04 Janeiro 2019
Uma ampla coletânea dos pensamentos, observações e reflexões de Simone Weil sobre a figura de Cristo e sobre o mistério da Encarnação profunda os temas sobre os quais a autora medita ao contemplar a criação.
O comentário é do filólogo e crítico literário italiano Carlo Ossola, professor do Collège de France, de Paris, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 30-12-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Autor de uma já valiosa edição da meditação de Simone Weil sobre o Pater (Paris: Bayard, 2017), François Dupuigrenet apresenta agora, para completar o díptico, uma ampla coletânea dos pensamentos, observações e reflexões da autora sobre a figura do Cristo, tirados particularmente de Attente de Dieu, de Autobiographie spirituelle, de Connaissance surnaturelle, de La pesanteur et la grâce e de Lettre à un religieux.
O conjunto oferece um percurso orgânico sobre a visão de Simone Weil, que medita sobre a Encarnação dentro de uma contemplação da beleza, franciscana, da criação e do seu impulso a se elevar, à la Teilhard de Chardin, rumo à plenitude eterna, no sinal imperceptível da docilidade: “O Cristo nos propôs como modelo a docilidade da matéria, aconselhando-nos a contemplar os lírios dos campos que não trabalham nem fiam. [...] Se eles parecem a nós infinitamente mais belos do que os ricos tecidos, isso não acontece porque eles são mais ricos, mas sim mais dóceis. O tecido, por sua vez, é dócil, mas dócil ao homem, e não a Deus”.
Como escreveu Cristiana Garzena sobre o Cântico das Criaturas de São Francisco: “terra fidelis manet”, a criação se perpetua na docilidade, em uma beleza que é a transparência da ordem da Criação: “A beleza do mundo – anota Simone Weil – é o sorriso de ternura do Cristo por nós através da matéria. Ele está realmente presente na beleza do universo”. Essa criação está isenta da “imperfeição” da obra, porque não tem processo, nem finalidade, nem execução, mas apenas silente docilidade a uma perpétua fidelidade, criada e completa: “Justamente porque a ausência de finalidade, a ausência de intenção são a essência da beleza do mundo, o Cristo nos prescreveu contemplar como a chuva e a luz do sol descem sem distinção tanto sobre os justos quanto sobre os iníquos”.
Poderíamos pensar até aqui que Simone Weil nos insere no fecundo sulco criatural que tem no século XX as suas palavras iniciais mais elevadas na poesia de Rainer Maria Rilke: “E eu cresço no seu silêncio, / e gostaria de florescer em muitos ramos, / mas para me aninhar com os outros no círculo / da única harmonia”.
Seria uma leitura pacificada e consoladora, a qual os textos não autorizam, seja pela presença inquieta de uma vontade de reductio ad unum entre mitos gregos e figuração cristã [é preciso recordar aqui o precioso trabalho de Hugo Rahner, “Mitos gregos na interpretação cristã”, 1945], seja pelos resíduos de permanência nietzschiana nos paralelismos entre Prometeu e Cristo: “Cristo e Prometeu vieram para acender o fogo sobre a terra”.
Na sua Lista das imagens de Cristo: “Prometeu. / [...] / Proserpina. Osíris / Dionísio / Adônis / [...] Hipólito / Odin / Krishna / etc.”, além de uma série de figuras tiradas dos contos de fadas dos Irmãos Grimm (“O bebê morreu, comido e ressuscitado na Amêndoa, que deve ser aproximado do Cordeiro pascal, e ainda os animais mortos, comidos e ressuscitados, graças aos seus ossos, nas fábulas indígenas da América”), Simone Weil ecoa as pesquisas órficas de Aby Warburg, além das folclóricas à la Vladimir Propp sobre a “Morfologia da fábula” (1928), aquele vasto caldeirão do início do século XX sobre a intacta duração, através das civilizações, de alguns arquétipos fundantes.
Essa necessidade de dispor, desde as origens, figuras de salvação é um elemento típico da demanda por equidade - entre passado, presente e futuro – que é necessária para a Redenção; se universal, ela deve dizer respeito também aos justos que precederam a Revelação. Renúncia, por outro lado, pela plenitude da Encarnação, ao adiamento de sentido que Agostinho já punha sub ampliori gratia, remetido ao tempo novíssimo do Apocalipse; no presente de uma Paixão que cumpre todas as paixões dos justos, convoca-se toda a história da humanidade como a conhecemos, sem esperar que os céus se enrolem novamente na Parusia última.
François Dupuigrenet comenta na sua Introdução, com muita fineza, a seguinte passagem de Simone Weil, tirada de Connaissance surnaturelle: “A história de Cristo é um símbolo, uma metáfora. Mas antigamente se acreditava que as metáforas eram produzidas como acontecimentos no mundo. Deus é o supremo poeta”. A fórmula de “Deus poeta” é antiga, porque Ele fala a nós em parábolas, similitudes, já que o nosso intelecto não pode acessar diretamente a Verdade; e foi retomada, para significar a beleza da criação, por muitos autores medievais (como nos testemunha Ernst Robert Curtius, no seu ensaio Deus artifex) e, acima de todos, por Alain de Lille no seu Liber de planctu naturae: “Deus [...] tanquam mundi elegans architectus, tanquam aureae fabricae faber aurarius, velut stupendi artificii artifex artificiosus, velut admirandi operis opifex" (PL CCX, 453).
O próprio Blumenberg tinha desenhado um vasto projeto de “Paradigmas para uma metaforologia” para chegar a aferrar o momento em que a palavra, trasladando-se, torna-se aquilo a que faz alusão.
Mas aqui, creio eu, é preciso sair da terminologia retórica da qual o Ocidente moderno herdou o termo “metafora, translatio”, transferência para outro até a plena metamorfose. Os próprios Evangelhos, no grego do Novo Testamento [Mateus 17, 1-8; Marcos 9, 2-8 e Lucas 9, 28-36], falam de uma “metamorfose”, de uma mudança do rosto de Cristo na Transfiguração (“metamorfose” em Mateus e Marcos: “et transfiguratus est ante eos”; enquanto em Lucas o rosto se torna “outro” do que era: “prosopon autou eteron: species vultus eius altera”). Os Evangelhos têm dificuldade em expressar essa mutação: transfiguração, metamorfose, alteração divina, que se torna aquilo que será.
Apenas mais de um milênio mais tarde, Dante teve sucesso na admirável obra de expressar essa mutatio in unum: “Vê, leitor, como eu me maravilhava, / vendo que a coisa em si nem se movesse, / e como a imagem sua se transmutava” (Purgatório, XXXI, 124-126; trad. Italo Eugenio Mauro, Ed. 34); o grifo da procissão simbólica permanecia como tal, mas a sua imagem, nos olhos de Beatriz, mudava-se em divino simulacro: “O ídolo, isto é, a figura que dele se mostrava nos olhos de Beatriz, tinha ora uma forma, isto é, divina, ora outra, isto é, humana” (L’Ottimo Commento).
E Tommaseo comenta ainda mais radicalmente: “Nos olhos, onde estava a imagem de Jesus Cristo, variadas se faziam as formas dele; porque variado por fraqueza é o gênio humano: e não pode, em um olhar, compreender toda a virtude de coisa alguma (daí o sentido filosófico do discurso)”. De fato, nós mesmos – também aqui - discorremos, correndo de deriva em deriva; não chegamos a definir, porque, correndo, o ponto de vista muda, a palavra escapa com o tempo que a pronuncia...
Talvez só reste nos ater – é um instante apenas na prosa de Simone Weil, mas inobnubilável – à mão do pintor que se torna aquilo que cria, e, nessa transfiguração, treme e recua em relação ao ídolo: “Um verdadeiro pintor, por força de atenção, é aquilo que olha. Em todo esse tempo, a sua mão se move, com um pincel na extremidade. É ainda mais evidente nos desenhos de Rembrandt. Ele pensa Tobias e o Anjo, e a sua mão se move. Assim, Cristo deve ser o nosso modelo”. Sim, aquela mão ansiosa de Rembrandt, na luz que foge...
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Deus está presente na beleza do universo. Artigo de Carlo Ossola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU