Por: André | 12 Setembro 2013
“Simone Weil foi, certamente, uma tenaz observadora do mundo social, qualidade que a levou a sempre desconfiar das teorias e das interpretações a priori. Uma atitude, além disso, que contribuiu sem dúvida para impregnar sua curta vida da intensidade que nos assombra”, escreve Mailer Mattié, em artigo publicado no sítio espanhol do Centro de Estudios Políticos para las Relaciones Internacionales y el Desarrollo – CEPRID, 06-09-2013. A tradução é de André Langer.
Mailer Mattié é economista e escritora. Este artigo é uma colaboração para o Instituto Simone Weil de Valle de Bravo, México, e para o CEPRID, de Madri.
Eis o artigo.
No dia 18 de julho de 1943, um mês antes de morrer, Simone Weil escreveu de Londres aos seus pais que se encontravam em Nova York:
“Tenho uma espécie de crescente certeza interior de que há em mim um depósito de ouro puro que é para ser transmitido. Mas a experiência e a observação dos meus contemporâneos me persuadem cada vez mais de que não há ninguém para recebê-lo. É um bloco maciço. O que se acrescenta torna-se bloco com o resto. À medida que o bloco cresce, torna-se mais compacto. Não posso distribuí-lo em pedacinhos pequenos. Para recebê-lo é preciso um esforço. E um esforço é tão cansativo!”
Aqui Weil assinala três requisitos, na sua opinião, imprescindíveis para aproximar-se da compreensão do seu pensamento: esse bloco compacto de outro puro. Certamente, é necessário um grande esforço intelectual que, no entanto, será inteiramente insuficiente se não podemos chegar à verdade sobre o mundo social no qual vivemos e se não contamos com determinadas experiências; isto é, com determinadas referências de aprendizagem.
A que se referia, na realidade, Simone Weil? O que era aquilo que impedia os seus contemporâneos de compreender suas propostas?
Com grande probabilidade, é possível que aludisse a dois dos traços que caracterizam a existência humana na sociedade moderna: ignorar a experiência histórica que constitui o passado e aceitar a distorção do conhecimento que acreditamos ter sobre a realidade. O passado, com efeito, foi apagado pelo progresso, arrasado pelo desenvolvimento do Estado e pela economia, destruído pela industrialização. As ideologias e o pensamento acadêmico, por outro lado, sequestraram a verdade ao inscrevê-la nos dogmas herdados do século XIX.
Seria legítimo, então, perguntar sobre as nossas próprias possibilidades de chegar a contar, ao menos em parte, com essas referências, posto que agora nos encontramos em condições de dar testemunho real dos erros e do fracasso das formas de organização social sustentadas nas ideologias do progresso econômico. Além disso, somos testemunhas, desde o final do século passado, da determinação e da autonomia da emergência da incomensurável riqueza de saberes – que a ciência apenas está começando a validar – contida nas antigas culturas e cosmovisões de muitos povos originários, sobreviventes do extermínio nos territórios andinos ou amazônicos, por exemplo.
Também nos devolvem a verdade do passado os recentes – embora ainda escassos – estudos que procuram revelar a realidade social que constituiu a Alta Idade Média na Europa, oculta na falsa e interessada definição de Feudalismo e na interpretação linear, que simplifica a história, entre os quais podemos destacar a obra do filósofo e historiador Félix Rodrigo Mora no que se refere à Península Ibérica: Tempo, História e Sublimidade no Romântico Rural, publicada em 2012. A crise das ideologias, por outro lado, anima o verdadeiro conhecimento, incluindo a recuperação do pensamento de autores importantes que foram condenados ao esquecimento porque seus critérios comprometiam seriamente a solidez das ideias dominantes. É o caso, por exemplo, da obra de Silvio Gesell escrita no começo do século XX sobre a função do dinheiro nos sistemas econômicos e o lugar que a moeda poderia desempenhar em um processo de transformação social. Perspectiva que serviu de inspiração ao matemático estadunidense Charles Eisenstein para propor uma transição para a economia do dom em seu livro Sacred Economics. Gift and Society in the Age of Transition, publicado em 2010.
Simone Weil foi, certamente, uma tenaz observadora do mundo social, qualidade que a levou a sempre desconfiar das teorias e das interpretações a priori. Uma atitude, além disso, que contribuiu sem dúvida para impregnar sua curta vida da intensidade que nos assombra. Explorou também o passado, ao achar absurdo enfrentar o porvir. Falou, assim, da experiência histórica constituída pela sociedade occitana do sul da França no século XIII – destruída impiedosamente pela força incipiente do Estado –, na qual encontrou os fundamentos para elaborar o núcleo do que seria sua grande obra, O Enraizamento: a noção das necessidades terrenas do corpo e da alma. À luz do olhar occitano, com efeito, percebeu a alegria da vida convivencial, baseada na obediência voluntária a hierarquias legítimas (não ao Estado, cuja autoridade embora seja legal não necessariamente é legítima) e na satisfação das necessidades vitais. Um espaço coletivo que encontra seu justo equilíbrio na estratégia que consiste em juntar os contrários – liberdade e subordinação consentida, castigo e honra, solidão e vida social, trabalho individual e coletivo, propriedade comum e pessoal – para sustentar assim a dignidade das pessoas em um território, na cultura e na comunidade. É a mesma realidade que o povo quéchua e o povo aimara chamam de Sumak Sawsay ou Suma Qamaña – o Bem Viver que é conviver; isso que o povo mapuche chama de Kyme Mogen e o povo guarani de Teko Kaui, seguindo o mandato original de construir a terra sem males; enfim, aquilo que para os povos amazônicos significa Voltar à Maloca, valorizando o saber ancestral: isto é, regressar à complementaridade comunitária onde o indivíduo emerge em equilíbrio com a coletividade; a vida em harmonia com os ciclos da natureza e do cosmos; a autossuficiência; a paz e a reciprocidade entre o sagrado e o terrenal.
Simone Weil, portanto, considerou a destruição do passado o maior dos crimes.
Na ausência da convivencialidade, ao contrário, Weil observou que a sociedade se converte no reino da força e da necessidade. Quando a sociedade é o mal, quando a porta está fechada para o bem – afirmou –, o mundo torna-se inabitável. Os meios que deveriam servir para a satisfação das necessidades transformaram-se em fins, tal como acontece na economia, com o sistema político, com a educação, com a medicina e com a alimentação industrial. Se esta metamorfose realmente aconteceu, então na sociedade impera a necessidade.
Uma realidade que nos impõe, em consequência, a obrigação absoluta e universal, como seres sociais, de tentar limitar o mal. Quer dizer, a obrigação absoluta de amar, desejar e criar meios orientados para a satisfação das necessidades humanas. Meios – segundo Weil – que só podem ser criados através do espiritual, daquilo que ela mesma chamou de sobrenatural: só através da ordem divina do universo pode o ser humano impedir que a sociedade o destrua. Na sociedade moderna – expressou –, o orgulho pela técnica – pelo progresso – fez com que se esquecesse que existe uma ordem divina do universo.
Na ausência da espiritualidade – afirmou –, não é possível construir uma sociedade que impeça a destruição da alma humana.
O espiritual, em Weil – algo que sempre parece tão difícil de precisar –, a fonte de luz, o que deveria guiar a nossa conduta social, representa a diferença entre o comportamento humano e o comportamento animal: uma diferença infinitamente pequena que é, não obstante, uma condição da nossa inteligência – ainda no aguardo de rigorosa definição científica que a concretize. O papel do infinitamente pequeno é infinitamente grande, assinalou certa ocasião Louis Pasteur.
É, então, a partir da influência desta ínfima diferença, que é possível limitar o mal na sociedade, porque essa condição da nossa inteligência é justamente a fonte do bem: ou seja, é a fonte da beleza, da verdade, da justiça, da legitimidade e do que nos permite subordinar a vida às obrigações. A mesma influência, pois, que devemos explorar na experiência do passado: no medievo cristão – assinalou Weil –, mas também em todas aquelas civilizações onde o espiritual ocupou um lugar central e para onde toda a vida social se orientava. Precisar suas manifestações concretas, seus metaxu: os bens que satisfazem as nossas necessidades e imprimem alegria à vida social.
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70 anos da morte de Simone Weil: a obrigação de limitar o mal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU