da “totalidade”.
Com efeito, só nesta perspectiva é possível descobrir a natureza naquilo que tem de mais profundo, nunca inteiramente apreensível e reificável, e assumir perante ela aquela atitude contemplativa repetidamente mencionada que nos coloca em comunhão com ela, fazendo-nos sentir parte de uma realidade maior, que nos pertence não no sentido de posse, mas de participação, porque tem a ver com o nosso próprio destino. Desta forma, instaura-se uma relação com a natureza que certamente não proíbe o recurso ao empenho transformador, mas que modula tal empenho segundo ritmos que respeitam uma visão holística, que nos impede de cair na tentação de uma abordagem instrumental ou mercantil e nos coloca em condições de reconhecer a presença nela de uma ordem originária inviolável. Em última análise, o que define o sentido desse modo de nos reportar à natureza, é a dimensão estética.
O belo representa a forma mais elevada de contato com a realidade. Partindo do ponto de vista simbólico a que se aludiu, mergulhamos - como os artistas sabem por experiência direta - no vivo do mistério, que exige ser abordado com o pudor de quem se detém na soleira sem pretender cruzá-la.
Verdade e bem recebem desta justaposição uma espécie de transfiguração que lhes confere o mais elevado significado: sem a abertura à beleza, a verdade corre o risco de se transformar em um dogmatismo estéril e o bem em um moralismo legalista de molde farisaico.
Este horizonte cultural e ético que está na base da "conversão ecológica" é o pano de fundo sobre o qual deve ser enxertada uma série de iniciativas estruturais e pessoais. De fato, está em jogo, por um lado, o sistema econômico dominante e, mais radicalmente, o modelo de desenvolvimento até agora utilizado; de outro, o estilo de vida consumista que tem caracterizado o comportamento de grande parte da população dos países desenvolvidos. Sobre o primeiro lado - o estrutural - o conceito de “ecologia integral” nos leva a considerar a estreita relação entre o atual colapso ecológico e a situação de penúria econômica e social generalizada - as desigualdades cresceram enormemente, envolvendo também entre nós uma parte substancial da classe média - e torna transparente o mau funcionamento de um sistema que não pode ser unicamente objeto de ajustes parciais, mas deve ser radicalmente mudado. A grave crise econômico-financeira dos anos 2007-2008 e, mais recentemente, a pandemia de Covid-19 destacaram claramente essa necessidade. O caráter não puramente conjuntural, mas estrutural, de tal crise exige a adoção de medidas absolutamente alternativas. Algumas hipóteses interessantes nessa direção foram formuladas nos últimos anos por renomados economistas de diferentes escolas. O que parece até agora não subsistir é, infelizmente, a presença de uma vontade política capaz de torná-las concretas.